Privilégio? Tomemos cuidado com as palavras. Elas são signos ideológicos, ensinava Bakhtin. Todas as palavras. Exemplos não faltam. Quando chamamos de “vândalos”, “baderneiros” ou “criminosos” os mascarados que atiram pedras nas vitrines no calor das manifestações de rua no Brasil, enquanto, de outra parte, chamamos de “jovens rebeldes” os também mascarados que praticam os mesmíssimos atos nos protestos em Caracas, quem fala em nossa fala é a ideologia, e nós não nos damos conta (a ideologia tem disso: ou é inconsciente, ou não é ideologia).
Agora um novo estereótipo vem sendo martelado nos meios de comunicação para enxovalhar o funcionário público. As palavras “privilégio” e “privilegiado” são os alicerces de uma campanha de desmoralização do funcionalismo. A campanha é oficial. Trata-se de uma ação deliberada de ninguém menos que o governo federal. Isso mesmo: os servidores brasileiros são caluniados pelos seus superiores hierárquicos (os governantes). Estamos diante de uma infâmia.
Sabemos todos que reformar a Previdência é uma agenda inadiável e imprescindível. Ninguém de posse da razão deixará de reconhecer essa verdade. O problema está, mais do que nas propostas mal costuradas, na propaganda insidiosa pela qual o governo alega defender a causa da reforma. O discurso oficial – endossado, estimulado, emulado e patrocinado por amplos setores do capital e da sociedade civil – escalou para o papel de vilão os funcionários públicos, que aparecem na foto como os causadores da “conta que não fecha”. Segundo a campanha, é preciso acabar com os “privilégios” que travam o desenvolvimento do Brasil. Não, o governo e seu coro não se estão referindo aos faraós do nosso crony capitalism de abadá, nem às celebridades hiperempreendedoras viciadas nas mamadeiras do BNDES. Para o governo, “privilegiados” são os que fizeram carreira no serviço público e se aposentaram.
Temos, enfim, que o funcionalismo é o novo vilão nacional. Mas que vilão é esse? São brasileiros comuns, que sobrevivem medianamente e um dia acreditaram na promessa do Estado de que, se topassem trabalhar recebendo proventos limitados, sem os altos benefícios e os bônus elevados que podem ser alcançados na iniciativa privada, teriam, no final da vida, uma aposentadoria digna. Agora, o mesmo Estado, que antes pedia renúncias no presente em nome da segurança futura, o mesmo Estado que afirmava, com base na lei, que a aposentadoria um pouco melhor era um direito, passa a estereotipar seus servidores como “privilegiados”.
Isso não está certo. Por mais que existam distorções – algumas aviltantes – nos holerites do funcionalismo, essa generalização não é justa. Em nome do respeito humano e da honestidade intelectual, temos o dever de questionar os bordões dessa campanha. O governo federal, secundado por seus corneteiros, que orientam, reverberam ou multiplicam a campanha, está conseguindo pregar na testa dos servidores o rótulo de sanguessugas, aproveitadores, parasitas; está conseguindo substituir o velho estereótipo do funcionário público, que já era muito ruim – o estereótipo do “barnabé”, do incompetente, do acomodado –, pelo novo estereótipo de chupim endinheirado. Chegamos, com isso, ao arremate caprichoso de um processo industrial de fabricação de estereótipos que consagrou uma certa ideologia – ela mesma um estereótipo obtuso – que só vê o Estado como fator de atraso e só vê virtude no mercado sem lei.
Ninguém aqui vai negar que o serviço público acomoda rapinagens inaceitáveis, como essa gambiarra criptojurídica, mal disfarçada sob a rubrica esperta de “auxílios” (auxílio-moradia, auxílio-livro, auxílio-isso, auxílio-aquilo), cujo propósito é burlar o teto constitucional. Essas distorções têm de acabar, é claro. Mas essa campanha corrosiva não quer acabar com as distorções. O propósito dela é outro: ela quer acabar com a respeitabilidade do servidor público no Brasil. Para quê? Talvez para esconder a real responsabilidade pelo rombo que aí está, responsabilidade que é dos governos e dos legisladores, sempre omissos, e não do funcionalismo.
E o truque está dando certo. Por obra de uma prestidigitação publicitária paga com recursos públicos, os servidores estão levando a culpa e se converteram no objeto do ódio invejoso de uma nação em crise. Onde está o privilégio?