sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Bolsonaro, o espelho do 'homem da providência'

Depois de O filho do século e O homem da providência, a Editora Intrínseca acaba de lançar em português Os últimos dias da Europa. É o terceiro livro da tetralogia escrita pelo escritor italiano Antonio Scurati – uma reconstrução a um só tempo crítica e romanceada do ditador italiano Benito Mussolini, unindo ficção, ampla base documental e uma rigorosa pesquisa histórica sobre a ascensão do fascismo em um período de crise das democracias liberais e dos Estados de Direito, nas primeiras décadas do século 20, e sobre o declínio da direita autoritária após a derrota da Alemanha e da Itália na Segunda Guerra Mundial.

Além de colunista do jornal milanês Corriere della Sera – um dos mais importantes da imprensa europeia – e do respeitado La Stampa, criado em Turim há 158 anos, Scurati é professor de Literatura Comparada na Universidade de Comunicação e Línguas (IULM) de Milão, e sua tetralogia – que tem a interação entre ideologia autoritária e Estado como seu fio condutor – é fascinante. Dos diferentes ângulos, períodos históricos e bibliográficos dessa sua obra, destaca-se o segundo volume – O homem da providência, livro que trata da consolidação do regime fascista na Itália. Para o leitor brasileiro, a razão desse destaque é, guardadas as devidas distâncias históricas, a proximidade entre Mussolini e sua versão tupiniquim, Jair Messias Bolsonaro – um político da extrema direita que jamais foi educado ou adestrado nos valores republicanos.


Este último é uma cópia ainda mais borrada do que o primeiro, a começar pelo fato de ambos sofrerem de severa prisão de ventre – o primeiro, em decorrência de uma úlcera duodenal, e o segundo, em razão das facadas que o atingiram no atentado de Juiz de Fora. Questões de necessidades físicas à parte, ambos, igualmente, têm o mesmo lema político – “Deus, Pátria e Família”, repetem os bolsonaristas, traduzindo do italiano o lema fascista “Dei, Patria e Famiglia“.

Ambos também se valem da defesa dos valores familiares, dos costumes e da tradição como instrumento político para “reeducar o povo”. E como para Scurati “o fascismo é uma religião e o verbo sagrado de todas as religiões, desde sempre, é obedecer”, os dois também têm forte penetração em meios religiosos. Enquanto o primeiro era apoiado por “acólitos e idióticos”, segundo o escritor italiano, o outro é muito popular entre militares de baixa patente e evangélicos e seus pastores de fala gutural, com o olhar voltado ao dízimo e o uso inconsequente de citações bíblicas para oferecer ilusões.

Não bastasse isso, enquanto Mussolini promovia a expulsão do funcionalismo da administração pública que não aderisse às diretrizes políticas do governo fascista e ao mesmo tempo alimentava o medo e transformava-o em ódio ao outro, a quem pensa racionalmente, e afirmava que a cultura universitária deveria “ser assimilada rapidamente e expulsa com a mesma velocidade”, em seu governo, Bolsonaro partiu da palavra para a ação. Uma de suas iniciativas foi asfixiar financeiramente as universidades federais e os centros públicos de pesquisa do País.

Carismático, mas culturalmente limitado, Mussolini atraía, entre outros, “fanáticos incapazes de ver com clareza as próprias ideias”, pessoas “broncas, medíocres, obtusas e ignorantes” fascinadas pela marcha sobre Roma, lembra o autor italiano. Para quem viu pela televisão a passeata entre as portas do Comando do Exército em Brasília e os ataques tresloucados das hordas bolsonaristas ao Palácio do Planalto, aos prédios do Senado e da Câmara e ao plenário do Supremo Tribunal Federal no 8 de janeiro de 2023, as palavras com que Scurati descreve a marcha sobre Roma dos fascistas italianos, em 1922, também não podem ser usadas para traduzir o perfil dos bolsonaristas fanáticos que atentaram contra a democracia?

Uma das passagens mais envolventes de O homem da providência está na menção à incompatibilidade entre inteligência e fascismo – uma suposição feita pela primeira vez por Benedetto Croce, um importante político de formação liberal e respeitado professor de filosofia durante a primeira metade do século 20. O modo como essa incompatibilidade entre cultura e fascismo foi apontada pelos intelectuais antifascistas durante os anos de 1920 e 1930 na Itália, ao denunciar os “raciocínios mal desenvolvidos de seus adversários mussolinistas para justificar deploráveis violências e prepotências”, como a censura à imprensa, também pode ser identificada entre nós no fenômeno bolsonarista, onde extremismo ideológico e cultura são como água e azeite.

Ambos, Mussolini e Bolsonaro, se destacam por uma visão simplificadora dos fatos, por desacreditar o Judiciário e por análises rasteiras e enviesadas dos acontecimentos, reduzindo a complexidade dos problemas reais a um único inimigo – os comunistas, os corruptos, os vagabundos e os não patriotas, por exemplo. Ou seja, “os desajuizados que renegam a Pátria”. Por consequência, cada um a seu modo almeja a submissão de todos, ao mesmo tempo em que dissemina a barbárie, sob a forma do culto à violência física e/ou simbólica fundada na premissa do confronto permanente – quem não é amigo é inimigo e, como tal, tem de ser afastado, expulso e até assassinado.

Foi o que ocorreu, por exemplo, com o líder socialista Giacomo Matteotti, morto por milícias fascistas após ter denunciado a fraude nas eleições de 1924. E, também, quando Bolsonaro elogiou, no plenário da Câmara dos Deputados, um de seus ídolos, o coronel Brilhante Ustra, torturador do regime militar, por ter sido o que classificou como “pavor de Dilma Rousseff” no período em que ela ficou presa nos porões da ditadura. E, igualmente, quando os militares golpistas de 8 de janeiro de 2023 cogitaram assassinar o presidente, o vice-presidente da República e um ministro do STF.

Em suma, o segundo e o terceiro livros da tetralogia de Scurati têm como fio condutor a análise da concepção fascista de uma hierarquia política e governamental baseada na vontade do chefe – o Duce. Como dissociar essa postura antiliberal e antidemocrática das concepções políticas autoritárias de Bolsonaro, que em vários discursos fez as seguintes afirmações: “Eu respeito as instituições, mas devo lealdade apenas a vocês, o povo. Vocês tiveram coragem de romper o continuísmo, o populismo, a demagogia que esse Brasil viveu ao longo dos últimos 30 anos” (2019); “Eu sou a Constituição” (2020); “A temperatura está subindo. O Brasil está no limite. O pessoal fala que eu devo tomar uma providência. Estou aguardando o povo dar uma sinalização” (2021); “Não roubei, não matei ninguém, não trafiquei ninguém. Isso aqui [a tornozeleira eletrônica] é um símbolo da máxima humilhação. Sou uma pessoa inocente. O que vale para mim é a lei de Deus” (2025)?

As três primeiras falas foram feitas quando estava no poder, a que chegou menos por seu talento e capacidade estratégica, mas por oportunismo, torpeza e desídia. Primando não mais pela arrogância, mas agora por um estilo choroso, a última fala foi feita após os crimes a ele imputados pela Procuradoria Geral da República em processo aberto no Supremo Tribunal Federal, como liderança de organização criminosa, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, danos contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.

O personagem central de O homem da providência é um político hoje morto que serviu de espelho para outro ainda vivo – e que depende de uma improvável anistia para sobreviver na vida política. É por isso, mesmo estando o “mito” nos dias de hoje muito mais próximo de uma cela em algum presídio do que uma sala no Palácio do Planalto, que sua leitura é imperdível.

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