domingo, 31 de março de 2019

Não foi golpe?!

Faz mais de dois anos que os inimigos da ordem e da democracia, escudados na impunidade que lhes assegura o Sr. Chefe do Poder Executivo, vêm desrespeitando as instituições, enxovalhando as Forças Armadas. Na certeza de que ele está a executar uma das etapas do aniquilamento das liberdades cívicas, as Forças Armadas não podem se silenciar diante de tal crime. Minhas tropas, numa hora dessas, marcham para o estado da Guanabara em busca de vitória
Olímpio Mourão Filho, general comandante da 4ª Região Militar, liderou a autodenominada  Operação Popeye, que largou no dia 31 dando início  em direção ao Rio de Janeiro, aonde só chegou como "libertador" em 1º de abril

Auto de fé e linchamento

Quem deseja salvar a Pátria deve pesar as próprias forças e fraquezas. Caso contrário pode acabar nas fogueiras. Após impor em Florença um regime de medo para vencer os corruptos, Savonarola foi às chamas sob vaias. No afã de eliminar todo o luxo, o frade jogou livros ao fogo e abriu sendas para fatos espantosos do século 20 na Alemanha. Profeta cuja arma era o terror, ele não contou com o cansaço popular em sua higiene política.

Quem condena sem as regras do Direito morre sem direitos. Maquiavel fala contra os justiceiros: a corrupção é fato constante mesmo entre pessoas educadas para o bem. “Em todas as cidades e povos há e sempre houve os mesmos desejos e humores, sendo fácil para quem examina com diligência o passado prever o futuro de toda república e aplicar os remédios empregados pelos antigos ou, caso não se encontre nenhum usado por eles, imaginar outros novos segundo os acontecimentos” (Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, livro I).


Ética é o sistema de atitudes e hábitos que se tornam “naturais”. O povo adere a valores positivos ou negativos. Ainda segundo Maquiavel, para mudar hábitos arraigados o governante deve fingir que o costume permanece mesmo quando a sua mudança é querida nos palácios. “Quem deseja reformar o estado de uma cidade, ser aceito e manter a satisfação de todo mundo, necessita manter pelo menos a sombra dos modos antigos, de tal jeito que possa parecer ao povo que não houve mudança nas ordens, embora as novas sejam inteiramente distintas das velhas. A grande maioria dos homens se contenta com as aparências como se fossem realidades e amiúde se deixa influenciar mais pelas coisas que parecem do que por aquelas que são” (Discursos, livro I).

Gabriel Naudé usa a mesma tese para justificar os golpes de Estado.

No Brasil surgem fogueiras acesas por êmulos de Savonarola. Real ou imaginária, a corrupção é amaldiçoada por hábito, não pelos fatos. Quem estuda o empreendimento italiano chamado Mãos Limpas sabe do que falo. De tanto exorcizar a corrupção, a massa hipnotizada se contenta em moer pessoas, sem buscar novas saídas políticas e jurídicas. Brasileiros em massa assumem costumes hostis à democracia e ao Estado de Direito. Um deles é o vezo de atacar, antes do julgamento legal, reputações de acusados.

Lembremos o caso da Escola Base. A lei de Lynch cresce nas redes “sociais”, atos vis ocorrem sem informações corretas e prudência. Na internet se cumpre agora a profecia de Diderot, o grande enciclopedista do século 18: “Temos na sociedade tantos impertinentes papagaios que falam, que falam, que falam sem saber o que dizem, e mostram tanto prazer quando expandem o mal, que o maledicente ou caluniador consegue num dia mil cúmplices” (Apologia do Padre Raynal). Não devemos mascar as palavras: quem banaliza as doutrinas sobre o bem gera o mal.

O costume faz dos indivíduos impiedosas bocas do Destino. O dogmatismo das massas sustenta as piores ditaduras, à direita e à esquerda. “Nos últimos 60 anos, aproximadamente 1,5 milhão de brasileiros tomaram parte em linchamentos. No Brasil, as massas rebeladas matam, ou tentam matar, mais de um suspeito por dia”(Latin America, Awash in Crime, Citizens Impose Their Own Brutal Justice, em The Wall Street Journal, dezembro, 2018).

Os desonestos retiram das mesas o alimento necessário à vida. Larápios públicos ou particulares merecem punições. Movimentos surgiram para a luta contra o roubo dos erários. O Instituto Não Aceito Corrupção, liderado por Roberto Livianu, reúne um programa livre de partidos ou ideologias. Trata-se, naquele coletivo, de pesquisar os fatos em amplas dimensões, além de empreender análises para reduzir a sua efetividade social e política. Temos ali um esforço que merece apoio, pois combate os malefícios da corrupção sem preconceitos. Para vencer qualquer doença é preciso estudo, técnica médica, diálogo respeitoso entre o clínico e a pessoa por ele assistida. Diagnósticos parciais ou apressados causam mais dores ou mortes. Mazelas exigem cuidados não genéricos. Apelar para um só remédio significa piorar o malefício. O ressentimento das massas é desafio, impede soluções. Lutar contra a corrupção requer o contributo dos três Poderes e de setores lúcidos na sociedade. Isoladas, a promotoria ou polícia produzem resultados parciais, inoperantes.

Certas iniciativas da Justiça têm falhas na busca de combater as práticas corrosivas. A entrevista sobre a prisão de Michel Temer concedida pelo Ministério Público e pela Polícia Federal me preocupa. Antes do julgamento definitivo os acusados nela recebem epítetos infamantes, como “líderes de quadrilha”, e adjetivos depreciativos. Se posteriores à condenação definitiva, tais palavras já seriam indevidas. Até contra cidadãos de quem foi retirado o livre movimento é vetada a injúria. Acusados servem como bode expiatório para os acusadores. As falas com apodos aos políticos mostram o costume de mover ressentimentos populares.

Não é de hoje que tal hábito torce ações judiciais no Brasil. Sobral Pinto e demais causídicos, nas ditaduras do século 20, enfrentaram parquets ágeis na hora de acusar, lentos ao corrigir erros. Recordo o tratamento cruel aplicado ao magnífico reitor da Universidade de Santa Catarina dr. Luiz Carlos Cancellier, sem provas contra ele. A UFMG foi invadida e seus dirigentes, humilhados, sem provas. A corrupção (lembro Savonarola) não é vencida com autos de fé, mas com pesquisas minuciosas, cautela, respeito à Carta Magna. O linchamento impera se existe a guerra de todos contra todos.

No Estado de Direito a ira das multidões é afastada e nunca seguida pelos que têm o múnus de zelar por todos e cada um dos cidadãos. Que eles não joguem livros à fogueira, como o dominicano, sobretudo o volume da Constituição.

Bolsonaro e filhos pensam e agem como um bloco

Aqueles que ainda pensam ser possível separar o presidente Jair Bolsonaro de seus filhos, mesmo que apenas na gestão do país, é melhor ir logo tirando o cavalinho da chuva. Os Bolsonaro são um bloco único, monolítico, inseparável e inquebrantável. Suas posições são resultado de um pensamento único, elaborado ao longo de anos, e nenhum dos seus membros sobrevive sem os demais, explica Dado Salem, economista, mestre em Psicologia do Desenvolvimento e sócio da Psiconomia, empresa especializada em gerir questões complexas e sensíveis envolvendo famílias e negócios.


Salem fez um estudo sobre a família do presidente tomando por base entrevistas que cada um deu ao longo dos anos e suas manifestações nas redes sociais. Com esses elementos e com o apoio de um relatório contendo as nuvens de palavras mais repetidas por cada Bolsonaro no Twitter, elaborado em 2016 pela cientista política Mariana Cartaxo, foi possível escrutinar a raiz comum do raciocínio de Jair, Flávio, Carlos e Eduardo.

Os Bolsonaro são o que Salem chama de “família simbiótica indiferenciada”. Eles pensam, sentem e agem como um bloco. São vulneráveis quando separados e se sentem ameaçados pelo mundo externo, o que os torna ainda mais fechados. Têm tendência ao isolamento e possuem uma enorme capacidade de deteriorar relações muito rapidamente. São governados por suas reações emocionais ao ambiente e acabam gerando neles próprios uma previsível ansiedade crônica.

Em famílias assim, o pai não toma qualquer decisão sem ouvir os filhos. O que parece ser o caso de Bolsonaro. Seus filhos, por sua vez, detestam os que se aproximam demais do pai, sobretudo se enxergam nessa aproximação uma tentativa de manipular o patriarca. No caso da família em questão, os filhos têm ciúmes dos que se aproximam para ganhar luz e aparecer aos olhos do público. E torpedeiam sistematicamente o intruso.

Cada um dos filhos cumpre um papel no bloco. O Zero Um, Flávio, o mais velho, é o conciliador e o diplomata, que busca interlocutores para o grupo. “Normalmente é assim que funciona em famílias simbióticas, ao primogênito é dada essa função”, diz Dado Salem. O problema na família Bolsonaro é que Flávio acabou queimado logo na largada. O Zero Dois, Carlos, é o queridinho, o mais ligado ao pai. Tão ligado que acaba confundindo seu próprio papel, queria ser ele próprio o pai da família, o presidente da República. O Zero Três é o “intelectual”, o formulador do bloco, e como tal é respeitado pelos demais.

Nas famílias simbióticas indiferenciadas não existe separação emocional entre seus membros. Eles não são bem desenvolvidos como indivíduos. Sua reatividade emocional é intensa e pode ser disparada por qualquer faísca. Essa característica explica a demissão do ministro Bebianno e o mal-estar criado com o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia. Um elo sustenta o outro, sempre. As relações externas normalmente geram angústia e ansiedade em seus elementos. Para aliviar a tensão, essas famílias geralmente tendem a ser ainda mais unidas e indissolúveis.

A leitura das nuvens de palavras produzidas a partir das suas manifestações nas redes comprova a tese do ideário único. Mariana Cartaxo apurou que as palavras que mais aparecem nos discursos de cada um dos membros do clã são muito parecidas, e três são repetidas por todos os membros da família: “Brasil”, “Contra” e “PSOL”. No caso de Flávio, que até o ano passado era deputado estadual no Rio, a palavra “Polícia” também tem destaque. Desnecessária qualquer explicação.

O resultado dessa simbiose, segundo Dado Salem, é o que todo o Brasil já viu, as decisões de Jair Bolsonaro atendem prioritariamente ao arranjo do grupo familiar. O presidente não governa sozinho, governa com seus filhos. Os ministros e demais assessores compõem o ambiente, mas quem manda são pai e filhos.

Um alerta: o Zero Quatro vem aí. Pesquisa de seu perfil nas redes revela que Renan, 21 anos, estudante de Direito, está crescendo com a mesma retórica, os mesmos slogans e os mesmos ranços dos irmãos e do pai. A única coisa que os separa dos irmãos são as mães diferentes. Mas esse é um detalhe que não significa muita coisa no universo absolutamente masculino dos Bolsonaro. Por isso também a Zero Cinco, Laura, de 8 anos, jamais emergirá.

Brasil e os idos de março


A história não pode ser apagada ou reescrita

A história de um país não pode ser apagada, sequer reescrita: é inegável que o Brasil experimentou longo período de restrição de direitos fundamentais e de repressão violenta e sistemática à dissidência política e aos movimentos sociais. Esse período merece ser recordado, mas não pelos motivos errados e, sim, como forma de valorização das conquistas sociais, especialmente aquelas consagradas pela Constituição Federal de 1988.

Foi a denominada “Constituição Cidadã” que consagrou um conjunto de garantias, direitos fundamentais e princípios que a sociedade hoje sequer imagina viver sem, como a dignidade da pessoa humana, a liberdade de expressão, de imprensa e de associação, o pluralismo político, a cidadania e a separação entre os três poderes da República.


O estado democrático de direito instituído em 1988 e gradualmente fortalecido ao longo de mais de 30 anos, aliado a diversos outros fatores de ordem social, proporcionou um amadurecimento institucional que possibilitou o desenvolvimento de um trabalho harmônico de um conjunto de instituições de fiscalização e controle no combate à corrupção. Como reflexo dessas atividades, a corrupção chegou a ser considerada a principal preocupação dos brasileiros, sendo reputada como maior problema nacional, em pesquisa divulgada em 2017, pelo Latinobarômetro.

O aumento da percepção da corrupção no Brasil nos últimos anos, período de intensas atividades realizadas pelos órgãos de persecução criminal, foi demonstrado também pela Transparência Internacional e revela claramente que, não por obra do acaso, o avanço do combate à corrupção somente foi possível graças à existência de um ambiente democrático, com respeito às liberdades individuais, com instituições funcionando de forma legítima e regular e com uma imprensa livre para investigar e noticiar à sociedade os fatos apurados.

Ao lado disso, a independência do Ministério Público e do Poder Judiciário, garantida não apenas formalmente, mas em fatos concretos, como a escolha do procurador-geral a partir de lista tríplice elaborada pelo próprio Ministério Público e a autonomia orçamentária do órgão, bem como a independência de atuação limitada apenas pela Constituição e pelas leis, constituíram parte do conjunto democrático que impulsionou o combate à corrupção no Brasil.

Esse desenvolvimento progressivo do combate à corrupção foi viabilizado, ainda, por diversas criações e alterações legislativas supervenientes à Constituição Federal de 1988, como a Lei de Improbidade Administrativa (1992), a Lei de Acesso à Informação (2011), a Lei das Organizações Criminosas (2013), a Lei Anticorrupção (2013) e a alteração da Lei de Lavagem de Dinheiro em 2012, demonstrando a relevância da atuação de todos os três poderes da República, com respeito aos princípios constitucionais da separação e da independência entre eles, e a delimitação do sistema de freios e contrapesos, também para a luta contra a corrupção e impunidade.

A verdade é que o trabalho de combate à corrupção, longe de se encerrar com o processo e julgamento dos responsáveis pelos crimes de corrupção, reflete direta e indiretamente na construção de um país melhor, mais justo e igualitário, onde a lei tenha a mesma validade para todos e prevaleça o respeito às instituições democraticamente constituídas, às garantias e liberdades constitucionalmente asseguradas e ao pluralismo de ideias.

Jerusa Burmann Viecili, procuradora da Operação Lava Jato, em Curitiba

Godzilla no México

Considere isto, meu filho: as bombas caíam
sobre a cidade do México
mas ninguém se dava conta.
O ar carregou o veneno através
das ruas e das janelas abertas.
Você estava acabando de comer e via na tv
os desenhos animados.
Eu lia no quarto ao lado
quando soube que íamos morrer.
Apesar da tontura e da náusea me arrastei
até a sala e te encontrei no chão.
Nos abraçamos. Você perguntou o que estava acontecendo
e eu não disse que estávamos no programa da morte
mas sim que íamos começar uma viagem,
mais uma, juntos, e que não tivesse medo.
Ao ir embora, a morte nem sequer
fechou nossos olhos.
O que somos?, você me perguntou uma semana ou um ano depois,
formigas, abelhas, cifras equivocadas
na grande sopa apodrecida do acaso?
Somos seres humanos, meu filho, quase pássaros,
heróis públicos e secretos.
Roberto Bolaño

Desemprego cresce, dívida atinge R$ 5,3 trilhões e o governo não se manifesta

Pesquisa do IBGE com base no índice de fevereiro revela que o desemprego voltou a subir no país e está atingindo 13 milhões de brasileiros e brasileiras. Esse número representa uma diferença para menos de cerca de 1 milhão de postos de trabalho que desapareceram do mapa estatístico. Reportagem de Daiane Costa, O Globo edição de sábado, desenvolve de forma bastante ampla as implicações do resultado negativo. Entre eles a faixa dos que estão procurando trabalho, e não encontrando, revelam sinais de desalento.

A interpretação de estatísticas representa, quando procedente, uma atmosfera difícil, à primeira vista, de ser notada numa primeira leitura. Na minha opinião já na segunda leitura pode-se chegar a conclusões melhores e mais claras.

Por exemplo: admitamos que no mês de março o desemprego tenha ficado estacionado. Mas em fevereiro recuou. Se em março registrar algum impulso positivo, se comparado a fevereiro representa um avanço. Porém se comparado a janeiro representa um retrocesso.


Portanto, em matéria de comparações, há necessidade fundamental de se cotejar números de períodos iguais ao longo do ano. Representa o seguinte: pode haver algum índice ilusório quando se coteja, por exemplo, realidade de março em relação a de fevereiro. Mas é preciso comparar também quanto a situação de janeiro.

Outra coisa. É indispensável quando se manipula uma estatística comparar seu resultado percentual e também o quanto representa em relação ao total da matéria.

Assim, se o Produto Interno Bruto cresceu 2%, indispensável dizer-se o que representa o avanço em número absolutos como em relação ao aumento do número de habitantes etc.

Esta fórmula era sempre defendida pelo ministro Roberto Campos que destacava a exigência de se comparar percentagens com seu efeito em números absolutos. Tenho a impressão que seu neto, Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, situa-se dentro do mesmo pensamento crítico para chegar a um resultado verdadeiro.

Na mesma edição de O Globo, página 20, matéria redigida com base em resultado do Banco Central acentua que a dívida pública do país saltou em março para 5,3 trilhões de reais. Sobre esse endividamento, o governo paga juros anuais, taxa Selic, de 6,5%. Nos últimos 10 anos, a dívida pública triplicou. Hoje representa 77% do PIB. A tendência aponta para um aumento ainda maior nos próximos meses, em decorrência de o governo estar capitalizando juros. Isto é, fornecendo mais papeis ao mercado em face de não possuir recursos para pagar cerca de 300 bilhões de reais por ano.

Chama atenção o fato de o governo condicionar a estabilização financeira à reforma da Previdência e omitir que o problema principal não está na Previdência e sim na dívida pública.

Quando se trata de reduzir encargos com pessoal, o caminho é sempre mais curto para o governo. Mas quando se trata de interesse dos bancos, a coisa muda de figura.

Celebração do golpe subverte a disciplina militar

Um presidente da República não é apenas uma faixa. É preciso que por trás do pedaço de pano exista uma noção qualquer de honra. Incapaz de elevar sua própria estatura, Jair Bolsonaro rebaixou o Brasil ao ordenar a celebração do aniversário do golpe de 1964. Ao afirmar que não houve ditadura, ofendeu a memória dos mortos e a alma dos vivos.

Se ficasse nisso, já seria aviltante. Mas houve mais. Ao apelidar de "probleminhas" os crimes do regime militar, Bolsonaro atribuiu ares de normalidade a atrocidades como a tortura. Com tanto desapreço pelo ser humano e pelo bom senso, o chefe supremo das Forças Armadas põe em risco a própria disciplina militar. Uma assombração que se imaginava exorcizada é catapultada da história para o cotidiano.

Banalizaram-se no Brasil as chamadas GLOs, operações de garantia da lei e da ordem. Consistem no emprego das Forças Armadas em ações de segurança pública. No Rio de Janeiro, evoluiu-se no ano passado para uma intervenção federal na segurança, uma espécie de GLO hipertrofiada. A chegada das tropas às favelas e aos fundões pobres das grandes cidades costuma ser festejada. Mas às vezes a coisa desanda.

No final do ano passado, por exemplo, ganhou as manchetes um desses casos em que o caldo entornou. Numa incursão noturna na favela carioca da Penha, militares prenderam sete pessoas. Quatro delas contaram posteriormente, em depoimentos formais, que foram torturadas nas dependências de um quartel da 1ª Divisão do Exército.

De acordo com os depoimentos, o grupo foi mantido no quartel por cerca de 18 horas. A certa altura, conduziram-se os presos para uma "sala vermelha". Ali, foram submetidos a um interrogatório para identificar traficantes. Tomaram "madeiradas" nas costas e na cabeça. Foram chicoteados com fios elétricos. Só depois da sova foram levados à delegacia, sendo detidos sob a acusação de traficar drogas.

Abriram-se dois inquéritos —um no Ministério Público Federal, outro no Comando Militar do Leste. O inquérito militar foi fechado em fevereiro, já sob Jair Bolsonaro. Em vez de atestar a inocência cabal dos acusados, a investigação concluiu que não há "provas da materialidade e nem indícios suficientes de autoria relativos aos crimes de tortura e maus tratos".

Responsável pela apuração, o coronel Eduardo Tavares Martins anotou não ter enxergado "na conduta dos militares os elementares integrativos do delito de tortura e maus tratos, tudo não passando da dinâmica de confronto entre supostos traficantes e militares do Exército". As conclusões foram avalizadas pelo general Antonio Manoel de Barros.

Para os padrões de Bolsonaro, a "dinâmica do confronto" que levou os presos a se sentirem torturados numa "sala vermelha" dentro de um quartel do Exército seria apenas mais um "probleminha" negligenciável. O presidente da República, como se sabe, é o comandante constitucional das Forças Armadas. Suas palavras, quando soam desajuizadas, enviam sinais errados para a tropa.

Qualquer criança de cinco anos percebe que um chefe supremo que fala como se desejasse acobertar violências estimula a indisciplina militar. A lógica do "probleminha" conduz a um vale-tudo que justifica das transgressões internas à atuação das milícias. No limite, fardas menos esclarecidas podem explodir uma outra bomba num Riocentro qualquer, no pressuposto de que a iniciativa será comemorada.

Quem observa de longe fica tentado a concluir que o despautério de Bolsonaro não visa apenas a revisão de atrocidades históricas. Mira também a legitimação de sandices contemporâneas. Por sorte, há juízas em Brasília. A doutora Ivani Silva da Luz, titular da 6ª Vara da Justiça Federal da capital, proibiu na noite desta sexta-feira a celebração do aniversário de 55 anos do golpe militar. A decisão não altera a conturbação mental do presidente da República. Mas preserva a sanidade do país.

sábado, 30 de março de 2019

O sr. Cogito lê o jornal

A primeira página diz
120 soldados mortos

a guerra foi longa
você se acostuma

bem ao lado a notícia
de um crime incrível
e a foto do assassino

o olhar do sr. Cogito
se move indiferente
pela hecatombe de soldados
e mergulha com deleite
no macabro quotidiano

camponês de trinta anos
então maníaco depressivo
matou a própria esposa
e mais duas criancinhas

contam o modo exato
com que foram mortos
a posição dos corpos
e outros detalhes

é inútil tentar achar
120 perdidos num mapa
a distância tão remota
esconde como floresta

não falam à imaginação
há demasiados deles
o zero no fim os transforma
em mera abstração

um tema para refletir:
a aritmética da compaixão.
Zbigniew Herbert

Ditadura, nunca mais"

Digamos que não foi golpe o golpe militar que derrubou o presidente João Goulart no final de março de 1964. Nem foi ditadura a ditadura que se estabeleceu no país durante os 21 anos seguintes.

Então por que durante esse período foram mortos ou desapareceram pelo menos 423 opositores do regime? Por que 6 mil militares foram punidos? Por que milhares de pessoas foram torturadas?

Por que crianças foram seviciadas na frente dos seus pais para que eles confessassem supostos crimes? Por que algumas delas foram entregues para ser criadas por famílias de militares sem filhos?

Por que censores, designados pelo governo para dar expediente nas redações de jornais e de revistas, proibiram a publicação de notícias que desagradassem o governo?


Por que letras de músicas, filmes, peças de teatro e até novelas de televisão não puderam ser cantadas nem exibidas?

Por que as autoridades proibiram passeatas de protesto, prenderam e espancaram seus líderes? Por que padres católicos estrangeiros foram presos e devolvidos aos seus países de origem?

Por que o Congresso foi cercado por tropas armadas e fechado mais de uma vez? Por que mandatos de parlamentares foram cassados?

Por que foram suspensos os direitos da magistratura, e aposentados os juízes considerados incômodos ao regime?

Por que os direitos civis foram castrados? Por que o governo pôde perseguir e prender quem quisesse independente de ordem judicial? Por que o habeas corpus deixou de valer?

Por que os brasileiros não puderam votar para eleger o presidente da República? Por que cinco generais se sucederam na presidência da República?
Por fim, por que o governo editou uma lei de anistia que beneficiou os políticos cassados, os exilados, os banidos, mas também os militares autores de crimes de sangue?

Se nada disso caracteriza o que universalmente é conhecido como ditadura, o que mais precisaria ter acontecido para que pudéssemos chamar de ditadura a ditadura que existiu no país de 1964 a 1985?

Em parte alguma do mundo os governos celebram aniversários de tempos tenebrosos que se deseja esquecer. Os aniversários só são lembrados – e com justa razão – pelas vítimas da ignomínia.

Por aqui, um aliado dos carrascos, desta vez por meio do voto, chegou ao poder. Ao invés de se ajustar às regras de uma democracia ainda em construção, prefere atentar contra elas.

Com qual objetivo?

No relógio do desempregado, os ponteiros que Bolsonaro atrasa são espadas

Muita gente se pergunta: o que está havendo com Jair Bolsonaro? Ele acaba de ser eleito como solução por 57 milhões de brasileiros. E seu governo virou uma usina de problemas em três meses. Enquanto o presidente desperdiça a sua hora magnificando as crises que ele mesmo cria, cresce o desemprego no país. No final do ano passado, havia 12,2 milhões de brasileiros no olho da rua. Agora, há 13,1 milhões desempregados. Isso é mais do que toda a população de Portugal.


Numa conta que inclui, além dos desempregados, as pessoas que trabalham menos do que gostariam ou simplesmente desistiram de procurar uma ocupação, o flagelo da falta de trabalho atinge 27,9 milhões de pessoas —ou quase três vezes a população de Portugal. Bolsonaro, evidentemente, não é responsável pelo desemprego. Mas ele é culpado pela perda de tempo. Se não sair do lugar, Bolsonaro logo será a cara da crise.

Na economia, a cara do governo deveria ser não o desemprego, mas a prosperidade que o liberalismo do Posto Ipiranga Paulo Guedes seria capaz de prover. A estratégia parecia clara: engolir todos os sapos e aproveitar o impulso das urnas para aprovar rapidamente a reforma da Previdência, que traria um surto de crescimento. A reforma não saiu do lugar. E começou a soar o alarme da impopularidade. A aprovação à gestão Bolsonaro caiu 15 pontos, diz o Ibope.

O principal atributo da ascensão de Bolsonaro, impulsionada pelo antipetismo, foi a ideia de que seria possível romper as expectativas anteriores. Num país traumatizado pela corrupção e pela ruína econômica, vendeu-se a ilusão de que nada seria como antes. Mas o novo governo, já com aparência de pão dormido, não consegue transmitir uma simbologia positiva. Sua marca, por ora, é a confusão. A boa notícia é que Bolsonaro dispõe de tempo. A má notícia é que, para os brasileiros que não conseguem encher a geladeira, o tempo dói. No relógio do desempregado, os ponteiros que Bolsonaro atrasa são espadas.

Brasil, pobreza ludibriada


Bolsonaro já cometeu crimes de responsabilidade; agora, falará a política

Sim, o presidente Jair Bolsonaro já cometeu crimes, no plural, de responsabilidade. Vai cair? Depende dele.

Bolsonaro encerra o seu terceiro mês de mandato, e a pergunta mais frequente que me fazem —e isto nunca aconteceu em tempo tão curto— é a seguinte: "Você acha que ele vai até o fim?" Dado que o presidente e seus valentes escolheram a imprensa como inimiga, as pessoas imaginam que temos a resposta porque esconderíamos uma arma letal contra o "Mito". As coisas mais perigosas que guardo contra Bolsonaro são a Constituição e a lei 1.079.

Há um desânimo evidente em setores da elite que apostaram literalmente num milagre, que é o acontecimento sem causa. Por que diabos, afinal de contas, ele faria um bom governo ou encaminharia soluções institucionais? Em que momento de sua trajetória política ele se mostrou reverente à lei e à ordem? Nem quando era militar, ora bolas! Vejam lá: o fiscal que o multou porque pescava em área ilegal foi exonerado do cargo de confiança que ocupava no Ibama. Ainda volto a ele.

Para responder se Bolsonaro conclui ou não o seu mandato, terei de voltar a Dilma Rousseff. Sim, ela pedalou, cometeu crime de responsabilidade, segundo os termos da lei 1.079. Sempre cabe a pergunta: "Mas ela pedalou muito?" Não, gente! Seu governo destruiu as contas públicas em razão de obtusidades várias, que não vêm ao caso agora, mas a pedalada propriamente foi coisa pouca, nada que a sociedade brasileira não pudesse ignorar se a economia estivesse em crescimento, os juros e a inflação em níveis civilizados, as contas públicas em ordem —hipótese, então, em que a presidente não teria passeado imprudentemente de bicicleta...

O impeachment por crime de responsabilidade tem como condição necessária uma agressão à ordem legal —uma motivação, pois, de feição jurídica—, mas só se realiza se estiver dada a condição suficiente, que é a política. Não por acaso, seu primeiro passo é a admissão da denúncia, em decisão monocrática, pelo presidente da Câmara. E toda a tramitação segue sendo de natureza... política! Os senadores, que atuam excepcionalmente como juízes, também são políticos.

Um presidente não é apeado por crime de responsabilidade, no Brasil, se contar com pelo menos um terço dos deputados ou dos senadores. Nota: a reforma da Previdência era seu grande ativo, e ele está se encarregando de implodi-la.


É claro que Bolsonaro brinca com fogo. Cometeu crime de responsabilidade, diz a lei, quando agrediu o decoro e propagou um filminho pornô. Vá lá. A coisa ganhou um tom até meio apalhaçado como consequência da estupefação geral. Mas ele se mostra insaciável nos seus três meses. A ordem para "comemorar" o golpe militar de 1964 —e o verbo foi empregado pelo porta-voz— e sua visita à CIA, onde, confessadamente, tratou da crise na Venezuela, agridem, respectivamente, os valores contidos nos Artigos 1º e 4º da Constituição.

A mesma lei 1.079 que depôs Dilma Rousseff considera, no item 3 do artigo 5º, ser "crime de responsabilidade contra a existência da União cometer ato de hostilidade contra nação estrangeira, expondo a República ao perigo da guerra, ou comprometendo-lhe a neutralidade". O artigo 7º aponta como "crimes de responsabilidade contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais" as seguintes práticas: "7 - incitar militares à desobediência à lei ou infração à disciplina" e "8 - provocar animosidade entre as classes armadas ou contra elas, ou delas contra as instituições civis". O mesmo artigo, no item 5, dispõe a respeito da destituição do fiscal do Ibama, ato do ministro Ricardo Salles: é crime de responsabilidade "servir-se das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o pratiquem sem repressão sua".

"Não exagere, Reinaldo!" Bem, digam isso a Bolsonaro. Os crimes estão cometidos, e não seria difícil prová-los. Ou alguém manda comemorar golpe de Estado para enviar um recado aos próceres de 1964? Obviamente, a agressão se dá à ordem constitucional de 2019.

"Então ele vai cair?" Depende dele. Se continuar a fazer bobagem e se perder as condições políticas de governar, hoje precárias, cai, sim! Os crimes de responsabilidade já foram cometidos. Por si, não derrubam ninguém. Associados à crise política aguda, tem-se a combinação letal.

As pedaladas institucionais de Bolsonaro já são maiores do que as pedaladas fiscais de Dilma. O que ele fizer na política, agora, vai determinar o resto.
Reinaldo Azevedo

Acreditar

Então, de repente, depois de mais de semana de estupidez, de agressões à democracia representativa, de afrontas ao interesse nacional: temos a paz.

Como não pensar em milagre?

Depois de dias e dias em que o presidente da República e o presidente da Câmara, numa peleja de rara irresponsabilidade, trocaram investimentos na miséria institucional, no desequilíbrio entre poderes da República, na crispação de uma agenda reformista, então, de súbito: temos a paz.

Oh!

Depois de o chefe do Executivo haver dado vazão à sua profunda incompreensão acerca do que seja atividade política, desqualificando mesmo o Parlamento de que fez parte longamente, apregoado – com larga repercussão nas milícias digitais do bolsonarismo – o Congresso como lugar de chantagistas, e de o comandante de uma das casas do Legislativo ter simplesmente respondido que o presidente da República deveria parar de brincar, sair de rede social e enfim trabalhar, ora, ora, eis o que temos, de um dia para o outro: a paz.

Quem acredita nisso?

Quem acredita no armistício – no encaixe no trilho virtuoso das relações institucionais – a partir de um governo em cuja essência está a guerra, o conflito, a beligerância, a necessidade fundamental (a que mantém mobilizada a tropa) de ter sempre inimigos?

Quem acredita na capacidade de pacificação – aquela duradoura, com corpo para liderar, para mitigar crises, para convencer e conquistar, aquela que planta condições para voos que não de galinha – de um governo cuja mentalidade revolucionária o faz operar como oposição?

Quem acredita na durabilidade dessa paz se a fé que governa é a do confronto?

Essa é natureza de uma variável que – para além da pobreza política do Planalto e do que poderá ainda armar o ativismo corporativo de quem acusa e condena – precisa ser considerada por quem calcula a linha de chegada da reforma da Previdência.

Porque a questão não é se será ou não aprovada. Alguma será. Há consenso para tanto ainda que governo não houvesse. Alguma será. Mas qual? E a ser recebida como? Não nos surpreendamos se for festejada qualquer que seja. A incompetência, com seu caráter rebaixador, não raro cria condições para que se celebre o pouco como dádiva. Nós nos ajustamos. Para quem viu a zorra e vislumbrou o nada, dois ou três anos de fôlego é tanto voo de galinha quanto… voo. Ganha-se dinheiro. Empurra-se adiante.

Nós nos ajustamos porque cínicos. Se o voo for esse mesmo, reforma deformada mas com autonomia para alguns aninhos (aquilo desejado por Bolsonaro), reelege-se o presidente ou se unge um escolhido. Que seja. Teremos poupado para que os governantes nos gastem. No Brasil: é assim.

A pergunta que deve ser feita, porém, é anterior – com sorte projetada para o final deste ano: qual a agenda para depois de aprovada a Previdência? Qual o projeto?

Qual a ideia? Ou não precisa de ideia? Somos cínicos assim – admitamos: aprovado o voo de galinha, de repente alguma tração na economia, não reclamaremos de a molecada se encher de pirulitos para brincar no parquinho ideológico.

Velhos e conhecidos chavões

Gostaria muito que toda a sociedade tivesse a disponibilidade e o patriotismo de prostrar-se diante da bandeira ao menos uma vez por semana para caracterizar, por meio desse gesto, o seu apreço à soberania que essa bandeira representa e a importância de nós termos uma sociedade democrática e livre
General Otávio Rêgo Barros, porta-voz da Presidência da República

Estatais que Guedes sonha priatizar tiveram lucro recorde em 2018: R$ 71,3 bilhões

A grande imprensa não dá destaque a esse tipo de matéria, porque a mídia está hoje a serviço do mercado financeiro, que tem total interesse em uma nova leva de privatizações. Combinadas, as três maiores estatais de capital aberto do Brasil – Petrobras, Eletrobras e Banco do Brasil – registraram lucro líquido de R$ 51,9 bilhões em 2018.

Esse total, segundo levantamento feito pela Economatica com base em dados da CVM (Comissão de Valores Mobiliários), é o maior já anotado pelo grupo de estatais. Com os resultados da Caixa Econômica (R$ 12,7 bilhões) e do BNDES (R$ 6,7 bilhões), o lucro do grupo em 2018 chega a R$ 71,3 bilhões.


Reportagem do jornal “Brasil Econômico” destaca a importância se de as três estatais terem obtidos resultados positivos no ano passado. “A última vez que Petrobras, Eletrobras e Banco do Brasil terminaram o ano no azul foi em 2011, quando o lucro líquido das empresas somou R$ 49,1 bilhões. O pior: de 2014 a 2017, o balanço consolidado do grupo resultou em prejuízo”, diz a matéria.

“No ano passado, a petroleira registrou lucro de quase R$ 25,8 bilhões, o maior entre todas as empresas de capital aberto da América Latina. Só as receitas da Petrobras somaram R$ 349,8 bilhões no período, uma alta de 23% ante 2017. Foi o primeiro resultado positivo da estatal após quatro anos seguidos de perdas”, diz a importante matéria.

Outro detalhe importante: a Eletrobras – que o ministro Paulo Guedes quer vender de qualquer maneira, mas a cúpula militar está resistindo – terminou 2018 com um saldo positivo de R$ 13,3 bilhões, uma recuperação impressionante, porque em 2017 dera prejuízo de R$ 1,73 bilhões. Só no quarto trimestre, segundo a empresa, o resultado foi positivo em R$ 12 bilhões. O desempenho foi o melhor dos últimos 20 anos.

“Bem próximo à Eletrobras, o Banco do Brasil fechou o ano passado com lucro de R$ 12,8 bilhões, de acordo com a CVM. Entre os quatro bancos brasileiros que registraram os melhores resultados da América Latina, a instituição financeira está em terceiro lugar, à frente de Santander Brasil e atrás de Itaú e Bradesco”, diz o Brasil Econômico.

Na última quarta-feira, dia 27, o valor de mercado de Petrobras, Eletrobras e Banco do Brasil somava R$ 554,9 bilhões, um recorde histórico. A petroleira, responsável por 68,4% desse montante, fechou o dia valendo R$ 379,8 bilhões. As outras duas, por sua vez, estavam em R$ 45,9 bilhões (8,3%) e R$ 129,2 bilhões (23,3%), respectivamente.

“Entre todas as estatais , o valor de mercado da Petrobras impressiona por superar até mesmo os números de grandes empresas privadas. O valor da mineradora Vale, por exemplo, avaliada em R$ 259 bilhões antes da tragédia de Brumadinho, corresponde a pouco mais de dois terços do valor da petroleira”, assinala a impressionante reportagem.

sexta-feira, 29 de março de 2019

Deserto de ideias

O governo Jair Bolsonaro parece ser uma fonte inesgotável de ideias e opiniões. Nas redes sociais, o presidente fala de tudo – das ideologias, do comunismo, dos costumes, da imprensa, da lombada eletrônica, da placa de automóvel e até de uma questão do Enem da qual ele discorda. Nos discursos, o tom é altivo. Seu papel não seria apenas o de chefiar o Executivo federal. De acordo com suas palavras, sua missão no Palácio do Planalto consistiria em refundar o País, com a instauração de uma nova ordem social, “libertando-o definitivamente do jugo da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e da submissão ideológica”, como afirmou no discurso de posse.

A abundância de ideias e opiniões do governo Bolsonaro contrasta, no entanto, com a ausência de projetos e políticas públicas para o País. Em recente entrevista ao Estado, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, fez notar que, além do projeto de endurecimento das leis penais de Sergio Moro e da proposta de reforma da Previdência – que o próprio Jair Bolsonaro não assume completamente, dizendo que preferiria não ter de aprová-la –, o novo governo não tem um projeto para o País. “Se tem propostas, eu não as conheço”, disse Rodrigo Maia.

Ao falar da constante presença de Jair Bolsonaro e de sua família nas redes sociais, o presidente da Câmara lembrou um dado básico, que já havíamos ressaltado nestas páginas: “O Brasil precisa sair do Twitter e ir para a vida real. Ninguém consegue emprego, vaga na escola, creche, hospital por causa do Twitter. Precisamos que o País volte a ter projeto”.

É um engodo a ideia de que se está construindo um novo Brasil, “livre de amarras ideológicas”, por força da atuação do presidente Jair Bolsonaro nas redes sociais. E a população dá sinais de ter percebido essa realidade. As pesquisas de opinião indicam uma significativa deterioração da avaliação de Bolsonaro em menos de três meses de governo.

A tarefa de governar o País é muito diferente do que simplesmente criticar políticas e ações públicas do PT no governo federal. “Criticaram tanto o Bolsa Família e não propuseram nada até agora no lugar. Criticaram tanto a evasão escolar de jovens e agora a gente não sabe o que o governo pensa para os jovens e para as crianças de zero a três anos”, afirmou o presidente da Câmara.

A ausência de propostas e projetos consistentes para o País contraria diretamente uma das promessas mais repetidas por Bolsonaro e seu entorno – de que o seu governo imprimiria um rumo completamente novo ao Brasil. Sem propostas para os problemas reais, não há como falar em novos caminhos para o País.

A consequência imediata dessa incapacidade de apresentar propostas é a continuidade nos erros da era petista. Foi o que se viu, por exemplo, na participação do Brasil na “Segunda Conferência de Alto Nível das Nações Unidas sobre Cooperação Sul-Sul”. Apesar de todo o discurso de que o governo Bolsonaro imprimiria uma nova política internacional, o Brasil deu mais um passo no sentido de reafirmar a tal cooperação Sul-Sul, com suas conhecidas limitações e entraves para uma adequada inserção do País no cenário internacional.

Não se sabe quais são os projetos do governo Bolsonaro para a saúde pública, tema de primeira importância para a população. O mesmo acontece na área de educação. Ao abdicar de apresentar propostas concretas, o governo Bolsonaro reduz sua atuação a disputas verbais, agressões e escândalos.

A manutenção do País num clima conflituoso de campanha eleitoral, que parece ser até aqui um dos grandes objetivos de Bolsonaro, condena, assim, o seu próprio governo a uma preocupante paralisia. Aquele que prometeu um novo Brasil parece agora mais interessado na repercussão de seus tuítes. As urnas deram a Jair Bolsonaro uma missão bem concreta e com precisas responsabilidades institucionais. Ao presidente da República cabe construir soluções para os problemas nacionais. A ausência de projetos é caminho certo para o fracasso. O País não merece tamanho descuido.

Gente fora do mapa

Orhan Genel

Foi ditadura, e daí?

O que aconteceu em 31 de março de 1964 foi um golpe, depois veio um golpe dentro do golpe e tudo aquilo foi uma ditadura. Que, ao enfrentar resistência da luta armada de grupos de esquerda antidemocráticos (o termo técnico é terrorismo) e de correntes da sociedade civil organizada (imprensa, sindicatos, universidades, grupos políticos conservadores e liberais) – estas últimas são as que tiraram o País do regime de exceção –, dedicou-se a reprimir, censurar, prender e torturar, contrariando os próprios códigos de conduta das Forças Armadas. E daí?

E daí que o assunto é página virada e, no caso do Brasil, só assume importância política atual por causa da patética dedicação do presidente da República a aspectos secundários da “guerra cultural”. É bem verdade que Bolsonaro não está sozinho nesse empenho em recorrer a algum episódio traumático do passado como forma de moldar o debate político do presente.


Em Israel, o revisionismo do mito de fundação do país influencia também as atuais eleições. Na Rússia, é a interpretação da implosão da União Soviética como uma “catástrofe geopolítica” a ser corrigida que sustenta Vladimir Putin. Na China, o ressurgimento do nacionalismo é uma arma poderosa de legitimação do partido comunista empenhado em desfazer um século de “humilhações impostas por potências estrangeiras”. Nos Estados Unidos, Trump fala de uma “América grande de novo”, como se alguma vez tivesse deixado de ser.

A tentativa de Bolsonaro de dar a 64 uma relevância que também os integrantes do Alto-Comando das Forças Armadas acham que ficou para os historiadores tem pouco a ver com os exemplos acima. É parte do cacoete do palanque digital de campanha eleitoral. E já não se trata de perguntar quando ele vai descer da plataforma da agitação eleitoral e se sentar na cadeira presidencial, pois a resposta está dada: nunca.

O presidente e seus seguidores mais aguerridos nas redes sociais criam e se retroalimentam de “polêmicas” que, na época pré-digital, se chamavam de briga de mesa de boteco. Sobe o volume da gritaria à medida que o tempo avança e as coisas não acontecem como os “revolucionários” esperavam que evoluíssem. E encontram na “velha política”, nas “oligarquias corruptas”, na “mídia”, no “marxismo cultural” as “explicações” para a própria incapacidade de criar uma narrativa abrangente e dotada de clara estratégia de como tirar o País do buraco.

As reações contrárias de diversos setores à “comemoração” de 64 provocam nos militantes dessa franja da direita brasileira um “frisson” de alegria, como se sentissem confirmados em suas piores suspeitas. São a eles que os atuais comandantes militares se referem quando alertam que não estão dispostos a tolerar nenhum tipo de fanatismo, de um lado ou de outro. É o tipo de recado, porém, que provavelmente fará os mesmos militantes se sentirem reconfortados.

Nesse sentido, as agressões verbais por intelectuais que influenciam Bolsonaro e seus entes mais próximos aos generais no governo (xingados de “idiotas”, “cagões” e “comunistas infiltrados”) não são deslizes típicos da mesa do boteco. Na peculiar visão de mundo que move os agressores, trata-se do necessário resgate do espírito da História, no qual a nova “hora zero” de 64 explicaria a razão de o País ser hoje uma democracia aberta e representativa e não uma república popular ou socialista. Por isso, consideram que “comemorar” o distante 64 seria parte da luta de ideias.

Sem dúvida alguma, ideias têm consequências. E ideias malucas e idiotas costumam ter consequências péssimas.

Cem dias de fúria

Foi uma lua de fel. Os 100 primeiros dias do governo Bolsonaro confirmaram ao país que a “nova política” era mesmo tudo o que prometia: um emplastro destrutivo que despreza a política, a gestão pública e a diplomacia. A culpa não foi da imprensa, do Congresso, da “velha política”, da torcida, do pensamento negativo ou do PT acima de tudo, do petista acima de todos. O prejuízo desse infantilismo ainda não é calculável. O mercado confiou em analistas de conjuntura que cometeram o pecado capital de confundir desejo com fato. Aplicou muito dinheiro nesse desejo, entoou o canto da arquibancada e mandou os céticos se calarem. Daí persistir em estado de negação por ter subestimado a vocação de Jair e superestimado a clarividência de Paulo Guedes.

Foi um festival pornográfico. Não me refiro à ducha alaranjada nem à imaginação de Damares. Nem às conexões milicianas, nem à funcionária-fantasma, nem ao patrimonialismo filhocrático, nem aos vídeos que culpam o Bolsa Família pelo mau desempenho escolar de crianças pobres, ou que recomendam rasgar cadernetas de saúde que orientam adolescentes a prevenir doenças, ou que permitem ao general lembrar o capitão que não há síndrome de “Drown”. Por trás da pornografia, há corrosão institucional.


Foi uma peça dividida em dois atos. No primeiro mês, com as instituições de férias (o Judiciário, o Legislativo, as universidades, a Lava Jato, o pré-Carnaval), o governo lançou alguns balões de ensaio. Com pouca gente para atrapalhar, exceto a imprensa, sempre ela, o mês de janeiro permitiu experimentos autocráticos preliminares: restringiu transparência e ampliou sigilo de documento público, criou sistema de monitoramento da sociedade civil e continuou a atiçar a militância para o serviço sujo nas ruas, no campo e nas redes.

Daí em diante, veio a realidade institucional e o cotidiano administrativo. Primeiro, na cozinha da política pública. Conflagrado em conflitos internos gestados na Virgínia e entretido com sua ordem a escolas para filmar crianças cantando o hino e o slogan do governo, o MEC se esqueceu da tarefa mundana de aquisição de livros didáticos. No Ministério do Meio Ambiente, órgãos ambientais foram proibidos de falar com a imprensa enquanto o desmatamento explode em relação ao mesmo período de 2018 (para piorar, a liberação recorde de novos venenos pelo Ministério da Agricultura afeta a própria agricultura no longo prazo). O Ministério da Mulher, da Família e dos Direito Humanos começou pela retirada de LGBTs dos grupos de atenção da pasta, num dos países que mais violenta homossexuais no mundo. Também faz vista grossa a invasões de terras indígenas que se alastram pelo país. A cereja do bolo é o doping acadêmico desses três ministros campeões em honestidade: Rodríguez maquiou seu currículo Lattes, Salles disse ser mestre em Yale sem nunca ter pisado em sala de aula daquela universidade e Alves contou que seu mestrado em Direito da Família foi bíblico.

Nas relações externas, a cruzada ideológica contra o globalismo já trouxe prejuízo no comércio com árabes e chineses. As visitas internacionais não geraram, por assim dizer, grande impressão: em Davos, a fala envergonhada do presidente durou a eternidade de 6 minutos, depois, restou se ausentar da coletiva de imprensa; nos Estados Unidos, a vassalagem a Trump surpreendeu até mesmo a Fox News; em Santiago, o elogio a Pinochet conseguiu ofender até a direita chilena. Para não falar no tensionamento na fronteira da Venezuela.

Não é surpresa que o índice de popularidade tenha atingido o nível mais baixo de um presidente em início de governo desde Collor. Filhos derrubam ministros (como Bebianno, vítima de Carlos), substituem ministros (como Ernesto Araújo, escanteado por Eduardo), intoxicam a articulação política e o filho vereador despacha para o pai quando este se ausenta. Ainda surpreende que tenham decidido se indispor com ninguém menos que o presidente da Câmara. Rodrigo Maia sugere que Jair saia do Twitter e governe. Explica que governar significa negociar e buscar voto. Nem Cunha falou assim com Dilma.

Com a ala militar hesitante, Moro encolhido e Guedes traído pelo boicote da dinastia bolsonara a sua reforma de estimação, quem sapateou nestes 100 dias foi mesmo a ala pré-moderna do governo. Segundo sua teoria da revolução, precisam do “povo” nas ruas para levar abaixo as instituições. Feita terra arrasada, governariam. Não desconfiam de que eles podem morrer no processo. A democracia vai antes.
Conrado Hübner Mendes

Jair Bolsonaro, o presidente aprendiz do Brasil

Uma das principais razões pelas quais Jair Bolsonaro venceu a eleição presidencial no ano passado foi o fato de prometer movimentar de novo a economia depois de quatro anos de recessão. Ao nomear Paulo Guedes, um defensor do livre mercado, como seu superministro da Economia, ele conquistou o apoio do mundo empresarial e financeiro. Muitos imaginavam que a chegada de Bolsonaro à Presidência por si só traria nova vida para a economia. Mas, depois de três meses, ela continua moribunda como sempre. Os investidores começam a perceber que Guedes tem uma árdua tarefa de conseguir aprovar no Congresso a reforma da Previdência, crucial para a saúde fiscal do Brasil. E o próprio Bolsonaro não vem colaborando.

O déficit fiscal de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) tem um enorme peso sobre a economia, significando que os juros para os tomadores de empréstimo privados serão mais altos do que seriam do contrário. As pensões respondem por um terço do total das despesas públicas e são uma das razões pelas quais o Estado gasta pouco na infraestrutura fragilizada. O projeto de reforma do governo enviado ao Congresso no mês passado estabelece uma idade mínima para a aposentadoria, eleva as contribuições e preenche lacunas, com uma previsão de economias de R$ 1,2 trilhão durante dez anos. O déficit da Previdência foi de R$ 241 bilhões no ano passado. A reforma da Previdência, por si só, não fará com que o Brasil retome um crescimento econômico robusto. Serão necessárias reformas fiscais e outras medidas para aumentar a competitividade. Mas ela se tornou um objeto sagrado.

Bolsonaro está numa situação privilegiada porque, depois de dois anos de debate público e político, a reforma da Previdência hoje é menos impopular do que antes. Mas não é necessariamente uma proposta que conquista votos. E Bolsonaro não faz campanha para isso. “Toda a discussão sobre a reforma da Previdência é algo que os brasileiros gostariam de não ter”, afirma Monica de Bolle, economista brasileira do Peterson Institute for Internacional Economics.

A aprovação, assim, exige liderança do topo. Que está ausente. Em sua campanha, Bolsonaro denunciou a “velha política” corrupta do “toma lá, dá cá” no Congresso. Mas ele não possui uma estratégia alternativa para controlar o Legislativo. Entrou desnecessariamente em confronto com alguns aliados, incluindo Rodrigo Maia, o poderoso presidente da Câmara. O padrasto da mulher de Maia, Wellington Moreira Franco, um ex-ministro, foi preso em 21 de março junto com o ex-presidente Michel Temer, por suspeitas de suborno, o que ambos negam. O que levou a comentários feitos pelos filhos de Bolsonaro, que são assessores próximos do presidente, e que Maia considerou como um ataque pessoal. Sua resposta foi que ele não marcaria votações sobre a reforma da Previdência para um governo que chamou de “deserto de ideias”. As autoridades esta semana tentaram apaziguar Maia. Mas a reforma da Previdência deve sofrer atrasos e diluição.

O grande problema é que Bolsonaro ainda tem de mostrar que entende a sua nova função. Ele dissipou capital político, por exemplo, exortando as Forças Armadas a comemorarem o aniversário em 31 de março do golpe militar de 1964. Seu governo é de uma “confusão monumental”, afirmou Claudio Couto, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). À parte a sua equipe econômica, seu governo é uma coleção de generais aposentados, políticos de médio escalão, protestantes evangélicos, um filósofo antes obscuro chamado Olavo de Carvalho. “Ninguém sabe para onde ele vai, qual o curso que está tomando”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “Ele avança, depois recua, o tempo todo.”

Se o governo tem um elemento-chave, trata-se do general Hamilton Mourão, o vice-presidente, que tem tentado impor alguma disciplina política. Mas, com frequência, entra em atrito com a família Bolsonaro. Olavo de Carvalho o chamou de “idiota” e afirmou que, se as coisas continuarem como estão por mais seis meses, “tudo estará acabado”.

Embora de modo diferente, outros começam a pensar o mesmo. E ainda por cima, estão surgindo evidências de que a família Bolsonaro está ligada a membros de um grupo criminoso de ex-policiais do Rio de Janeiro acusado do assassinato da ativista Marielle Franco, o que eles negam.

Dois dos quatro presidentes eleitos anteriormente no Brasil sofreram impeachment porque, como afirmou Fernando Henrique Cardoso, “não foram mais capazes de governar”. Por mais que odeiem Bolsonaro, os democratas não devem desejar que ele não chegue ao fim do seu mandato. Ainda é o início. Mas sua Presidência já enfrenta um teste crucial. “Temos duas alternativas”, disse seu porta-voz esta semana. “Aprovar a reforma da Previdência ou afundarmos num poço sem fundo.” Se o seu chefe pelo menos fosse assim claro.

Imagem do Dia

Havana, Magí Puig

O valor de 'pi'

Uma notícia de jornal trouxe-me à memória um fantasma da adolescência: “pi”. “Pi”, para quem não sabe, tem a ver com matemática. É a resultante da razão entre a circunferência e o diâmetro de um círculo. Não sei o que isso significa —apenas copiei a descrição do jornal. Durante toda a vida escolar, fui atormentado por “pi”. Quando o professor tirava o giz do bolso do guarda-pó, enchia o quadro com números e falava em “pi”, eu já sabia que aquilo logo me renderia um zero.

“Pi”, com esse nome de esquilo de desenho animado, é um desafio para os matemáticos. Desde o grego Arquimedes, eles vêm travando sangrentas batalhas entre si, fazendo cálculos para determinar o valor do bicho. Um “pi” simples vale 3,14 —não me pergunte de quê. Mas, há milênios, esse número tem sido acrescido de decimais, a tal ponto que, pelos cálculos do suíço Peter Trüb, em 2016, “pi” já estava em 22,4 trilhões de dígitos —nem a inflação na Venezuela chegou a tanto. Agora, a japonesa Emma Haruka Iwao acaba de estabelecer um novo valor: 31,4 trilhões de dígitos.

E como ela chegou a isto? Operando, durante 121 dias, 25 computadores, que processaram 170 terabytes de dados. Um terabyte, para se ter ideia, armazena 200 mil músicas. Pois tente imaginar 31,4 trilhões de dígitos.

Devíamos chamar Emma ao Brasil. Só ela, usando sua intimidade com “pi”, poderia ajudar a Lava Jato a calcular o total de dinheiro movimentado pela corrupção nos últimos 30 anos, envolvendo governantes, burocratas, empresários, políticos e partidos. Deve estar em níveis de "pi”.

Quando nos damos conta da naturalidade com que temos ouvido falar em milhões ou bilhões de reais roubados, e não distinguimos mais uns dos outros, é porque já nos tornamos cínicos ou indiferentes. E por que não? Afinal, como disse o juiz Ivan Athiê, aquele que soltou Michel Temer outro dia, “propina não é crime —é gorjeta”.

Ruy Castro

Bolsonaro não deve dizer 'desta água não beberei', o segredo é ferver antes

O vocábulo governabilidade tornou-se uma assombração para Jair Bolsonaro. Nos seus pesadelos, hienas, aves de rapina, abutres, roedores e raposas da política se juntam para apoiar o seu governo. Depois, mandam pendurar uma tabuleta na porta:"Base Aliada". Para o capitão, já ficou demonstrado que esse tipo de arranjo passou a dar cadeia no Brasil. Daí dizer que não lhe passa pela cabeça desperdiçar os seus dias jogando dominó com Lula e Temer atrás das grades.

Resta responder: como governar? Ao atravessar na traqueia de Paulo Guedes as emendas de bancada impositivas, a banda fisiológica da Câmara exibiu sua musculatura. Com seus interesses maldisfarçados atrás do apoio a Rodrigo Maia na troca de caneladas do presidente da Câmara com a família Bolsonaro, a turma do balcão está assanhada. Respira-se em certas bancadas uma atmosfera conhecida.

Os partidos pedem, eles reivindicam, eles exigem. Desatendidos, eles adotam a velha tática do "levanta-que-eu-corto". Recusando-se a saciar os apetites, Bolsonaro receberá novos trocos. Quando o capitão der por si, os votos do centrão estarão gritando "NÃO" no painel eletrônico da Câmara, quiçá do Senado. Vem aí a votação da medida provisória que reestruturou o organograma do governo. Ela se presta às piores maldades. Por exemplo: a redução do número de ministérios de 22 para 15.

Não é que Bolsonaro esteja se recusando a encostar o estômago no balcão. O problema é que a mercadoria que ele ofereceu —um conta-gotas de emendas orçamentárias e cargos federais mixurucas nos Estados— não saciou os apetites de hienas, aves de rapina, abutres, roedores e raposas. A fome aumenta na proporção direta da diminuição dos índices de popularidade do presidente.

Para complicar, Bolsonaro não é visto no zoológico como avis rara. Ao contrário. Os ministros suspeitos, o laranjal do PSL, as encrencas do primogênito Flávio Bolsonaro e o cheque do ex-faz-tudo Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro levam a ala gulosa do Legislativo a chamar o presidente de "um dos nossos".

Num cenário assim, ou Bolsonaro negocia ou a reforma da Previdência pode virar suco. A história recente demonstra que ignorar o pedaço fisiológico do Congresso pode não ser um bom negócio. Bem alimentada, essa turma fornece estabilidade congressual. Submetida a dietas forçadas, desestabiliza o que vê pela frente. Dilma Rousseff, como Bolsonaro, fez cara de nojo. Caiu. Michel Temer entregou todas as vantagens que o déficit público pode pagar. E sobreviveu a duas denúncias criminais.

Nesta quinta-feira, Bolsonaro tratou como "chuva de verão" seu arranca-rabo com Maia. "O sol está lindo. O Brasil está acima de nós. Da minha parte não há problema nenhum. É página virada." As palavras do presidente foram recebidas pelos líderes partidários não como um armistício, mas como conversa fiada. Os 28 anos de mandato fizeram de Bolsonaro um personagem manjado na Câmara. Ali, sabe-se que o capitão costuma virar a página para trás. Prefere os temporais às chuvas de verão. Avalia-se que Bolsonaro não demora a disparar novos raios que os partam.

Se quiser fugir da bifurcação que condena os presidentes à queda ou à cumplicidade, Bolsonaro terá de tentar uma terceira via. Precisa parar de dizer "desta água não beberei". O segredo está em ferver antes. As demandas que chegassem ao Planalto iriam para a chaleira. As que saíssem do processo purificadas seriam atendidas. Aquelas cujos germes sobrevivessem às altas temperaturas iriam para o esgoto, com escala no noticiário policial.

Estilo democrático de ser

"Nunca antes neste país" pode ser uma frase surrada da velha política, mas temos aí é uma ordem autocrática com aparência democrática. A massa de cidadãos despossuídos, sem lideranças capacitadas, consagrou um líder de estatura mediana, orientado por gurus de meia-confecção. Não é de estranhar que seus melhores quadros provenham das Forças Armadas
Carlos Guilherme Mota

Que tal comemorar 'o dia seguinte', o 1º de abril?

Já que a ordem do dia é comemorar, que tal “o dia seguinte”, o 1º de abril? É uma data simpática, que não rende trocas de farpas, que não divide ainda mais uma sociedade alquebrada e não remexe em feridas. Não traz à tona lembranças dolorosas, torturas, prisões, desaparecimentos, exílios, censura e medo.


A mentira está em voga, no mundo da notícia virou fake news. Deixa de ser inofensiva quando frauda eleições. Ou quando estraga reputações privadas e públicas. O 1º de abril é uma data de chiste, um dia de gracejos, de pegadinhas. Quem cai na mentira é chamado de bobo. Diante dos 55 anos do 31 de março, que o Brasil recorda por fidelidade à História e para não repetir erros trágicos, preferi jogar luz sobre o desprezado dia seguinte para dizer: “Não somos bobos”.

O 1º de abril veio da França e da Inglaterra, segundo alguns historiadores. A brincadeira surgiu no início do século XVI, quando a virada do ano chegou a ser comemorada de 25 de março até o 1º de abril. O novo Ano Novo logo caiu em descrédito. Gozadores enviavam presentes esquisitos e convites para festas inexistentes a quem insistia em adiar o calendário para o “April Fools’”, o Dia dos Tolos.

O 1º de abril encontrou sua vocação universal. Virou piada. Não em Brasília, que ainda aguarda o início de 2019. Nem a ordem nem o progresso se instauraram nesse governo amador e atabalhoado, que mete os pés pelas mãos até em família e no próprio partido. Decisões estapafúrdias são anuladas, outras resistem.

No Brasil, a tradição da pegadinha teria começado em Minas Gerais: um periódico de vida breve, “A Mentira”, foi lançado a 1º de abril de 1848 com a notícia falsa da morte do imperador Dom Pedro II. Desmentiu a brincadeira. Tivemos constrangimentos notórios na imprensa. Um foi a história do boimate. Cruzamento do boi com tomate, publicado como pegadinha na revista britânica “New Scientist”, no April Fools’ de 1983. Tão absurdo que não poderia em sã consciência virar notícia. Mas virou verdade científica numa revista importante brasileira. Que se desculpou pelo “lastimável equívoco”.

Para não dizer que só falei de flores em momento pesado, queria lembrar, ainda com assombro, que o atual presidente foi eleito depois de tecer homenagem pública e apaixonada a um coronel torturador. O Brilhante Ustra, em nome de Deus. É surpresa que o capitão, bélico por formação, se curve submisso aos americanos e que deseje tornar feriado o 31 de março? Vai passar. O estandarte do sanatório geral vai passar.

Em 1964, eu era uma criança. Meu pai, bacharel em Direito, tinha alma militar. Foi lacerdista por convicção, me levava às inaugurações do Guandu, do Aterro do Flamengo. Foi janista por desespero, ouvíamos discos de varre, varre, vassourinha. Achava-se revolucionário e não golpista, por ódio ao comunismo, a tese que comprou por ingenuidade e autoritarismo.

Depois, diante da ditadura que exilou, torturou, censurou, esquartejou, enforcou e sumiu com corpos de universitários, jornalistas, intelectuais e até militares dissidentes, percebeu que o 31 de março — por acaso o dia de seu aniversário — estava muito mais próximo do Dia da Mentira do que ele imaginava. Como se sentiu tolo! Viva o 1º de abril.
Ruth de Aquino

quinta-feira, 28 de março de 2019

Quanto pior melhor para o capitão

Ao Congresso, uma vez que queira se comportar com responsabilidade, cabe pôr suas impressões digitais na reforma da Previdência e aprová-la em tempo razoável. Porque para o presidente Jair Bolsonaro, tanto faz como tanto fez.


Bolsonaro votou contra todas as propostas de reforma da Previdência nos seus sete mandatos de deputado. Para isso até alinhou-se com o PT. Terceirizou a área econômica de um eventual governo só para obter o apoio do mercado.

Uma vez que se elegeu, pouco se lhe dá se a reforma for aprovada ou não. Cumpriu o ritual de ir ao Congresso apresentá-la. Vez por outra repete que sem ela o país quebrará. Mas ao mesmo tempo a torpedeia sempre que pode.

Se ela passar, Bolsonaro dirá que se deveu ao seu empenho e ao do ministro Paulo Guedes. Do contrário, culpará o Congresso pelo que possa acontecer ao país mais tarde. Jamais confessará que aposta no pior. É nisso, de fato, no que aposta.

Os que analisam o governo Bolsonaro cedem à tentação de normalizá-lo, de o observarem como a maioria dos governos que o país já teve – particularidades à parte. Mas ele não é e não quer ser um governo como qualquer outro.

Embora tenha ficado quase 30 anos na Câmara, Bolsonaro nada aprendeu ali, nada quis aprender, e por isso jamais se destacou entre seus pares – salvo como um tosco parlamentar, estridente e monotemático, em defesa das piores causas.

Ele foi a primeira pessoa a surpreender-se com a descoberta de suas chances de se eleger presidente – a segunda foi sua mulher. Isso ocorreu depois da facada em Juiz de Fora. À falta de equipe e de um plano de voo, montou o pior governo das últimas décadas.

Sem compromisso com coisa alguma, apreciador de ralas e confusas ideias, todos os seus passos até aqui têm sido na direção do enfraquecimento da democracia. Direto ao ponto: Bolsonaro sonha com o estabelecimento de um regime autoritário sob seu comando.

Daí seu desprezo pelos partidos, seu pouco caso com a Justiça cada vez mais acossada por seus devotos nas redes sociais, e seu ódio à imprensa independente. Se não houver a ruptura institucional tão desejada por ele, seguirá em frente aos trancos e barrancos.

Se sua situação no cargo tornar-se insustentável, será capaz de jogar tudo para o alto e ir gozar a vida confortável de ex-presidente. Era seu plano original: ajudar os filhos a se reelegerem e desfrutar da companhia de dona Michele e da filha mais nova. Aí deu no que deu.

Nova política, velha palavra

O culto do novo é velho. Um grego chamado Homero —ou as gerações de poetas anônimos embutidos nesse nome— já observava na "Odisseia", muitos séculos antes de Cristo, que o número musical mais aplaudido era sempre o mais recente.

O interesse despertado pela novidade se reflete nas palavras que nomeiam o que é notícia. Hoje pouco usamos "nova" nessa acepção, mas a boa nova, a notícia auspiciosa, mantém viva uma associação presente em diversas línguas, do latim medieval "nova" ao francês "nouvelles" e ao inglês "news".


Se isso é notícia antiga, só nos últimos dois ou três séculos virou cacoete de uma época de progresso tecnológico desembestado sair colando o adesivo "novo" nas coisas do mundo.

Que a busca do novo já começava a virar neurose no século 18, comprova-o uma ponderação do filósofo Denis Diderot em 1762: "Só Deus e alguns raros gênios conseguem forjar continuamente o novo". Ou seja: calma, pessoal. Na maior parte das vezes, estaremos no lucro se aprendermos a reproduzir bem o já sabido.

"Novo" e suas traduções ("new", "nouveau", "neu" etc.) fizeram a carreira brilhante que se viu. Pelo menos na cultura ocidental, ficamos viciados na musa das vanguardas, aquela que promete simplesmente reinaugurar a história.

Mais que desejável, o novo passou a ser nossa única saída, o que vai nos libertar do passado com seus protocolos que caducam cada vez mais depressa —a princípio a cada 50 anos, depois a cada 20, dez, um...

O envelhecimento nos morde os calcanhares. A obsolescência ridiculamente rápida de nossos telefones não deixa ninguém esquecer: o novo é um valor em si, mas envelhece correndo.

O jeito é fugir para a frente. Para a frente fugimos até nos momentos —felizmente raros— em que a realidade dá um cavalo de pau, o cenário gira 180 graus à nossa volta e acontece de, fugindo para a frente, irmos cada vez mais para trás.

O Brasil, estrela grandalhona do Novo Mundo, é só mais um fiel seguidor desse culto. No entanto, é provável que o peso do novo seja ainda maior em nossa cultura, que preza menos que outras a tradição.

Além de relativamente curta e escassa de heroísmo, nossa história de ex-colônia escravocrata portuguesa habita um cercadinho escolar sobre o qual a sociedade guarda um silêncio entre constrangido e abestalhado.

Das glórias que temos, raras e por isso mais valiosas, fazemos pouco. "A cada 15 anos, o povo brasileiro esquece o que aconteceu nos últimos 15 anos", disse o genial Ivan Lessa, também ele em processo de esquecimento.

Nossa relação apaixonada com a palavra "novo(a)" pode ser demonstrada assim: daria para contar uma versão bem razoável da história do Brasil, dos anos 1950 para cá, só com coisas que a trazem no nome.

Bossa nova. Novacap. Cinema Novo. Neoconcretismo. Novos Baianos. Cruzeiro novo, cruzado novo. Nova República. Nova matriz econômica. As novinhas. O Novo. E, por fim, estrela de um ano tumultuoso, a nova política do governo Bolsonaro.

Está claro que essa "nova política", que se oporia à "velha" de um Congresso fisiológico, é uma mistificação: conjunto vazio, trata-se da simples negação da negociação política. Subscrevo os argumentos de Carlos Melo, do Insper, em artigo publicado terça-feira (26) nesta "Folha".

Só faltou dizer que, como palavra-fetiche, "novo(a)" é das mais fortes que há. Embalando —e engambelando— a humanidade há séculos, não dá pinta de envelhecer tão cedo.

Pensamento do Dia