sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Pensamento do Dia

 


Quanta água o ChatGPT 'bebe' para responder sua pergunta?

As fotos que você posta nas redes, o filme que vê no streaming, a aposta nos sites de bets, tudo isso é processado em um data center, um centro de armazenamento de dados que funciona como uma espécie de "cérebro" da internet.

E que é também um ávido consumidor de energia.

"Eles funcionam como um computador gigante de alta performance", ilustra Juliano Covas, gerente comercial e de engenharia para o segmento de data centers da América Latina da Corning Optical Communications.

Com corredores cheios de armários de ferros com pilhas de servidores, os data centers demandam muita eletricidade, usada tanto pelas máquinas em si quanto pelo sistema de refrigeração que funciona sem parar para impedir que elas superaqueçam.

Com o aumento da conectividade, essas estruturas se multiplicaram no Brasil nos últimos anos.

Hoje há 162 data centers espalhados pelo país, conforme estimativas da Associação Brasileira de Data Centers (não há dados públicos oficiais), com capacidade instalada em torno de 750MW e 800MW.


Algo dessa magnitude, para efeito de comparação, é semelhante ao consumo de energia de uma cidade de cerca de dois milhões de habitantes, conforme estimativas feitas por técnicos da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) a pedido da reportagem.

Com a popularização do uso da inteligência artificial, contudo, a expansão prevista para a próxima década, deve multiplicar esse número em mais de 20 vezes.

Nessa escala, o segmento de data centers pode se tornar estratégico — foi inclusive mencionado nesta semana pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, como setor que pode ser explorado em conjunto com os Estados Unidos em meio à negociação do tarifaço americano.

Haddad justificou dizendo que o Brasil possui grande oferta de energia pra manter esses centros de processamento de dados funcionando.

De acordo com os números do Ministério de Minas e Energia, a demanda por energia por data centers no Brasil deve chegar a 17.716 MW em 2038, estimativa feita com base nos pedidos de acesso à rede de energia do país enviados pelas empresas à pasta.

Um desses pedidos, que recebeu recentemente o aval do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), é um megaempreendimento de 300 MW, com investimento previsto de R$ 50 bilhões, que deve ser erguido na região do porto do Pecém, no Ceará, para abrigar um data center que estaria gerando interesse em grandes empresas de tecnologia como a chinesa ByteDance, dona do TikTok, conforme noticiou a agência Reuters.

À reportagem, o TikTok afirmou que no momento não confirma nem nega a informação.

A Casa dos Ventos, responsável pelo projeto, disse que o início da construção está previsto para o segundo semestre de 2025 e que a expectativa é que o complexo entre em operação em 2027.

Usando a mesma analogia do consumo de eletricidade por habitante (que não é uma comparação perfeita, mas serve para dar dimensão da magnitude), a demanda por energia projetada para os data centers em 2038 equivaleria à de uma cidade de 43 milhões de habitantes, quase quatro vezes a população da cidade de São Paulo (11,5 milhões, conforme o Censo 2022).

Mas o que isso significa — qual vai ser o impacto desse crescimento?


Qualquer aumento na produção de energia elétrica, ainda que renovável, gera algum tipo de impacto ambiental, que pode inclusive afetar negativamente as populações que vivem próximo às usinas (leia mais abaixo).

No caso dos data centers, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontaram que hoje é difícil fazer essa estimativa com precisão, especialmente com a disseminação da inteligência artificial.

Data centers que têm a capacidade de treinar, implementar e disponibilizar aplicações e serviços de IA são equipados com circuitos eletrônicos com chips de alto desempenho (como o H100 da Nvidia) que consomem muito mais energia do que os tradicionais.

O quanto mais, contudo, hoje ainda é difícil dizer. Cientistas que têm se dedicado a tentar estimar o consumo de energia — e o impacto ambiental como um todo — afirmam que a quantidade de informações compartilhadas pelas empresas de tecnologia e operadores de data centers não é suficiente para fazer um cálculo acurado.

Não se sabe, por exemplo, em que capacidade os data centers operam — se consomem algo perto de toda a energia que a infraestrutura dispõe ou muito menos que isso.

Outro dado considerado importante que não é compartilhado pelas empresas é qual percentual dos servidores é usado para treinar os modelos e para a operação de fato dos chatbots, a chamada "inferência", processo usado para gerar o texto de resposta.

Ou ainda quais data centers são usados para esse tipo de serviço.

"Os data centers são caixas pretas", diz Alex de Vries, fundador do Digiconomist, projeto que há uma década estuda as consequências não-intencionais das tendências digitais.

"Nós estamos conversando por Zoom agora e eu não faço ideia em que parte do mundo estão os servidores que estão processando a chamada", ilustra o economista, que mora nos arredores de Amsterdam e pesquisa o consumo de energia e o impacto ambiental da IA como parte do doutorado na Vrije Universiteit Amsterdam.

De Vries tenta calcular o uso de eletricidade a partir dos chips da maior fornecedora hoje para a indústria de IA, a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC), levando em consideração o volume de chips vendidos pela empresa e fazendo suposições sobre a capacidade utilizada dos data centers onde eles operam, a eficiência do sistema de refrigeração e os demais parâmetros para os quais não há informações divulgadas.

"É um desvio enorme para se chegar a algo que deveria ser muito simples de obter", ele comenta.

"As empresas sabem exatamente quanto de energia seus sistemas de IA estão usando, eles apenas optam por não publicar essa informação", completa.

Com o cálculo, ele chega em uma estimativa do consumo global de energia pela inteligência artificial, que no ano passado se comparava a toda a eletricidade usada na Holanda.

"Em 2025 esse número deve dobrar, a inteligência artificial vai consumir duas vezes mais energia do que um país como a Holanda", afirma De Vries.

O economista tem advogado por mais transparência por parte das empresas de tecnologia, argumentando que hoje é difícil confrontar os custos e benefícios da inteligência artificial.

"Enquanto isso, a demanda por energia está crescendo tão rápido. Nunca vimos nada parecido antes", ressalta De Vries.

Fabro Steibel, que é diretor-executivo do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), pontua que o uso de data centers no Brasil é muito diferente do que se observa em países como os EUA, por exemplo, onde algumas dessas instalações são usadas para treinar modelos de linguagem grandes (LLM, na sigla em inglês) como o ChatGPT, Claude e Gemini.

"A gente não é 'big techs'", ele pondera, emendando que a comparação que ficou famosa no último ano, de que uma pergunta ao ChatGPT consumiria algo semelhante a uma garrafa d'água, não é generalizável para o setor como um todo.

"Isso não foi inventado, mas é um caso bem específico, em um determinado contexto", completa.

Essa ideia nasce, segundo ele, a partir de uma reportagem do Washington Post de setembro de 2024 que repercutia um estudo de pesquisadores da Universidade da California, Riverside com uma estimativa do gasto de água para que o chatbot escreva um email de 100 palavras (519 ml).

O próprio texto destaca que o consumo de água varia a depender do sistema de refrigeração usado pelo data center e lista diferentes estimativas a depender do Estado americano em que estivesse localizado, indo de 235 ml no Texas a 1.468 ml em Washington.

O consumo de água nos data centers se dá basicamente de duas formas: indireta, quando a energia usada na instalação vem de hidrelétricas, e direta, quando o recurso é usado no sistema de refrigeração do prédio.

Há dois modelos bastante diferentes de refrigeração, entretanto. Um deles usa uma torre de resfriamento em que a água que passa pelo circuito evapora, criando a necessidade de adição de água pura constantemente ao sistema.

Nos Estados Unidos, que concentra cerca de três mil data centers, o uso desse sistema tem causado impacto em pequenas cidades pelo país e gerado atritos entre as populações locais e grandes empresas de tecnologia.

O segundo é um sistema de refrigeração de ciclo fechado, em que o uso de água é significativamente menor.

Esse, segundo a assessoria da Casa dos Ventos, será o modelo utilizado no grande data center previsto para ser construído no Ceará. A empresa afirmou ainda que o data center terá acesso exclusivo "a 300MW de energia fornecida por parques eólicos e solares".

Mesmo as energias renováveis, contudo, têm algum tipo de impacto, ainda que em termos de emissões de gases de efeito estufa elas sejam muito menos danosas do que os combustíveis fósseis.

Há casos em que o barulho das turbinas eólicas, por exemplo, chega a causar depressão, insônia e surdez em quem mora nas proximidades.

Ou conflitos territoriais entre as empresas e comunidades locais, que são tema de pesquisa da professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) Adryane Gorayeb, que é também membro do Observatório da Energia Eólica.

Em uma das comunidades estudadas por ela, localizada no litoral do Ceará, o empreendimento aterrou uma das lagoas entre dunas que era usada para pesca durante o inverno, comprometendo a subsistência da população local, e bloqueou a única via que os moradores usavam para sair e entrar no vilarejo, forçando-os a escalar dunas mais altas para se deslocarem.

"Muitas das comunidades tradicionais do litoral impactadas pela construção de usinas vivem uma rotina de ameaças aos seus direitos mais básicos, desde acesso à água, alimentos e à terra", comenta.

O Observatório da Energia Eólica recentemente expandiu seu escopo para pesquisar também os impactos da energia solar, que vão desde consumo de água para lavar os painéis até uso de agrotóxicos na manutenção da vegetação que cresce abaixo das placas solares.

Fabro Steibel, da ITS, argumenta que o Brasil está produzindo "soluções locais" na construção de uma infraestrutura local voltada para a inteligência artificial com potencial de produzir impacto ambiental significativamente menor do que o observado em países como os EUA.

"A necessidade faz a solução. Se eles [big techs] têm todo o equipamento à disposição, não têm incentivo nenhum de revolucionar. A gente não tem esse recurso", destaca.

E cita como exemplo a previsão, na recém-aprovada lei de fomento à IA aprovada em Goiás, do uso de biometano para produção de energia para data centers. O ITS coordenou a consulta pública realizada durante a elaboração da proposta.

"O data center movido a biometano existe? Não, ele é outra frequência, outra coisa. Mas pode existir. E o biometano tá ali, é o que sobra da soja e do milho."

Goiás espera se tornar o primeiro Estado do país a usar os chips mais avançados da Nvidia, o Blackwell B200, que foram encomendados pelo Centro de Excelência em IA da Universidade Federal de Goiás (UFG). O objetivo é integrá-los em oito supercomputadores que serão usados em cerca de 70 projetos de pesquisa.

A reportagem tentou contato com o Centro de Excelência em IA da universidade pedindo detalhes sobre a estimativa de consumo de energia da nova estrutura, mas não teve retorno.
Camilla Veras Mota

Cadê o ESG?

O fim do mundo saiu de moda. Setores econômicos expressivos estavam avançando no seu compromisso socioambiental. O ESG (Ambiental, Social e Governança) vinha mostrando uma conscientização do andar superior do PIB com os impactos da mudança climática sobre os negócios e a natureza. A novidade estava no “G” e significava que o cuidado social e ambiental seria incorporado aos valores fundantes do setor privado, indo além do greenwashing.

No entanto, em tempos de tarifaço o fim do mundo pode esperar. Pelo menos, é assim que pensa o mercado. A bem da verdade, nada de novo no front capitalista. Os conflitos comerciais são parte da busca normal por lucro. Como se não bastasse, várias dessas disputas ganham alcance geopolítico com ameaças militares. Contudo, Trump conseguiu botar mais pimenta nesse vatapá global.


A Europa estava na frente na corrida pelo novo normal dos negócios. Segundo um estudo de 2023 da PricewaterhouseCoopers – PwC, cerca de 60% dos ativos de fundos mútuos de investimento europeus estariam em carteiras baseadas em princípios ESG até 2025 (US$10 trilhões só na Europa). Em outros países, como os Estados Unidos, o ESG ainda enfrentava resistência entre os acionistas ávidos por dividendos e os CEOs motivados por bônus anuais expressivos (todos atentos ao curto prazo).

Bem ou mal, os mercados – e seus governos – vinham acordando para aquilo que o Secretário-Geral da ONU Antonio Guterres chamara de “extermínio em massa” ou de “caos climático irreversível”, quando não haverá mais lucro, bônus, empresa nem mercado.

A guerra da Ucrânia jogou um balde de água fria no aquecimento global, esquentando o clima entre russos e europeus. Trocou-se o debate climático pela corrida armamentista e a retomada da matriz energética não renovável. Depois disso, só a OTAN demonstra alguma importância enquanto organismo multilateral. A ONU, cada vez mais escanteada desde o fim da Guerra Fria, perdeu ainda mais voz e voto durante a crise de Gaza. Agora é cada um por si.

O tarifaço de Trump atingiu em cheio os mecanismos do mercado globalizado, baseado na indústria, no agro, petróleo e no sistema financeiro convencional. É um tiro de misericórdia no modelo de economia mundial pós Segunda Guerra. As ameaças ianques põem em dúvida a lealdade interna entre os membros de blocos como União Europeia, Mercosul, BRICS, ALCA, G7, G20 e OMC, fragilizando inclusive a confiança entre aliados históricos como Rússia e China, sobrando balas perdidas para o Brasil e a Índia.

Às vésperas de uma COP30 na Amazônia, setores políticos antiquados mundo afora correm para raspar o tacho da velha economia, amparados por um balaio tecnológico anarcodigital (acham-se pioneiros da Nova Era). Sejamos francos, o que persiste, mesmo entre as big techs, ainda são os valores colonialistas do século XV, guiados pela desigualdade social e devastação da natureza – progressivamente turbinados pela pólvora, pelas caravelas, pela máquina a vapor, eletricidade, comunicações, internet e agora pela IA. A situação está mais para um esgotamento de um velho modelo do que para o surgimento de algum novo paradigma disruptivo. O que vemos no futuro é o passado.

A Terra é um organismo vivo, em permanente transformação. Enquanto continuamos passando boiadas, em meio a guerras e tarifaços, a natureza não dá mostras de se comover com as distrações humanas rudimentares. Nesse cenário, o ESG ainda representa as capacidades do mercado de interpretar a realidade e influenciar uma prosperidade sustentável.

Cortina de fumaça sobre golpismo ilude quem a criou

É um pouco angustiante acompanhar a evolução do entendimento dos conservadores sobre as movimentações antidemocráticas de 2022 e 2023. No começo, vemos algum estranhamento e mal-estar com os acampamentos em frente aos quartéis. Em 2023, o quebra-quebra do 8 de Janeiro é tão rejeitado que a principal explicação para ele era tratar-se de uma armadilha desenhada pela esquerda. A própria existência dos planos golpistas é inicialmente negada, de tão abjeta. Mas, aos poucos, uma cortina de fumaça vai sendo lançada, e as verdades objetivas desaparecem — até para os atores que provocaram o encobrimento.

No livro clássico de história militar “Overlord” (Simon & Schuster, 1984), o historiador britânico Max Hastings descreve os procedimentos adotados pelas forças aliadas na invasão da Normandia em 1944, destacando as táticas sofisticadas de confusão e dissimulação empregadas para encobrir a verdadeira natureza da operação.


A mais conhecida dessas táticas foi o uso de cortinas de fumaça lançadas por navios britânicos ao longo da costa, com o objetivo de proteger as forças de desembarque e ocultar os movimentos das embarcações de apoio. Outras estratégias de engano operaram em escala ainda mais ambiciosa. A mais notável foi a Operação Fortitude, uma manobra gigantesca de desinformação que criou exércitos fictícios, movimentou tanques infláveis, emitiu transmissões falsas e usou agentes duplos para convencer os alemães de que o desembarque principal ocorreria não na Normandia, mas em Pas-de-Calais. Hastings observa que os alemães “relutaram em transferir reforços para a Normandia, mesmo dias depois do desembarque real”, tamanha a eficácia do engodo.

A cortina de fumaça lançada na guerra não foi apenas física, mas também de comunicação — uma sobreposição de sinais falsos e distrações que ocultou a realidade sob a dissimulação construída meticulosamente. Algo semelhante ocorre na política brasileira: as movimentações antidemocráticas, inicialmente rejeitadas por setores conservadores, foram aos poucos ofuscadas por críticas e pelo realce a detalhes, até que finalmente desapareceram os fatos.

O 8 de Janeiro foi inteiramente desconstruído. Primeiro, enfatizou-se que as forças de segurança foram omissas e que o Ministério da Justiça sumiu com imagens de câmeras, lançando a suspeita de que tudo fora armado: ou era uma armadilha para estimular a manifestação a desandar ou o próprio quebra-quebra era ação de infiltrados de esquerda (24% da população brasileira acredita nessa tese conspiratória). Em seguida, o discurso conservador enfatizou as penas elevadas da Justiça e destacou entre os presos as mães de família e os idosos, como se fossem o perfil demográfico dominante.

Ao final, os conservadores consolidaram o entendimento de que o 8 de Janeiro não passou de uma manifestação de pessoas de bem, ordeiras, que saiu um pouco do controle, provavelmente por indução do governo Lula ou de infiltrados de esquerda. A agitação golpista nos acampamentos, a articulação com os generais golpistas, o objetivo de criar caos para induzir uma intervenção militar, o tombamento de torres de transmissão, o bloqueio de refinarias de petróleo, a paralisação de rodovias, tudo isso desapareceu sob a fumaça.

Aconteceu o mesmo com as minutas do golpe. No princípio, tudo era mentira, e elas nem sequer existiam. Depois, não passavam de conjectura. Acrescentou-se em seguida que tudo era constitucional, que, se fosse efetivado, passaria pelo rito de consultar o Conselho da República, o Conselho de Defesa e enviar ao Congresso Nacional. Como poderia haver tentativa de golpe sem Exército nas ruas? Onde estava o erro em cogitar acionar um mecanismo previsto na Constituição? Assim, sob tanta distração, desapareceu a realidade: a medida consistia em intervir no TSE para reverter o resultado eleitoral e prender um ministro do Supremo — e só não foi tentada porque o Exército a considerou golpista.

Há, porém, uma diferença crucial entre as cortinas de fumaça da guerra e da política. Enquanto os estrategistas militares sabiam exatamente o que encobriam, na política a névoa narrativa parece enganar os próprios autores. A ênfase em detalhes laterais — como o perfil dos manifestantes ou eventuais falhas processuais — desloca o foco dos fatos objetivos, que são desaprendidos com a repetição do discurso. O que começa como dissimulação deliberada se transforma, com o tempo, em crença genuína.

Não é tão diferente do mecanismo pelo qual a esquerda jogou tanta fumaça no esquema de corrupção que ligava Petrobras, empreiteiras e financiamento eleitoral, a ponto de hoje, para ela, parecer que tudo aquilo provavelmente não existiu ou não passou de pretexto para prender Lula e impedir que as empreiteiras seguissem fazendo o Brasil se desenvolver. Só que a cegueira induzida dos conservadores é mais grave que a cegueira induzida da esquerda, porque, no caso dos conservadores, o que desaparece é a ameaça à própria democracia.

De golpista a mártir: o teatro político de Bolsonaro

Faz parte das estratégias centrais dos novos movimentos de direita, que ao redor do mundo ameaçam a democracia, apresentar a si e seus líderes como vítimas. Donald Trump foi o precursor. O bilionário, que ao longo da vida violou repetidas vezes e de forma comprovada as leis, afirma estar sendo perseguido por um sistema judiciário injusto e politizado. Agora, porém, ele estaria se defendendo. Essa é sua justificativa para os ataques a figuras e estruturas centrais da democracia, que se baseia na divisão do poder e das decisões. Quando essa divisão deixa de existir, também deixa de existir a democracia.

O ex-presidente do Brasil Jair Bolsonaro e seu clã – admiradores de longa data e alunos aplicados do atual presidente dos EUA – tentam copiar essa estratégia de inversão entre agressor e vítima. Querem fazer os brasileiros e o resto do mundo acreditarem que não são eles os autores de uma tentativa de golpe de Estado, mas sim as vítimas de um suposto juiz ditatorial no STF. Já não resta dúvida de que o golpe de Bolsonaro só fracassou devido à resistência de alguns generais que não quiseram embarcar na aventura do capitão.


Diante desse fato, o clã Bolsonaro passou a investir em outra frente de combate: manter sua base mobilizada por meio de confusões calculadas, distrações constantes e imagens nas redes sociais que retratem Bolsonaro como a verdadeira vítima. Era exatamente esse o objetivo quando Bolsonaro, com a ajuda de seus filhos, violou deliberadamente a ordem judicial clara do ministro Alexandre de Moraes de se abster do uso das redes sociais, provocando assim a imposição da prisão domiciliar. Seria ingênuo acreditar que os advogados de Bolsonaro não o alertaram sobre essa consequência.

No círculo de Bolsonaro sabe-se muito bem que a tentativa de golpe permanece abstrata no imaginário da maioria dos brasileiros e, portanto, também facilmente negável. Já as imagens de um ex-presidente com tornozeleira eletrônica e em prisão domiciliar são concretas e permanecem na memória. Nas redes do bolsonarismo (e do trumpismo), hermeticamente fechadas à realidade e a qualquer forma de complexidade, essas imagens têm o efeito desejado: Jair, o salvador do Brasil, está sendo perseguido pelo poder.

Essa narrativa não se destina apenas ao público brasileiro, mas também a Donald Trump e seus capangas, como o secretário de Estado americano Marco Rubio. A tentativa de Trump de exercer pressão sobre o governo Lula por meio da ameaça das tarifas de importação mais altas do mundo não foi bem recebida no Brasil. A sociedade brasileira pode estar politicamente extremamente polarizada – mas a maioria dos brasileiros rejeita tentativas de ingerência externa nos assuntos internos do país; e compreende (espera-se!) o que significa separação de poderes.

Foi um erro de cálculo do clã Bolsonaro imaginar que, com ameaças totalmente desproporcionais, seria possível exercer tamanha pressão a ponto de fazer com que a denúncia contra Bolsonaro fosse arquivada ou que Lula concedesse anistia aos golpistas. No círculo de Bolsonaro isso parece já ter sido compreendido. Agora, trata-se de continuar alimentando a espiral de escalada e manter Trump engajado. O presidente americano deve continuar acreditando que há uma "caça às bruxas" contra Bolsonaro – assim como teria havido contra ele, o grande Donald.

É absolutamente legítimo criticar que o Supremo Tribunal Federal do Brasil seja sobrecarregado com decisões que pertencem ao campo da política. Também é válida a crítica às decisões monocráticas e ao excesso de poder que é atribuído a juízes individuais em casos específicos. O resultado são decisões muitas vezes tidas como impulsivas e excessivas, que colocam os juízes sob fogo cruzado. Cria-se a impressão de que há duelos pessoais entre juiz e acusado. Foi assim no caso Moro vs. Lula; e agora se repete no caso Moraes vs. Bolsonaro.

Por maiores que sejam os méritos de Moraes em defesa da democracia e do Estado de Direito, por não se deixar intimidar por aspirantes a ditador, seu protagonismo involuntário acaba servindo aos bolsonaristas. Pois, naturalmente, apresentam a situação como se Moraes estivesse em uma cruzada pessoal contra Bolsonaro e seus seguidores – quando, na verdade, trata-se de um processo judicial contra criminosos.

Seria bom que o caso Bolsonaro chegasse logo ao fim e que o ex-presidente fosse condenado a uma pena de prisão justamente merecida (que, como de costume no Brasil, ele de todo modo não cumpriria integralmente). Também seria desejável que os conservadores brasileiros se libertassem do feitiço maligno de Bolsonaro e de seu clã. Há tempo demais o país não se ocupa com a modernização necessária em quase todas as áreas (que também não está sendo promovida pelo governo Lula), mas sim com os assuntos familiares e as fantasias de onipotência desse senhor paranoico e medíocre.

Bolsonaro, o espelho do 'homem da providência'

Depois de O filho do século e O homem da providência, a Editora Intrínseca acaba de lançar em português Os últimos dias da Europa. É o terceiro livro da tetralogia escrita pelo escritor italiano Antonio Scurati – uma reconstrução a um só tempo crítica e romanceada do ditador italiano Benito Mussolini, unindo ficção, ampla base documental e uma rigorosa pesquisa histórica sobre a ascensão do fascismo em um período de crise das democracias liberais e dos Estados de Direito, nas primeiras décadas do século 20, e sobre o declínio da direita autoritária após a derrota da Alemanha e da Itália na Segunda Guerra Mundial.

Além de colunista do jornal milanês Corriere della Sera – um dos mais importantes da imprensa europeia – e do respeitado La Stampa, criado em Turim há 158 anos, Scurati é professor de Literatura Comparada na Universidade de Comunicação e Línguas (IULM) de Milão, e sua tetralogia – que tem a interação entre ideologia autoritária e Estado como seu fio condutor – é fascinante. Dos diferentes ângulos, períodos históricos e bibliográficos dessa sua obra, destaca-se o segundo volume – O homem da providência, livro que trata da consolidação do regime fascista na Itália. Para o leitor brasileiro, a razão desse destaque é, guardadas as devidas distâncias históricas, a proximidade entre Mussolini e sua versão tupiniquim, Jair Messias Bolsonaro – um político da extrema direita que jamais foi educado ou adestrado nos valores republicanos.


Este último é uma cópia ainda mais borrada do que o primeiro, a começar pelo fato de ambos sofrerem de severa prisão de ventre – o primeiro, em decorrência de uma úlcera duodenal, e o segundo, em razão das facadas que o atingiram no atentado de Juiz de Fora. Questões de necessidades físicas à parte, ambos, igualmente, têm o mesmo lema político – “Deus, Pátria e Família”, repetem os bolsonaristas, traduzindo do italiano o lema fascista “Dei, Patria e Famiglia“.

Ambos também se valem da defesa dos valores familiares, dos costumes e da tradição como instrumento político para “reeducar o povo”. E como para Scurati “o fascismo é uma religião e o verbo sagrado de todas as religiões, desde sempre, é obedecer”, os dois também têm forte penetração em meios religiosos. Enquanto o primeiro era apoiado por “acólitos e idióticos”, segundo o escritor italiano, o outro é muito popular entre militares de baixa patente e evangélicos e seus pastores de fala gutural, com o olhar voltado ao dízimo e o uso inconsequente de citações bíblicas para oferecer ilusões.

Não bastasse isso, enquanto Mussolini promovia a expulsão do funcionalismo da administração pública que não aderisse às diretrizes políticas do governo fascista e ao mesmo tempo alimentava o medo e transformava-o em ódio ao outro, a quem pensa racionalmente, e afirmava que a cultura universitária deveria “ser assimilada rapidamente e expulsa com a mesma velocidade”, em seu governo, Bolsonaro partiu da palavra para a ação. Uma de suas iniciativas foi asfixiar financeiramente as universidades federais e os centros públicos de pesquisa do País.

Carismático, mas culturalmente limitado, Mussolini atraía, entre outros, “fanáticos incapazes de ver com clareza as próprias ideias”, pessoas “broncas, medíocres, obtusas e ignorantes” fascinadas pela marcha sobre Roma, lembra o autor italiano. Para quem viu pela televisão a passeata entre as portas do Comando do Exército em Brasília e os ataques tresloucados das hordas bolsonaristas ao Palácio do Planalto, aos prédios do Senado e da Câmara e ao plenário do Supremo Tribunal Federal no 8 de janeiro de 2023, as palavras com que Scurati descreve a marcha sobre Roma dos fascistas italianos, em 1922, também não podem ser usadas para traduzir o perfil dos bolsonaristas fanáticos que atentaram contra a democracia?

Uma das passagens mais envolventes de O homem da providência está na menção à incompatibilidade entre inteligência e fascismo – uma suposição feita pela primeira vez por Benedetto Croce, um importante político de formação liberal e respeitado professor de filosofia durante a primeira metade do século 20. O modo como essa incompatibilidade entre cultura e fascismo foi apontada pelos intelectuais antifascistas durante os anos de 1920 e 1930 na Itália, ao denunciar os “raciocínios mal desenvolvidos de seus adversários mussolinistas para justificar deploráveis violências e prepotências”, como a censura à imprensa, também pode ser identificada entre nós no fenômeno bolsonarista, onde extremismo ideológico e cultura são como água e azeite.

Ambos, Mussolini e Bolsonaro, se destacam por uma visão simplificadora dos fatos, por desacreditar o Judiciário e por análises rasteiras e enviesadas dos acontecimentos, reduzindo a complexidade dos problemas reais a um único inimigo – os comunistas, os corruptos, os vagabundos e os não patriotas, por exemplo. Ou seja, “os desajuizados que renegam a Pátria”. Por consequência, cada um a seu modo almeja a submissão de todos, ao mesmo tempo em que dissemina a barbárie, sob a forma do culto à violência física e/ou simbólica fundada na premissa do confronto permanente – quem não é amigo é inimigo e, como tal, tem de ser afastado, expulso e até assassinado.

Foi o que ocorreu, por exemplo, com o líder socialista Giacomo Matteotti, morto por milícias fascistas após ter denunciado a fraude nas eleições de 1924. E, também, quando Bolsonaro elogiou, no plenário da Câmara dos Deputados, um de seus ídolos, o coronel Brilhante Ustra, torturador do regime militar, por ter sido o que classificou como “pavor de Dilma Rousseff” no período em que ela ficou presa nos porões da ditadura. E, igualmente, quando os militares golpistas de 8 de janeiro de 2023 cogitaram assassinar o presidente, o vice-presidente da República e um ministro do STF.

Em suma, o segundo e o terceiro livros da tetralogia de Scurati têm como fio condutor a análise da concepção fascista de uma hierarquia política e governamental baseada na vontade do chefe – o Duce. Como dissociar essa postura antiliberal e antidemocrática das concepções políticas autoritárias de Bolsonaro, que em vários discursos fez as seguintes afirmações: “Eu respeito as instituições, mas devo lealdade apenas a vocês, o povo. Vocês tiveram coragem de romper o continuísmo, o populismo, a demagogia que esse Brasil viveu ao longo dos últimos 30 anos” (2019); “Eu sou a Constituição” (2020); “A temperatura está subindo. O Brasil está no limite. O pessoal fala que eu devo tomar uma providência. Estou aguardando o povo dar uma sinalização” (2021); “Não roubei, não matei ninguém, não trafiquei ninguém. Isso aqui [a tornozeleira eletrônica] é um símbolo da máxima humilhação. Sou uma pessoa inocente. O que vale para mim é a lei de Deus” (2025)?

As três primeiras falas foram feitas quando estava no poder, a que chegou menos por seu talento e capacidade estratégica, mas por oportunismo, torpeza e desídia. Primando não mais pela arrogância, mas agora por um estilo choroso, a última fala foi feita após os crimes a ele imputados pela Procuradoria Geral da República em processo aberto no Supremo Tribunal Federal, como liderança de organização criminosa, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, danos contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.

O personagem central de O homem da providência é um político hoje morto que serviu de espelho para outro ainda vivo – e que depende de uma improvável anistia para sobreviver na vida política. É por isso, mesmo estando o “mito” nos dias de hoje muito mais próximo de uma cela em algum presídio do que uma sala no Palácio do Planalto, que sua leitura é imperdível.