segunda-feira, 26 de maio de 2025

Pensamento do Dia

 


Deu no Haaretz


Se você é um judeu israelense, você é cúmplice da morte de 53 mil palestinos

 Odeh Bisharat

Quem decide o que é verdade na era da Inteligência Artificial?

Sou um verdadeiro entusiasta da Inteligência Artificial. Fascina-me a sua capacidade de nos fazer avançar: otimizar processos, facilitar decisões, personalizar experiências, detetar padrões que escapam ao olhar humano. Acredito genuinamente no poder transformador da IA e em como ela pode ser uma aliada preciosa ao serviço da criatividade, da saúde, da educação, da produtividade e, claro, da comunicação.

Mas também acredito que não basta deslumbrar-nos com o que a tecnologia pode fazer. Temos de questionar o que ela está a fazer. E, sobretudo, o que estamos a permitir que ela decida por nós. E uma das áreas onde mais me inquieta é esta: a liberdade de expressão, condicionada por moderação algorítmica.

Hoje, o que aparece no nosso feed não é decidido por nós, é curado, priorizado e filtrado por algoritmos. Não é apenas uma questão de preferência: é uma decisão automática sobre o que é “relevante”, “seguro” ou “aceitável”. O problema? Essa decisão é feita sem contexto, sem explicação, sem recurso.

A intenção pode até ser positiva – proteger-nos de conteúdos tóxicos, de fake news, de discursos perigosos. Mas a prática mostra que os efeitos secundários são cada vez mais alarmantes.

Vamos começar pelo lado bom. Em 2021, o Facebook (agora Meta) usou IA para detetar automaticamente redes de desinformação coordenada sobre vacinas. Conseguiu remover milhares de contas falsas em tempo real e impedir que conteúdos perigosos se tornassem virais. O mesmo aconteceu no YouTube, que desmonetizou canais que promoviam teorias da conspiração sobre Covid-19, com base em deteções automáticas.

Nestes casos, a IA ajudou a conter desinformação que podia ter impacto direto na saúde pública. Foi rápida, eficaz, e provavelmente salvou vidas. Outro bom exemplo é o da Reuters, que utiliza algoritmos de verificação para validar automaticamente milhares de fontes antes de as integrar nas suas notícias, acelerando o processo de apuramento jornalístico sem comprometer o rigor. Mas… e aqui está o “mas”, nem sempre funciona assim.

Durante a guerra na Ucrânia, vários jornalistas e cidadãos partilharam vídeos e fotos em tempo real nas redes sociais. Algumas dessas imagens – legítimas, reais, jornalísticas – foram automaticamente removidas por “conteúdo gráfico”, apesar de estarem a documentar crimes de guerra. O algoritmo não percebeu o contexto. Apenas viu “sangue”. Resultado? Informação valiosa foi apagada num momento em que o mundo precisava de a ver.

Mais grave ainda: em 2023, o jornal El Confidencial viu uma investigação sobre corrupção política ser bloqueada no Facebook por “violação das diretrizes comunitárias”, sem qualquer explicação clara. Só dias depois, e após protesto público, foi restaurada. Mas o dano estava feito, o momento da notícia passou, e com ele a sua força de impacto.

Quantas mais notícias estão a ser “apagadas” sem que ninguém repare?

Não podemos ignorar um dos paradoxos mais perigosos disto tudo: os mesmos algoritmos que moderam também amplificam. E amplificam o quê? O conteúdo que gera mais reações. E o que gera mais reações? O sensacionalismo, a polarização, a raiva, o choque.

O Twitter/X, por exemplo, tem sido alvo de críticas por permitir que conteúdos falsos e tóxicos se tornem virais, enquanto vozes credíveis ficam invisíveis. O algoritmo privilegia o que provoca, não o que informa. E isto tem um custo real: a erosão da confiança no jornalismo, na ciência e na própria noção de verdade.

Neste ponto, a pergunta torna-se inevitável: quem decide o que é verdade ou mentira? E com que critérios?

É a Meta? A Google? A OpenAI? Os engenheiros que criam os modelos? Os governos que pressionam as plataformas? Os anunciantes?

O mais assustador nisto tudo é que a maioria de nós não sabe e nem sequer tem como saber.

A verdade tornou-se uma variável algorítmica, opaca, condicionada por métricas de engagement, por diretrizes internas e por decisões automáticas que não passam por qualquer debate democrático.

Não estou a dizer que tudo deve ser permitido. Não defendo a anarquia digital. Há conteúdos que devem ser removidos: discurso de ódio, exploração infantil, apelos à violência. Mas isso não pode ser feito cegamente por máquinas, sem supervisão humana, sem recurso e sem respeito por diferentes contextos culturais, sociais e até jornalísticos.

É urgente tornar os critérios dos algoritmos transparentes e auditáveis, criar mecanismos claros e eficazes de apelo e correção de erro, garantir que o contexto é considerado antes de qualquer remoção. É urgente proteger o jornalismo e a informação factual de remoções automáticas injustificadas.

Enquanto sociedade, não podemos continuar a aceitar que a definição daquilo que pode ou não ser dito esteja nas mãos de sistemas automáticos que ninguém verdadeiramente controla.

Num mundo onde a IA é cada vez mais usada para mediar a nossa relação com a informação, temos de garantir que a tecnologia serve a liberdade e não a substitui.

A liberdade de expressão não pode ser um dano colateral da moderação automática. Muito menos quando está em causa a verdade, a pluralidade de pensamento e a integridade do debate público.

Como fã confesso da IA, digo-o com convicção: não é por podermos automatizar decisões que devemos abdicar de pensar por nós.

Porque se deixarmos que uma máquina decida tudo por nós, acabamos por perder aquilo que nos torna verdadeiramente humanos: a capacidade de escolher, de questionar e de discordar.

Ética, muito mais que uma palavra de cinco letras

A palavra “ética” pode ser curta em extensão, mas é vasta em significado e essencial para a convivência em sociedade. Não se trata apenas de um conjunto de regras ou preceitos morais, mas de um alicerce invisível que orienta ações, escolhas e a própria estrutura das instituições.

Na tradição filosófica, Aristóteles já afirmava que a ética está ligada à busca da virtude e da felicidade. Para ele, viver eticamente é agir segundo a razão, encontrando o equilíbrio entre os excessos. Kant, por sua vez, introduziu a ideia do imperativo categórico, em que a moralidade se dá quando se age de modo que a ação possa ser universalizada. Ambas as abordagens indicam que a ética transcende convenções momentâneas e está enraizada na dignidade humana.


No cotidiano, a ética se manifesta nas pequenas atitudes: respeitar o tempo do outro, cumprir compromissos, agir com honestidade mesmo quando ninguém está olhando. Em uma época marcada pela exposição constante e pela velocidade das redes sociais, a ética se torna ainda mais necessária – e, paradoxalmente, mais desafiadora.

No campo público e institucional, a ética é o pilar da confiança. Governos, parlamentos e empresas não sobrevivem sem credibilidade, e esta só se sustenta quando as decisões são orientadas por princípios, não por interesses escusos. Um exemplo marcante é a valorização crescente das políticas de compliance, que buscam assegurar condutas éticas e prevenir desvios.

É também importante destacar que ética não é sinônimo de moral. Enquanto a moral é cultural e variável, a ética é uma reflexão crítica sobre o agir humano. Como bem observou Norberto Bobbio, um dos mais importantes filósofos do direito e da política do século XX, a ética moderna deve ser pensada não apenas como um conjunto de valores, mas como um sistema de normas que busca a
convivência pacífica entre os indivíduos. Para ele, a ética pública deve estar ligada à promoção dos direitos fundamentais e da justiça, sendo inseparável da democracia e do Estado de Direito.

Em tempos de crise – sejam políticas, ambientais ou sociais -, a ética se revela como o instrumento mais potente para restaurar laços, corrigir rumos e reconstruir a esperança. Quando o tecido social parece esgarçado, é pela ética que podemos reconstituí-lo com solidez e humanidade.

Por isso, mais do que uma palavra, ética é um compromisso. É um chamado silencioso, mas constante, à integridade, à responsabilidade e ao respeito ao outro. É, em última instância, o que torna possível a vida em sociedade.

Cidade no Pará reflete ciclo vicioso das commodities no país

Wellington Rochedo, 32, decidiu se mudar para Canaã dos Carajás em 2016. Ele esperava prosperar no município paraense que foi palco do crescimento mais veloz e exponencial da riqueza por habitante no Brasil em 12 anos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O PIB per capita da cidade cresceu 2.803% entre 2009 e 2021 – por causa dos negócios envolvendo a extração de minério de ferro na região. O indicador mensura uma divisão hipotética do total de recursos de um lugar entre todos os que vivem ali.

Mas fontes ouvidas pela DW apontam que essa riqueza não teve efeito na vida da população, como reduzir a desigualdade ou dar acesso a serviços básicos, por exemplo. "E daí você vê que essa numeralha (sic) não se reflete em desenvolvimento", alerta Marco Antônio Lima, que leciona sobre arranjos produtivos locais e projetos ligados à sustentabilidade na Universidade do Estado do Pará (UEPA).

"Na verdade, quando a economia vai bem, a renda per capita explode como reflexo do crescimento, mas mascara a distribuição real dos recursos, que permanecem altamente concentrados. Infelizmente, é isso que acontece nos grandes projetos mineradores do Pará", continua.

Extração de cobre e minério de ferro foi responsável pela
alta  vertiginosa do PIB per capita nos últimos 12 anos:

Convencido por um amigo de infância e desiludido com várias tentativas anteriores de trabalho, Wellington pegou um trem em São Luís do Maranhão, onde morava, com a esposa, Jocyelen Costa (29) e o filho Ryan, então com seis anos.

Hoje, Wellington é gerente de uma loja de materiais de construção, com um salário de cerca de R$ 3 mil. Jocyelen também se encontrou em Canaã: abriu, nos fundos da casa, um salão de design de sobrancelhas. No fim do mês, aumenta o orçamento doméstico em cerca de R$ 1,5 mil. "Eu queria estar melhor, é verdade, mas a vida aqui deu uma boa melhorada. Não posso reclamar", observa Wellington.

Assim como o gerente, milhares de jovens, sobretudo da região Norte, têm ido a Canaã dos Carajás pelo menos desde 2015. Eles são encorajados por relatos de quem já foi, por posts de redes sociais ou pelos anúncios vultuosos que a Vale faz, ano sim, ano não, sobre seus investimentos na região.

É ali que a empresa, a quarta mais valiosa e a décima maior mineradora do planeta, segundo o portal mining.com, opera o complexo de exploração de minério de ferro mais moderno no país: o S11D. Só no primeiro trimestre de 2025, a estrutura produziu 19,3 milhões de toneladas, 9% mais do que no mesmo período do ano anterior e a maior quantidade produzida num primeiro trimestre pelo projeto.

"E tem muito dinheiro aqui, hein?", constata Wellington.

De fato. Em 2009, segundo números oficiais, se toda a riqueza da cidade fosse dividida de forma igual entre seus habitantes, o montante que cada um receberia seria de R$ 30.821.

Em 2021, porém, o PIB per capita de Canaã dos Carajás chegou a R$ 894.806.

Para se ter uma ideia, o PIB per capita de todo o estado do Pará era de R$ 29.953 em 2021, na última medição oficial. No Brasil de 2022, ele era de R$ 47.802, de acordo com o instituto.

Além do crescimento de quase 3.000% em relação a 2009, o indicador também impressiona pela ascensão em apenas um ano. Em relação a 2020, o PIB per capita registrou alta nominal de 51,5%, de acordo com o relatório PIB Municipal 2021, divulgado pelo governo do Pará e pela Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa).

O PIB per capita de Canaã dos Carajás é o segundo maior dentre todos os municípios brasileiros, mas foi o que cresceu mais rápido e de forma mais vertiginosa. O indicador de Canaã fica atrás só de Catas Altas, em Minas Gerais (R$ 920.833) e à frente de outra cidade mineira: São Gonçalo do Rio Abaixo (R$ 684.168).

Todas elas são ricas em minério de ferro. Atrás da soja e do petróleo cru, essa commodity foi a terceira maior fonte de recursos do Brasil no mercado internacional em 2024 (com quase 30 bilhões de dólares em exportações, segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços).
Contradição entre riqueza e pobreza

Apesar do potencial dos minérios, um problema comum apontado por especialistas é a ineficiência do poder público local em aplicar recursos que, por lei, são distribuídos às cidades mineradoras. O mais relevante deles é a Contribuição Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), ou os chamados royalties dos minérios.

No ano passado, segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM), o município de Canaã dos Carajás recebeu, sozinho, mais de R$ 1,27 bilhão da CFEM. "E como esse dinheiro está sendo investido na cidade?", questiona Cristiane Faustino, coordenadora do Instituto Terramar, no Ceará.

"Uma parte pequena da cidade ganha muito bem. É curioso notar o alto padrão dos hotéis, para receber (...) atores ligados à mineração", explica o professor João Paulo Loureiro. "Por outro lado, quase metade das famílias da cidade depende de auxílios públicos" e trabalho informal. "Existe um abismo entre essas duas realidades."

Alguns poucos indicadores dão pistas dessa contradição entre a riqueza de um PIB per capita tão alto e a pobreza da realidade das pessoas. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) oficial mais recente de Canaã, de 2010, foi de 0,673. A escala vai até 1. Naquele ano, apenas um terço (35%) da população contava com coleta adequada do esgoto, por exemplo, enquanto 40% das pessoas cruzavam cada mês com metade de um salário mínimo (R$ 255 à época).

Seis anos depois, a Vale já estava prestes a inaugurar a mina S11D (Serra Sul). É o maior projeto da história da companhia, com um investimento total de US$ 79 bilhões, em valores atuais.

Mesmo com tanto dinheiro e tempo depois, o IDHM permanecia quase o mesmo: tinha crescido timidamente 1,48%, para 0,683, segundo relatório do Sistema Firjan, não-oficial, mas que usa a mesma metodologia do IBGE. A última medição oficial do IBGE é de 2010.

"É que uma parte pequena da cidade ganha muito bem. São essas pessoas que movimentam a economia da cidade, inclusive. É curioso notar, por exemplo, o alto padrão dos hotéis, para receber diretores da mineradora, representantes de empresas terceirizadas e outros atores ligados à mineração", explica João Paulo Loureiro, professor da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA).

"Mas, por outro lado, quase metade das famílias da cidade depende de auxílios públicos, como Bolsa Família, por exemplo. Sem contar a grande quantidade de gente que trabalha informal, vendendo comida, tocando um pequeno negócio. Existe um abismo entre essas duas realidades", completa.

Há três anos, quando o IBGE atualizou seu painel, os dados revelaram que, em 2022, se mantinha aquele mesmo número de 35% de pessoas sem acesso a esgoto tratado. Naquele ano, pelo menos 11 mil famílias viviam ali com metade de um salário mínimo (cerca de R$ 700).

Questionada sobre os projetos desenvolvidos a partir do dinheiro do CFEM, a Secretaria de Desenvolvimento Social da prefeitura de Canaã dos Carajás não retornou até a publicação desta reportagem.

Em nota, a Vale reforçou que apoia o município desde que iniciou as operações em Canaã, com diferentes projetos. Eles envolvem áreas como educação, saúde, emprego, esporte e lazer e segurança. A companhia disse ainda que "investiu em um conjunto de obras em parceria público-privada local, como a construção e reforma de oito escolas municipais e reforma e ampliação do hospital público municipal".

"Para explicar tudo, é preciso entender como isso aqui surgiu", sentencia Marco Antônio Lima, da UEPA.

A metamorfose de Canaã dos Carajás foi veloz – levou cerca de uma década.

O município nasceu na década de 1980, durante o projeto Grande Carajás, tocado pela Vale por ordem do regime militar. A então vila de Canaã dos Carajás permaneceu como distrito de Parauapebas até 1994. Parauapebas era a última estação da Estrada de Ferro Carajás, administrada pela Vale. Na década de 2010, a Vale já tirava dali 110 mil toneladas de minérios de ferro por ano.

Segundo a Vale, a Estrada de Ferro Carajás é a mais longa do país: de uma ponta a outra, cruza 970 km entre Maranhão e Pará. Afluência de habitantes e crescimento da cidade de Canaã dos Carajás são explicados pela busca de prosperidade na região, mas analistas alertam para declínio do "boom" – como em outros ciclos de commodities na história do país.Foto: Justiça nos Trilhos/Marcelo Cruz

No começo dos anos 2000, porém, a operação de Parauapebas tinha ficado custosa para a Vale, principalmente pela dificuldade tecnológica. A empresa não demorou a chegar a Canaã, atraída por estudos que mostravam que havia minérios de alta qualidade na região.

Quatro anos depois, veio o primeiro anúncio: havia na cidade uma mina com potencial de produzir 140 mil toneladas de cobre por ano – um metal com o qual a empresa jamais havia trabalhado na sua história.

"Foi um êxtase coletivo, um vislumbre. Você andava pela cidade e via as pessoas esperançosas", relembra Loureiro. "Havia uma ideia comum – tanto aqui quanto nos estados vizinhos – que o dinheiro ia circular e que todo mundo ia prosperar".

Não muito tempo depois, a Vale colocou a Mina do Sossego, onde havia achado o cobre, em operação. Em 2008, ela produzia metade de todo o metal no Brasil, para vender, sobretudo, aos chineses, escoando-o pela ferrovia até o Maranhão.

"Mas daí veio a revolução", conta Loureiro.

Por volta de 2015, o trem da Vale já chegava a Parauapebas sempre abarrotado. Eram trabalhadores de outros estados do Norte que desembarcavam para ajudar na obra do complexo Serra Sul Eliezer Batista, o S11D – o maior investimento privado da história brasileira –, destinado a extrair minérios de ferro de Canaã.

Naquele ano, a euforia do cobre da Mina do Sossego havia sido superada pela dos minérios que, segundo pesquisas, têm um grau de pureza ali muito maior do que em outras regiões do país – e até do mundo. Foram eles que mudaram o "patamar" de Canaã, como dizem relatórios da época.

Segundo a própria Vale, em torno de 14 mil pessoas participaram da construção da estrutura da S11D até a sua inauguração, em janeiro de 2017. Além de maior, o complexo também é considerado até hoje o mais moderno do Brasil.

Não foi à toa que a população de Canaã cresceu 188%: saiu de 26,7 mil em 2010 para mais de 77 mil no Censo de 2022 do IBGE. A própria cidade precisou se alargar, triplicando o número de domicílios no mesmo período (10,3 mil para 28,6 mil). O IBGE diz que nenhum outro município cresceu tanto, proporcionalmente, no Brasil, nesse intervalo de tempo.

Foi também quando a riqueza surgiu. Se hoje o CFEM de Canaã é de mais de R$ 1 bilhão, ele não passava de R$ 17 milhões em 2010. "O primeiro efeito dela foi uma bolha imobiliária", conta Loureiro.

Pesquisas feitas em universidades da região mostram a evolução paralela de realidades discrepantes. Enquanto muitos trabalhadores não qualificados iam engrossando bairros pobres, em beiras de rios, uma nascente classe média alta, ligada às atividades mineradoras do complexo, se ilhou em condomínios de luxo.

"É que, para cada trabalhador qualificado, treinado e contratado pelas regras da CLT que veio naquela época, chegaram outros dois ou três sem qualificação", explica Marco Antônio Lima.

A Vale diz que tem cerca cinco mil trabalhadores em Canaã dos Carajás hoje e outros 7,4 mil nas suas minas de Parauapebas, de onde extrai também metais como manganês e ouro.

Mas, conforme a S11D crescia, mais problemas sociais foram a consequência, como aumento da violência e exploração sexual de crianças e adolescentes, enumerados pelas fontes ouvidas pela DW.

Em fevereiro, o presidente Lula participou de evento em Parauapebas (PA) no qual foram anunciados investimentos de R$ 70 bilhões no Programa Novo Carajás, da Vale, para um período de cinco anos. 

Impactos ambientais também aumentaram. Cristiane Faustino se recorda de vários deles – da poluição de rios, das mortes de animais, do uso da terra –, mas um foi especialmente marcante para ela: o trem. "São vagões enormes que passam por dentro dos bairros jogando pó de minério de ferro para todo lado. Aquele pó faz muito mal para as pessoas. Era uma reclamação constante", diz. "E o trem precisa de uns 20 minutos para atravessar o território. Eu me lembro de olhar o ar, cheio de partículas, e ficar impressionada".

Questionada especificamente sobre esse aspecto, a Vale respondeu que faz um "monitoramento contínuo da qualidade do ar ao longo da estrada de ferro Carajás", e que adota "todas as ações necessárias para controle das emissões de material particulado, tais como umectação de vias e aplicação de polímero nos vagões carregados com minério".
"Nossa vida são ciclos"

No começo de fevereiro deste ano, João Paulo Loureiro notou que os preços dos imóveis dispararam de novo em Canaã de Carajás e em Parauapebas. Ele, que se prepara para lançar seu primeiro livro, Mineração na Amazônia brasileira: riqueza econômica versus população vulnerável, não demorou a achar uma possível explicação.

É que a Vale anunciaria, dali alguns dias, um investimento de R$ 70 bilhões no seu Programa Novo Carajás, para um período de cinco anos, em um evento em Parauapebas com a presença do presidente Lula. Canaã dos Carajás está no centro do projeto por causa da S11D.

No evento de fevereiro, a Vale reforçou que o dinheiro investido em Carajás tem um novo sentido: ao produzir mais cobre e de minério de ferro de alta qualidade, também chamado de "aço verde", a empresa colabora para fornecer materiais "essenciais à transição energética e para a redução de emissões de carbono".

Mas o professor permanece cético. "Nosso território não tem vida própria. Nossa vida são ciclos, sempre dependentes desses anúncios. Agora é a época da euforia, mas nós já vivemos isso outras vezes. Vai passar."

Os horrores impostos à população palestina

Foi a contragosto que o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu anunciou, nesta semana, a decisão de entreabrir uma fresta nas inenarráveis condições impostas à Gaza hermeticamente bloqueada desde março. Era preciso estancar a incômoda “campanha global contra alegações de fome extrema no território e aliviar as pressões de nossos aliados na Europa e Estados Unidos”. Por uma questão de relações públicas, decidira que não lhe restava outra opção — as imagens de crianças famélicas em feroz disputa por um punhado de farinha exigiam correção de curso. Era preciso dar um respiro àquele chão ainda chamado de seu por 2,2 milhões de palestinos.


Netanyahu tinha razão de ficar vexado com o súbito surto de indignação formal da França, Grã-Bretanha, Canadá e outros contra o estrangulamento de Gaza. Até então, excetuando alguns comunicados de morna admoestação, as grandes chancelarias vinham mantendo solene tibieza diante da sistemática inviabilização de vida naquele canto palestino — até porque várias das armas e bombas que esmigalham a estreita faixa há 18 meses têm procedência ocidental. De uma hora para outra, começou-se a denunciar o uso da fome como ferramenta de subjugação. Até na seara do irmão maior — os Estados Unidos de Donald Trump —, impaciente em ver o impasse desanuviado para ali criar uma resplandescente “Riviera” com campos de golfe, mega-hotéis de sua grife — e livre de palestinos.

Foi assim que, desde a quinta-feira, cem caminhões de abastecimento (o número necessário seria de 600 ao dia) puderam atravessar o bloqueio israelense. Na manhã seguinte, 15 desses caminhões foram assaltados por quem não comia pão havia 80 dias. Agora, o plano conjunto de Israel e Estados Unidos é estabelecer um sistema alternativo de distribuição, que não dependa das tradicionais agências das Nações Unidas voltadas para ajuda humanitária. Tanto Netanyahu como Trump estão convencidos de que essas agências são permissivas demais com o braço armado do Hamas, que seria responsável pelos saques em proveito de sua militância. Só não parece ocorrer aos dois estadistas que uma multidão faminta e desesperançada também é capaz de derrubar caminhões. De todo modo, o governo Trump já empoderou uma até então desconhecida Fundação Humanitária Gaza, fundada na Suíça em fevereiro, para supervisionar a operação a partir de maio, com o trabalho de campo terceirizado entre duas empresas privadas de logística e segurança.

O tímido reinício da ajuda humanitária é uma gota d’água num oceano de horrores impostos à população palestina. Desde o 7 de outubro de 2023, quando terroristas do Hamas cruzaram a fronteira e trucidaram 1.200 civis e militares israelenses, além de fazer 250 reféns e usá-los como mercadoria de negociação, a Faixa de Gaza virou experimento de subjugação. Quem diz isso, a favor ou contra, são vozes do alto escalão do poder israelense. Em programa da emissora DemocratTV de dezembro de 2024, o condecorado ex-ministro da Defesa Moshe Yaalon surpreendeu o entrevistador ao declarar que seu país vinha perdendo a identidade de democracia liberal e corria o risco de se tornar um “Estado corrupto, messiânico e fascista, que conquista, anexa e faz limpeza étnica”. O repórter ainda lhe deu uma chance de se corrigir:

— É o que o senhor acha? Que estamos nesse caminho?

— Já chegamos lá… A limpeza étnica já está ocorrendo, e não tenho outra palavra para ela — respondeu o militar aposentado que serviu nas Forças de Defesa de Israel (FDI) por três décadas, inclusive na unidade de elite Sayeret Matkal. Referia-se ao que já ocorrera na parte norte de Gaza, evacuada à força e destruída.

Àquela altura, o conceito de erradicação da vida palestina já tinha adeptos poderosos. O general da reserva Giora Eiland havia proposto dar apenas duas opções aos palestinos do norte de Gaza: “Rendição ou morte pela fome”. A coisa avançou várias casas a partir de março último, quando “Bibi” Netanyahu atropelou a frágil negociação de cessar-fogo em curso e simplesmente decretou o bloqueio total do território. A suspensão de qualquer alimento, eletricidade, água, medicamentos, combustível, profetizou o ministro das Finanças Bezalel Smotrich, da ala ortodoxa mais radical, seria a forma de abrir “as portas do inferno …da forma mais rápida e mortal”. Também previu a destruição completa de Gaza, agora sob ocupação definitiva das FDI. Aos 2,2 milhões de palestinos deslocados do nada para o nada, caberá espremer-se numa estreita faixa do território. “A população estará totalmente desesperada, compreenderá que não há mais esperança e começará a buscar por outro lugar para recomeçar a vida”, garante Smotrich.

Três dias atrás, coube ao ex-membro da Knesset Moshe Feiglin, cujo neto de 19 anos morreu em combate um ano atrás, externar sua convicção definitiva: “Toda criança, todo bebê em Gaza é um inimigo. O inimigo não é o Hamas, nem a ala militar do Hamas... Temos de conquistar Gaza e colonizá-la e não deixar uma única criança palestina lá. Não há outra vitória”. No fundo, sua linha de argumentação não é nova. Um ano atrás, segundo noticiou o diário Haaretz, enveredou por uma comparação tóxica: “Da mesma forma como Hitler disse ‘não posso viver enquanto sobrar um judeu’, também nós não podemos viver aqui se um único islamo-nazista permanecer em Gaza”.

Feiglin, de 63 anos, tem pretensões de se posicionar para tentar chegar a primeiro-ministro de Israel.