Para muitos, no país inteiro, ainda há quem tenha dúvida sobre o que é a condição humana e sobre quem tem direito a invocá-la como atributo de identidade. São repetidas as evidências dessa característica oculta de nossas desigualdades sociais.
Não se trata apenas de racismo. Resquícios da escravidão ainda persistem, na mesma mentalidade que regulava o relacionamento violento entre o senhor e o escravo. Sendo o escravo uma mercadoria, era ele mero equivalente de coisa. Um item de compra e venda. Nem era considerado propriamente humano. Não apenas o escravo negro, africano ou de origem africana, mas também o pardo, o indígena e até o duvidosamente branco.
A abolição foi feita para libertar o branco do ônus econômico da escravidão, sem libertar de fato pardos e negros do estigma de coisa, de semovente, que era o do tratamento dos cativos. Joaquim Nabuco, em “O mandato da raça negra”, já explicara o quanto a escravidão degradava o próprio senhor de escravos, fazia-o expressão do cativeiro.
Não há um único dia sem uma notícia sobre vítimas dessa coisificação ou porque são negras, ou pardas, ou mesmo mulheres, negras ou brancas. Os nascidos para ser subalternos. A escravidão nos legou mais do que racismo, uma cultura de inferiorização de todos os seres humanos frágeis, independentemente de cor e raça.
A Lei Áurea aboliu juridicamente a escravidão, mas não aboliu nem sequer mencionou as formas de relacionamento decorrentes de desigualdade e de inferioridade sociais por meio das quais ela continuaria. A cultura do cativeiro ainda está na essência do nosso modo de ser e de não reconhecer no outro o humano que nele há, até na própria família.
Um desses casos, em dias recentes, ilustrado por fotografia de jornal, foi o de um rapaz negro, de 18 anos, algemado e sendo puxado pela moto de um PM, na Vila Prudente, em São Paulo. Ele estava de moto quando percebeu uma blitz da polícia, deu meia-volta e retornou na contramão. Foi perseguido e detido. Em sua mochila foram encontrados alguns tabletes de maconha, de uma entrega que ia fazer.
Mesmo em face do ilícito, o tratamento degradante que lhe foi dado é ilícito, abuso de autoridade se praticado por alguém investido na função de manter a lei e a ordem.
O tratamento degradante é violação dos direitos da pessoa. Seu crime, grande ou pequeno, não altera sua condição de humano. O delito não contamina a pessoa inteira nem nela suprime a humanidade de base. Na identidade de quem o comete, a mácula que acarreta é temporária. Por isso, nossa justiça formal é restitutiva. Ela pressupõe que a pessoa é maior do que o crime por ela cometido e que tem o direito de prevalecer sobre ele.
Poucas semanas antes, outro ato, mais violento ainda, consumou um ato degradante contra outro jovem, também negro, do Quilombo do Pêga, um dos quatro quilombos do município de Portalegre, Rio Grande do Norte.
O rapaz pediu pedaços de carne a dois sujeitos que estavam comendo um churrasco. Foi rechaçado e xingado de “drogado e bandido”. Injuriado, atirou pedra no mercadinho do agressor e correu. Foi perseguido, amarrado, arrastado, jogado de bruços na rua, surrado enquanto chorava sua dor e sua humilhação. O espetáculo de prepotência foi filmado por moradores. Uma revivescência do que era o castigo do negro no tronco e no pelourinho.
O agressor justificou-se diante das testemunhas, enquanto dava um pontapé nas costas da vítima: “O que é meu eu tenho o direito de defender”. Ou seja, foi esse o pretexto para justificar a violência cometida. Na forma e na verbalização, o agressor separou seu motivo da causa do conflito, que era a causa do agredido.
Ele já responde a processo, denunciado em junho de 2020 pela promotora de Justiça da comarca, por injúria racial, quando agrediu outro negro, numa discussão, chamando-o de “nego safado”, “você é um nego b...” e ainda “suma do meu comércio que nem de nego eu gosto”, segundo a jornalista Rose Serafim, da “Agência Saiba Mais”.
Os dois casos de discriminação e preconceito indicam que a desigualdade social não é a que se mede por índices econômicos. Eles a mediriam de fato se todos os avaliados fossem jurídica e socialmente iguais e reconhecidos como humanos.
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