sábado, 3 de março de 2018

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The Sacred Valley of the Incas in Peru
Vale sagrado dos incas (Peru)

Improvisos seculares

Ainda no século XIX, um dos maiores brasileiros de nossa história, Joaquim Nabuco, disse que a Abolição ficaria incompleta se os escravos não recebessem terra para trabalhar, e seus filhos não recebessem escolas para estudar. Não lhe deram atenção. Cem anos depois, outro dos maiores brasileiros da história, Darcy Ribeiro, disse que se o Brasil não construísse escolas naquele momento, teria de construir cadeias no futuro.

Junto com o então governador Leonel Brizola, Darcy iniciou a construção de um sistema estadual de escolas públicas com máxima qualidade: os Cieps. Os governadores seguintes não deram continuidade a esse sistema em horário integral. Em 1990, o ex-presidente Collor tentou levar a ideia para o resto do Brasil com os Ciacs, mas, com o impeachment, a tentativa de federalização foi abortada.


A sociedade brasileira continuou sua marcha de pobreza, violência, desigualdade, ineficiência, improvisando soluções parciais para cada problema. Eleitos e eleitores não percebem que o berço de nossos problemas está na falta de um sistema nacional de educação com máxima qualidade; que o futuro de um povo tem a cara de sua escola no presente (83% dos jovens infratores abandonaram a escola ainda na educação de base). A população vê a ameaça de uma pessoa portando fuzil, mas não vê a esperança em um professor segurando um lápis, um livro, um computador dentro de uma boa escola. No momento, quase todo carioca apoia, e os demais brasileiros invejam, a decisão de federalizar a segurança do Rio de Janeiro, mas nem imaginam que a maior parte se opõe a uma federalização da educação de base. Preferimos continuar nas improvisações seculares: “Abolição”, “República”, “desenvolvimento”, “democracia” e “segurança” sem educação. A urgência de cuidar do fuzil nos faz desprezar a importância do lápis, mas guiar-se apenas pelo desespero com a violência não leva à construção da paz.

Em sete meses, teremos eleições gerais, mas nenhum candidato a presidente parece consciente da dimensão de nossos problemas, nem interessado em oferecer uma resposta que não da improvisação pontual. Ainda menos, enfrentar os problemas imediatos considerando que a solução de longo prazo está na construção de um sistema nacional de educação com máxima qualidade.

Querendo apenas agradar ao eleitor assustado com o presente, ficam presos às improvisadas trapalhadas seculares dos discursos demagógicos. Os partidos boicotam seus candidatos que defendem a educação como solução, porque isso não atrai votos. Por mais consistência lógica que eles tenham, a urgência destrói os mais sólidos argumentos. Quem está com sede não aceita o aviso de que a água do poço em frente está contaminada e devemos cavar um novo poço em outro lugar. Poucos votam em quem propõe enfrentar fuzil também com lápis.

Por isso, não há ouvidos para a fala de Nabuco, nem de Darcy, nem para a ex-senadora Heloísa Helena quando, mais recentemente, disse: “Se adotássemos uma geração de brasileiros, ela depois adotaria o Brasil”.

Cristovam Buarque

As duas fases do governo

Pode ser qualificado como populista, oportunista ou qualquer outro adjetivo que se queira mencionar, mas é fato que o governo do presidente Michel Temer é um, antes do Carnaval, e outro, depois da folia de Momo. Assim, mutante, o presidente que até a quarta-feira de cinzas parecia ser um fardo para os aliados no jogo eleitoral que se aproxima, pode, agora, vir a ser um importante agente político de sua própria sucessão. Sabemos que há um longo caminho até a eleição, mas o País dará um grande salto se as forças políticas se mostrarem capazes de abandonar um pouco o Fla-Flu dos últimos anos e convergirem em torno de uma agenda mínima proposta por essa espécie de segunda gestão Temer.


No primeiro governo tinha-se um Poder Executivo que, aparentemente, estava em estado letárgico. Refém de um Legislativo ganancioso, radicalmente fisiológico e sem nenhum pudor ético. Uma gestão fragilizada com parte de sua equipe citada em falcatruas, diante de um Ministério Público travestido de super-herói. Uma administração dependente de uma agenda econômica extremamente impopular e reformista, mas necessária para tirar o País de uma recessão sem precedentes na nossa história republicana. Com alguma habilidade, muita verba pública e estratosférico índice de impopularidade, esse primeiro governo Temer construiu uma base de apoio no Congresso para manter o presidente no Palácio do Planalto e aprovar parcialmente as amargas reformas, o suficiente para agora começar a colher bons resultados econômicos, que se espera, nos próximos meses, possam refletir no dia a dia do cidadão.

O segundo governo Temer parece revigorado. Praticamente abdicou da reforma da Previdência e assim cortou as amarras que o deixavam refém da Câmara e do Senado. Trocou a pauta negativa por uma agenda conectada com os anseios populares e empunhou a bandeira da segurança pública. Reduzir a violência é o desafio. Em pouco mais de dez dias, o governo, antes letárgico, decretou intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro, criou o Ministério da Segurança e começa a construir uma força de elite nacional, que reúne os serviços de inteligência das Forças Armadas, amplia o contingente da Polícia Federal e tira os militares dos quartéis para que efetivamente patrulhem as fronteiras. Nessa batalha extremamente popular, o presidente passou os últimos dias a reunir governadores de diversos partidos para que se unam em torno de um plano de ação de comum. Só na quinta-feira 1, anunciou crédito de R$ 42 bilhões para que os estados invistam em planos contra a violência.

Não é pouco para um País que há décadas procura um projeto nacional de segurança pública, visto que os estados não dão conta de enfrentar um crime que não respeita as fronteiras, sejam elas nacionais ou internacionais. O segundo governo Temer entendeu que para enfrentar as organizações criminosas não basta comprar viaturas e armas, ou ampliar os contingentes policiais. Com as medidas anunciadas nos últimos dias, o governo pôs fim ao discurso de que segurança não é tarefa federal e inaugurou, assim, uma nova dinâmica para tratar do assunto. O Congresso logo reagiu e os presidentes da Câmara e do Senado correram para tirar das prateleiras os inúmeros projetos que tratam do tema e que havia anos estavam paralisados. Animais políticos que são, deputados e senadores sabem que, se o governo conseguir reduzir a violência e fizer frente ao crime organizado, o presidente se firmará como um importante eleitor e a eleição de alguma forma passará por ele. Interesses políticos à parte, para os brasileiros é importante que o projeto dê resultados e que o governo a ser eleito possa estar comprometido com as reformas que o primeiro governo de Temer não conseguiu realizar.

Paisagem brasileira

Aconchego do campo

Temer virou um réu esperando para acontecer

Em matéria penal, Michel Temer revela-se um recordista. Supera suas próprias marcas numa velocidade estonteante. Virou o primeiro presidente da história a ser denunciado por corrupção. Tornou-se o primeiro mandatário a ostentar duas denúncias criminais. Sobreveio um inquérito sobre a suspeita de recebimento de propinas de empresas portuárias. E nesta sexta-feira, o relator da Lava Jato no Supremo, Edson Fachin, adicionou Temer no rol de investigados do inquérito que apura o pagamento de propina de R$ 10 milhões da Odebrecht para o PMDB. Coisa negociada num jantar no Palácio do Jaburu, a residência oficial de Temer.


A coleção de encrencas impressiona: presidente de um mandato-tampão, Temer ostenta duas denúncias e dois inquéritos. Para lidar com o passivo ético, o presidente desenvolveu uma filosofia peculiar. Para ele, não há problema tão grande que não caiba no dia seguinte. Ser transformado em réu, por exemplo, é uma coisa que Temer prefere deixar sempre para depois.

É falsa a impressão de que Temer resolve seus problemas penais. O presidente apenas sobrevive a eles. Terminado o mandato, as denúncias congeladas serão retiradas do freezer. E nada impede que os dois inquéritos se convertam em mais um par de denúncias. Mais do que um presidente, Temer é um réu esperando para acontecer. Cada vez que ele faz pose de presidente, despenca sobre sua cabeça uma novidade para recordar aos brasileiros anestesiados que um presidente não pode ser só uma pose. É preciso que, por trás da pose, exista uma noção qualquer de ética.

Co-irmãos

(Os partidos políticos têm) os mesmos defeitos e algumas qualidades em comum.
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Evidentemente que os partidos são um defeito necessário, porque dividem, mas é uma divisão necessária para agrupar, para reunir a ideia da democracia parlamentar que temos. Agora, o erro das pessoas é adorná-los com méritos extraordinários, porque isso faz-nos cair numa partidolatria, imprópria de espíritos livres! Não penso que a nossa classe política seja pior do que a classe política de outros países. Ponhamos as coisas neste pé: as minhas exigências estéticas e éticas não tornam muito fáceis as minhas relações com a classe política. São caminhos separados. Não vamos pelo mesmo trilho. Mas a classe política é necessária. Ela existe e tem defeitos. Terá também uma ou outra qualidade
Natália Correia (1923 - 1993)

Você vai acabar elegendo Bolsonaro à presidência

Eu ainda não acho que o deputado Jair Bolsonaro será eleito presidente da República neste ano. Mas, se ele tem alguma chance, ela depende de você, que tem medo do capitão. Você, que se auto-congratula diariamente diante do espelho por se preocupar com os pobres e que enxerga ódio para todo o lado, menos em você mesmo. Bolsonaro fala grosso, grita, esbraveja, assusta, mas o que de fato poderia fazer se eleito presidente? Legalizar a tortura no Brasil? Criminalizar a homossexualidade? O debate acerca da possibilidade de ele assumir o Palácio do Planalto está tão fora da realidade que corre o risco de elegê-lo.

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A eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, expôs de forma clara os parâmetros sob os quais o confronto político é travado há décadas. O establishment (partidos, empresariado, mídia) sempre vai optar pelo candidato menos disruptivo, mais previsível. Trump rasgou o roteiro, porque disputou a batalha cultural, que é a que importa há algumas décadas. O presidente dos EUA não se submete ao script padrão, não se constrange quando é chamado de racista ou machista, palavras que viraram cavalos de batalha, e retruca insultos com desqualificações e deboches.

Bolsonaro é completamente diferente de Trump, mas segue regras parecidas. Fala o que pensa — ou, melhor ainda, o que não pensa. Isso cativa a porção do Brasil que não aderiu à política identitária, essa que privilegia o debate sobre minorias. Quanto mais a imprensa e os adversários políticos baterem nessa tecla, mais prestígio Bolsonaro ganhará entre os grupos que não se veem representados em discursos sobre transexuais e negros — que não raro interditam todo o debate franco em relação a qualquer que seja o assunto em discussão.

O pré-candidato do PSL é acusado de incitar o estupro ao mesmo tempo em que defende a castração química de estupradores. Faz sentido? Bolsonaro é destemperado — o que não é exatamente uma qualidade para um presidente da República — e ainda paga por ter respondido de forma ofensiva à ofensa de uma adversária política anos atrás. Teria revelado seu machismo espontaneamente? Nem todo mundo vê assim. A esquerda brasileira pretende fazer de Bolsonaro um símbolo do mal por conta de posicionamentos rotulados como “polêmicos”. E o deputado acabou se transformando em um símbolo do bem para quem não gosta da esquerda brasileira.

Talvez por isso o fato de a família Bolsonaro ter uma dezena de imóveis e, ainda assim, seu patriarca gozar de auxílio-moradia, não interfira em sua popularidade. Não é exatamente a um sistema político que Bolsonaro se opõe. É a um sistema cultural. E, ao fazê-lo, ele recebe carta branca da parcela do país que joga esse mesmo jogo. A vulgaridade da frase “uso para comer gente” é percebida por todos, mas relevada por quem está interessado em avançar alguns passos no campo de batalha cultural que se trava no Brasil desde a ditadura militar — mais em A corrupção da inteligência (Record, 2017), de Flávio Gordon.

Um ano depois da chegada de Trump à Casa Branca, os Estados Unidos não acabaram, apesar de a imprensa norte-americana anunciar a derrocada inevitável do império diariamente. Pode ser que a potência só sinta os alegados efeitos maléficos da gestão Trump daqui a anos, mas, nesse caso, os jornais locais, reverberados mundialmente, deveriam estar dizendo isso. Quanto mais histérica e longe da realidade soa a mídia norte-americana, menos os leitores acreditarão nela. O mesmo se aplica a Bolsonaro.

Quanto mais o deputado for tratado como pária, homofóbico, xenófobo, fascista, machista e misógino, mais prestígio ele ganhará entre aqueles que não enxergam nessas desqualificações mais do que armas da batalha político-cultural. Por enquanto, esses estigmas continuam funcionando para a parte mais proeminente da população, os intelectuais que definem agendas políticas e fazem a cabeça da elite universitária, mas esses termos vão se desgastando pelo uso. Não serviram para impedir a ascensão de Trump ou a saída do Reino Unido da União Europeia.

O que fazer, então, para impedir a eleição de Bolsonaro? Seguindo o raciocínio, a melhor alternativa seria tratá-lo como mais um — ou simplesmente ignorá-lo. Mas isso parece ter se tornado impossível. A armadilha está montada. A política identitária precisa ser alimentada periodicamente, e Bolsonaro é um dos melhores espantalhos de tudo aquilo que os adeptos dessa perspectiva de mundo dizem combater. Para impedir a derrota na batalha cultural, a esquerda nacional pode acabar entregando uma vitória política nas mãos do seu maior inimigo declarado.