No livro Fila e Democracia (Rocco, publicado em 2017), escrito com Alberto Junqueira, explicamos que “bicha” é um sinônimo para um aglomerado em fileira, tal como revela a morfologia das cobras e dos vermes. Nas democracias, é normal enfileirar-se; no Brasil, porém, a “bicha” é sinal de inferioridade. “Tenho que entrar numa fila!”, reclamamos reveladoramente.
Os “grandes” jamais entram em fila porque todos conhecem seus privilégios. Eles sempre são os primeiros a ter o privilégio de furar todas as bichas (filas). Aristocratas não esperam. A reunião só começa quando eles chegam. Eles são a cereja do evento social.
Sem tempo a perder com inferiores (tal como aconteceu comigo numa reitoria, conforme relato no meu recém-publicado Você Sabe Com Quem Está Falando?: Estudos Sobre o Autoritarismo Brasileiro), esses velhacos têm todo o tempo para a nobre arte de coçar o saco ou de “ficar sem fazer nada”...
Do alto dos seus cargos, eles só olham para nós, os comuns (sujeitos da “gripezinha”), quando precisam. Afora isso, sabemos que esperar, obedecer e servir definem subordinação. Os criados correm; aos superiores cabe o privilégio de serem lentamente servidos. Se furamos todas as filas, pois furar e desobedecer são sinais de superioridade, como esperar por uma vacina que confirma o horror: o fato de que, quando chega a nossa vez, o que queremos acabou?
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Como filho mais velho, fui sempre o primeiro, mas tive o privilégio compensado sendo obrigado “a dar o exemplo”. Justo o que falta no Brasil que, somente agora, começa a exigir que prioridades e privilégios tenham como contrapartida o exemplo, a honestidade, o equilíbrio, a sinceridade e a competência.
No mundo público nacional, o que vemos é um acúmulo de privilégios proporcional à ausência das obrigações morais que os justificam e legitimam.
Entre nós, os privilegiados nada dão de volta ao sistema e por isso concretizam um modelo antigo, atrasado e imoral de serem privilegiados. A hierarquia só tem razão quando os de cima são servidos (é claro!), mas também servem os de baixo.
Os andares existem, mas as pessoas que os ocupam estão em pleno movimento. Não se pode ser rei sem ter noção de que tal cargo é uma incumbência - uma delegação, uma missão e uma obrigação.
Não cabe mais guardar lugar numa fila ou no cinema. Do mesmo modo que não cabe saber se você é advogado ou médico numa fila de banco ou diante de um sinal de trânsito. Quanto mais democracia, mais absurdo fica o “você sabe com quem está falando?”.
Esse ritual de hierarquia eu só fui estranhar quando conheci a América que, conforme temos testemunhado, é muito mais democrática do que os Estados Unidos.
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Eis um episódio típico da América.
Num aeroporto, um homem vermelho de indignação ao ser informado do cancelamento do seu voo grita agressivo para a jovem funcionária uniformizada do outro lado do balcão: “Do you know who you’re talking to?!!!” (Você sabe com quem está falando?). Calmamente a moça pegou o microfone e anunciou: “Tem um sujeito aqui que não sabe quem ele é! Alguém pode me ajudar a descobrir quem é esse ‘son of a bitch’ (fdp)?”.
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Nos sistemas fundados na extrema desigualdade - pense no Brasil escravocrata -, a superioridade estava no corpo: na cor, no gênero, na idade... Estava em tudo.
Quando vivi com os índios apinajés, eu andava de bermuda, chinelo de dedo e raramente vestia uma camisa. No entanto, todos me chamavam de “patrão”. Um dia, perguntei de onde vinha esse senhorio. A resposta foi curta e clara: “Pelo seu jeito”!
Neste caso, o velho adágio - “as aparências enganam” - foi desmentido. As aparências não enganavam! E quem não entende tais sutilezas recebe a reprimenda do “você sabe com quem está falando?”, que leva a repensar a aparente igualdade do mundo. Furar a fila (ou a bicha) faz parte do mesmo conjunto de rituais de subordinação, os quais ensinam quem são realmente as pessoas com as quais convivemos.
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Nos sistemas relacionais, a qualificação precede a apresentação e a etiqueta requer um intermediário. A autoapresentação é inibida no Brasil, sobretudo quando as distâncias sociais são grandes. O estilo americano do “Como vai, eu sou o Zé da Silva - é muito bom conhecê-lo!” sugere uma igualdade que o nosso viés hierarquizado traduz como confiança: uma liberdade atrevida - uma abusada ousadia.
Se a posição social “está na cara”, como não reconhecer imediatamente um superior? E, ao inverso, como não reagir negativamente a qualquer situação regulada por igualdade, como é o caso da bicha ou da fila?
No Brasil, diz meu amigo Richard Moneygrand, se você quiser causar problema, iguale....
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