sábado, 11 de dezembro de 2021

País do esgoto


É o meio político brasileiro. Só se pode tolerá-lo tapando as narinas
Paulo Francis

Tempos de fome e recessão

Entramos em recessão, e o ministro Paulo Guedes afirmou que a economia brasileira está decolando. Nenhuma novidade. Bolsonaro nega o aquecimento global e a pandemia de covid-19. Mas nem tudo vai no mesmo caminho, pois, em tributo à realidade, a taxa de juros vai subir.

O conceito de negação surgiu no século passado. Para mim, foi numa carta de Freud, em 1935, que apareceu pela primeira vez. Antes disso, a negação era chamada de outro nome mais direto: mentira.

Há cerca de um mês, Paulo Guedes anunciou um grande projeto de captação de investimentos na área do meio ambiente. Não saiu do papel. Em Brasília, muitos deputados já perceberam que ele é o ministro da semana que vem, está sempre anunciando algo que não se consuma.

Tenho a impressão de que Guedes veio do mundo financeiro, onde o verbo tem um grande peso, mas o mundo real da economia, do saneamento básico, da habitação, da inclusão digital, do desenvolvimento sustentável, tudo isso parece distante e intangível em sua gestão.

Ele foi, até agora, incapaz de apresentar um plano de retomada pós-pandemia. Age como se tudo fosse voltar ao normal sem interferência do governo.

Nas ruas do Brasil, sente-se que a população sofre. Há fome e uma insegurança alimentar crescente.


Bolsonaro pretende abordar o tema com o Auxílio Brasil e, para chegar a ele, sacrificou a credibilidade econômica de seu governo, driblando o teto de gastos e dando um calote nos precatórios.

O Congresso foi apaziguado com o orçamento secreto, cerca de R$ 16 bilhões distribuídos sem transparência. O Supremo, depois de meses de denúncia, deteve o processo. Mas o reabriu com a promessa de romper o segredo daqui para a frente.

E o que foi gasto até agora? Parece que ficará para sempre como um segredo. Rodrigo Pacheco prometeu prestar contas daqui a seis meses. É quase tão remoto como os cem anos de segredo que o Exército determinou para divulgar as razões de seu perdão ao general Pazuello.

Não é justo dizer que eles roubaram R$ 16 bilhões. Também não é justo dizer que os gastaram honestamente. O segredo bloqueia qualquer julgamento, apenas estimula suspeitas.

Um deputado do Maranhão, quadro do PL (atual partido de Bolsonaro), investigado pela Polícia Federal, apareceu contando uma grande quantidade de dinheiro. Nada tão impressionante como o apartamento de Geddel Vieira, abarrotado de notas. Apenas um indício de que o processo foi democratizado e cada um maneja sua pequena fortuna.

Bolsonaro precisa ganhar as eleições e vai mover o Tesouro Nacional. Os deputados que o apoiam precisam ganhar a eleição e, certamente, vão usar as emendas de relator para alcançar seu objetivo. Essa relação entre presidente e Congresso não é nova, mas agora ganha uma estrutura mais consistente com as chamadas emendas de relator.

Impossível entender a economia sem levar em conta o mecanismo que move a política nacional. Guedes transformou-se num ministro que precisa viabilizar o dinheiro de campanha, entendido aqui como a tentativa de Bolsonaro de se ligar aos mais pobres. A Caixa Econômica passa a ser, também, um instrumento de captação de votos, despejando R$ 13 bilhões em empréstimos.

Não há dúvida de que tudo isso significa um alívio imediato e parcial para a sofrida população brasileira. Por outro lado, pode ser um obstáculo para soluções estáveis e de longo prazo. Com a baixa credibilidade, mínguam os investimentos, a inflação é acelerada, perdem-se empregos – enfim, perpetua-se a situação precária do País.

Nada disso parece interessar a amplos setores da política. Um governo populista não se importa em administrar a miséria, desde que continue no seu posto. Bolsonaro não dá a mínima para a situação real do País. Na verdade, com salário, transporte e habitação pagos, ele gasta cerca de R$ 1,3 milhão mensal, em média, no seu cartão corporativo. É possível, vivendo no Palácio da Alvorada, ter uma sensação de riqueza e prosperidade enquanto o País afunda na miséria, com pessoas roendo ossos e revolvendo lixo na luta pela sobrevivência.

O interessante é que um governo desse tipo não se importa também com a possibilidade de convulsão social. Na verdade, acha até que revoltas espontâneas jogam a seu favor, pois justificam o endurecimento do regime, a supressão de liberdades, a perseguição aos adversários políticos.

A única esperança é derrotálo nas urnas. O País não acabará com um segundo mandato de Bolsonaro. O desespero social, a perda de esperança, a destruição irreversível de biomas como a Amazônia, a evasão de cérebros, o empobrecimento cultural, tudo isso nos leva a um lugar desolador. Não podemos simplesmente classificar como uma volta ao passado. Antigamente, éramos o país do futuro. Bolsonaro e a extrema-direita detonarão o futuro.

O ano que começa daqui a algumas semanas é decisivo, acredito que para algumas pessoas, principalmente os jovens. Simboliza um marco, no qual se vai decidir se vale a pena dar murros em ponta de faca num país inviável. O problema é que tudo isso acontece num mundo cada vez mais hostil ao estrangeiro, mundo que a própria extremadireita se esforça por encolher, combatendo a imigração.

As desigualdades sociais ocultas

Um dos grandes problemas do Brasil de hoje é o do disseminado desconhecimento do que é a humanidade da pessoa, uma referência essencial à vida social. O que acarreta tensões sociais e a dessocialização de muitos indivíduos, condenados à anomia. A questão racial e o preconceito são componentes dessa anomalia. As manifestações frequentes de racismo são dela indícios, os de que esta sociedade está sociologicamente doente. O que põe em perigo pessoas inocentes e desvalidas.

Para muitos, no país inteiro, ainda há quem tenha dúvida sobre o que é a condição humana e sobre quem tem direito a invocá-la como atributo de identidade. São repetidas as evidências dessa característica oculta de nossas desigualdades sociais.

Não se trata apenas de racismo. Resquícios da escravidão ainda persistem, na mesma mentalidade que regulava o relacionamento violento entre o senhor e o escravo. Sendo o escravo uma mercadoria, era ele mero equivalente de coisa. Um item de compra e venda. Nem era considerado propriamente humano. Não apenas o escravo negro, africano ou de origem africana, mas também o pardo, o indígena e até o duvidosamente branco.


A abolição foi feita para libertar o branco do ônus econômico da escravidão, sem libertar de fato pardos e negros do estigma de coisa, de semovente, que era o do tratamento dos cativos. Joaquim Nabuco, em “O mandato da raça negra”, já explicara o quanto a escravidão degradava o próprio senhor de escravos, fazia-o expressão do cativeiro.

Não há um único dia sem uma notícia sobre vítimas dessa coisificação ou porque são negras, ou pardas, ou mesmo mulheres, negras ou brancas. Os nascidos para ser subalternos. A escravidão nos legou mais do que racismo, uma cultura de inferiorização de todos os seres humanos frágeis, independentemente de cor e raça.

A Lei Áurea aboliu juridicamente a escravidão, mas não aboliu nem sequer mencionou as formas de relacionamento decorrentes de desigualdade e de inferioridade sociais por meio das quais ela continuaria. A cultura do cativeiro ainda está na essência do nosso modo de ser e de não reconhecer no outro o humano que nele há, até na própria família.

Um desses casos, em dias recentes, ilustrado por fotografia de jornal, foi o de um rapaz negro, de 18 anos, algemado e sendo puxado pela moto de um PM, na Vila Prudente, em São Paulo. Ele estava de moto quando percebeu uma blitz da polícia, deu meia-volta e retornou na contramão. Foi perseguido e detido. Em sua mochila foram encontrados alguns tabletes de maconha, de uma entrega que ia fazer.

Mesmo em face do ilícito, o tratamento degradante que lhe foi dado é ilícito, abuso de autoridade se praticado por alguém investido na função de manter a lei e a ordem.

O tratamento degradante é violação dos direitos da pessoa. Seu crime, grande ou pequeno, não altera sua condição de humano. O delito não contamina a pessoa inteira nem nela suprime a humanidade de base. Na identidade de quem o comete, a mácula que acarreta é temporária. Por isso, nossa justiça formal é restitutiva. Ela pressupõe que a pessoa é maior do que o crime por ela cometido e que tem o direito de prevalecer sobre ele.

Poucas semanas antes, outro ato, mais violento ainda, consumou um ato degradante contra outro jovem, também negro, do Quilombo do Pêga, um dos quatro quilombos do município de Portalegre, Rio Grande do Norte.

O rapaz pediu pedaços de carne a dois sujeitos que estavam comendo um churrasco. Foi rechaçado e xingado de “drogado e bandido”. Injuriado, atirou pedra no mercadinho do agressor e correu. Foi perseguido, amarrado, arrastado, jogado de bruços na rua, surrado enquanto chorava sua dor e sua humilhação. O espetáculo de prepotência foi filmado por moradores. Uma revivescência do que era o castigo do negro no tronco e no pelourinho.

O agressor justificou-se diante das testemunhas, enquanto dava um pontapé nas costas da vítima: “O que é meu eu tenho o direito de defender”. Ou seja, foi esse o pretexto para justificar a violência cometida. Na forma e na verbalização, o agressor separou seu motivo da causa do conflito, que era a causa do agredido.

Ele já responde a processo, denunciado em junho de 2020 pela promotora de Justiça da comarca, por injúria racial, quando agrediu outro negro, numa discussão, chamando-o de “nego safado”, “você é um nego b...” e ainda “suma do meu comércio que nem de nego eu gosto”, segundo a jornalista Rose Serafim, da “Agência Saiba Mais”.

Os dois casos de discriminação e preconceito indicam que a desigualdade social não é a que se mede por índices econômicos. Eles a mediriam de fato se todos os avaliados fossem jurídica e socialmente iguais e reconhecidos como humanos.