terça-feira, 28 de agosto de 2018

Brasil, perigo nas ruas


Um índio em Copacabana

Acreditar em milagre - “creio porque é absurdo”, dizia Tertuliano; cremos - reitera o bom senso - porque a vida sem encantamento não é suficiente.

O milagre é o que acontece a despeito dos limites impostos pela realidade. Houve um tempo em que viajar de avião era um perigo; em outro, supúnhamos que os políticos roubavam, mas não com tanta obstinação.

Na minha longa vida, vivi alguns milagres. Um deles foi ver o Brasil ganhar cinco Copas do Mundo. Outro foi ter sobrevivido à minha audácia antropológica de “viver com índios”. Neguei o futuro previsível àquela época: virar advogado, arquiteto, engenheiro, militar ou médico, para tentar “ser antropólogo”. Uma profissão na qual não se vira porque nela há um encontro conflituoso e transformador - investigar outras gentes produz uma singular experimentação de si mesmo. Insidiosamente, os costumes e as crenças do povo em que se foi um intruso disposto a deslumbrar-se com o seu cotidiano mais banal, acaba perturbando a crença na humanidade onde se nasceu.

Tal como na arte não há como “virar antropólogo”. Há somente como se dispor a experimentar a marginalidade de quem denegou suas crenças para tentar compreender a dos seus anfitriões, cujo estilo de vida é visto como selvagem. Vida de “índios”, como falamos com profunda ignorância e preconceito.

Talvez esse tenha sido um dos meus milagres quando, com Júlio Melatti, passei quatro meses com os índios gaviões no Rio Praia Alta, sul do Pará, em 1961.

Ali ocorreu uma experiência inusitada: éramos dois antropólogos para meia dúzia de nativos cuja cultura os interesses locais haviam dissolvido. Aquela humanidade que hoje, felizmente, conta com cerca de 500 almas, teve a força de superar uma cruel depopulação ao lado da agressão dos “castanheiros”. Sua chamada “integração” ao Estado nacional brasileiro foi violenta.

Relendo os meus diários, a limpidez da velhice me deixa ver, com Joseph Conrad na minha cabeça e Darcy Ribeiro ao meu lado, o coração das trevas. O momento em que uma humanidade se percebe às voltas com sua extinção. O milagre foi testemunhar a sobrevivência dessa sociedade, que eu mesmo condenei à extinção no livro Índios e Castanheiros (escrito com Roque Laraia, em 1967), como uma orgulhosa tribo depois de ter convivido tanto tempo com a morte.

Foi ali que, caçando, imaginei estar perdido.


Em 1962, Kaututere, um índio falante, determinado e curioso que, por isso mesmo, recebeu em Itupiranga o pejorativo apelido de “Doidão”, veio ao Rio, hospedou-se no Leme e o guiei parcialmente. Vale lembrar que na caçada que fizemos, ele me assombrou por sua desenvoltura em localizar os porcos, livrá-los de suas entranhas e levá-los para a aldeia.

Na época, meus pais moravam em Copacabana onde encontrei Kaututere desalinhado nas roupas que vestia e incomodado pelos sapatos que lhe apertavam os pés. Levei-o para ver a praia e as lojas em que ele teve o desconforto de ser visto - tal como fui em sua aldeia - como curiosidade.

Visivelmente inseguro, meu hospedeiro voluntarioso experimentava o reverso do que eu havia vivido entre sua gente. Agora era ele o intruso dependente de um guia. Na mata, eu era uma criança. Agora, andávamos de mãos dadas em Copacabana. Era ele o amedrontado que se surpreendia com a quantidade de “kupen”. De estrangeiros - cujo número ultrapassava sua imaginação. Só relaxou quando, no apartamento, conheceu meus pais, irmãos e tia o que, certamente me humanizava, ao mesmo tempo em que o remetia de volta à humanidade que era a sua, na qual todos se conheciam.

Por ignorância, não repeti a experiência de Franz Boas com um nativo kwakiutl, que o visitara em Nova York. Não Kaututere, o etnólogo gavião, para nenhum lugar especial. Ele foi apenas um índio em Copacabana. Mas fizemos um profundo experimento antropológico: vimos um ao outro de modo reverso por meio do milagre da reciprocidade - esse perfume do humano.

O que mais se partilha



A imbecilidade é a inferioridade humana mais razoavelmente partilhada
Vergílio Ferreira

A violência em Roraima é contra a imagem no espelho

Não se compreende a violência dos brasileiros contra os venezuelanos sem entender o que é estar na fronteira e se saber à beira do mapa, a borda como o precipício que lembra a quem se agarra ao lado de cá que há uma fera rosnando no desconhecido. Com exceção dos povos indígenas, a população não indígena de Roraima é formada por migrantes recentes, a maioria da segunda metade do século 20. E sempre chegando de um outro lugar em que o chão se tornou movediço embaixo dos pés. Muitos não desembarcaram em Roraima diretamente do lugar em que nasceram, mas antes tentaram pertencer a outros pontos do mapa e não puderam se fixar por falta de trabalho ou outras faltas. Quem alcança um estado como Roraima vindo das regiões mais pobres do Brasil —ou das porções mais pobres dos estados ricos— sabe que alcançou uma espécie de território limite. Dali pra frente não há mais para onde andar. Talvez o que um brasileiro de Roraima vislumbre num venezuelano desesperado e sem lugar seja o retrato de si mesmo. Uma velha foto bem conhecida empurrada para o fundo de uma gaveta da qual ninguém quer lembrar, mas que nunca pôde ser totalmente esquecida. Diante dos venezuelanos famintos, doentes e assustados, desejando desesperadamente entrar, a imagem se materializa como um espelho que é preciso destruir. O que destroem no corpo do outro é a imagem de si mesmos cujo retorno não podem aceitar.

A angústia de não pertencer rugia dentro da maioria das pessoas que entrevistei em Roraima, em diferentes momentos. Mas isso jamais era admitido. Ao contrário. Como costuma acontecer neste tipo de fenômeno, ela se expressava como uma identidade feroz, a de ser o único cidadão legítimo, o único com o direito de estar ali, o único que trabalha e quer progredir. Isso se manifestava em três comportamentos clássicos: a hostilidade contra estrangeiros de outra língua, especialmente americanos, a desconfiança com relação a brasileiros não migrantes, o desejo de apagar as populações nativas, ainda que pela assimilação ou pela supressão de direitos.


Anos atrás eu estava num bar em Boa Vista, à beira do Rio Branco, quando os clientes começaram a se levantar nas outras mesas e apontar o dedo para cima. A princípio, eu e o fotógrafo não entendemos e nos alarmamos que algo grave pudesse estar acontecendo. Até que alguém gritou, visivelmente alarmado, com os olhos postos no céu noturno: “Lá! Os americanos espionando a Amazônia!”. Tinham visto o que acreditavam ser um satélite e se sentiram ameaçados por essa espécie de invasão gringa e alienígena, como uma versão da “Guerra dos Mundos”, de H. G. Wells.

Com a disseminação da internet, habitantes de toda a região amazônica se tornaram ao mesmo tempo alvo e propagadores daqueles SPAMs com variações da seguinte frase: “Os gringos querem tomar a Amazônia do Brasil!”. Como se a Amazônia não estivesse tomada desde a ditadura civil-militar (1964-85) por empreendimentos transnacionais, em geral em conluio com governos e elites locais, a maioria deles destruidores do meio ambiente. E mesmo muito antes da ditadura: como exemplo, basta lembrar de Fordlândia, o desvario de Henry Ford a partir do final dos anos 20 do século passado, ao criar uma cidade tipicamente americana no coração da floresta para a extração da borracha.

Hoje, a quantidade de chineses circulando pela Amazônia quase certamente é muito maior do que a de americanos. Mas há também noruegueses, como os da Hydro Alunorte, que contaminou os rios e os igarapés de Barcarena, no Pará, e canadenses, como os da mineradora Belo Sun. Se o projeto de implantar a maior mina de ouro a céu aberto for adiante, a sobrevivência dos povos, do rio e da floresta na Volta Grande do Xingu, já altamente impactada pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, pode não ser mais possível.

Curiosamente, no imaginário local das Amazônias urbanas, para parte da população esses gringos são uma esperança de melhoria imediata, de emprego e de “progresso”, mesmo que saibam que temporários. Mas para um migrante a vida é sempre temporária, o chão é que não pode mais ser. A palavra “empresa” ou “empreendimento” desestrangeiriza o que vem de fora, é portadora de uma familiaridade universal, esta uma conquista subjetiva do capitalismo com efeitos bem objetivos.

Os perigosos são os outros, estes que espionam nos céus ou que perambulam pelo território fotografando a floresta ou recolhendo amostras ou lutando pelos direitos dos povos indígenas. Ou apenas fazendo perguntas. Quando se contrapõem a um empreendimento poluidor e destruidor do meio ambiente, ou se colocam em defesa dos interesses das populações nativas, as ONGs (organizações não governamentais) são tachadas de “gringas” mesmo quando brasileiras. Lembro de um fotógrafo francês que foi amarrado numa estaca de pau ao chegar numa cidade do interior de Roraima. Suspeito pelo motivo de ser um estranho com uma câmera, ele de imediato se tornou inimigo. Não era visto como alguém da mesma espécie, poderia ter uma cabeça de polvo e olhos no lugar do coração.
O sentimento de terem sido “abandonados pelo Brasil” é uma marca constituinte da identidade do que chamam “roraimense”
Em Roraima ouvi muitas vezes a pergunta: “Você veio do Brasil?”. O Brasil era toda a parte debaixo do mapa, em especial o centro-sul. E marcava a diferença entre os que falavam a mesma língua, mas não pertenciam ao mesmo território simbólico. A maior parte de Roraima contraria a música de Chico Buarque, sobre “não existir pecado do lado de baixo do Equador”. Uma grande parcela do estado, incluindo a capital, Boa Vista, está no hemisfério norte. Roraima era “território” do Brasil e só virou estado da federação com a Constituição de 1988. Essa marca é ainda muito presente. Embora a maior parte da população viva direta ou indiretamente ligada ao serviço público, o sentimento de ter sido abandonada pelo governo federal e de ter menos tudo, inclusive reconhecimento, é uma marca quase constituinte da identidade do que chamam “roraimense”.

É fácil compreender como a disputa atual —entre parte de Roraima, liderada pela governadora Suely Campos (PP), e Brasília e o Brasil, representados pelo governo central e o Supremo Tribunal Federal (STF)— repercute e amplia este sentimento de isolamento ao impedir o poder local de fechar a fronteira para os venezuelanos. Membro de um clã político que espolia o Estado há décadas, Suely Campos é mulher de Neudo Campos, ex-governador de Roraima. Ele é um freguês assíduo de processos criminais, envolvido, entre outros casos, no “Escândalo dos Gafanhotos”, assim batizado porque funcionários fantasmas estavam “comendo” a folha de pagamento do Estado para encher o bolso de políticos e apadrinhados dos Campos. A atual governadora, que é candidata à reeleição, encontra na manipulação das paixões e dos medos uma oportunidade numa eleição difícil.

Mais uma vez o Brasil e Brasília não compreendem Roraima e os roraimenses. É assim que vários moradores de Roraima se manifestam nas redes sociais, ofendidos e magoados por serem considerados sem coração e xenófobos por agredirem venezuelanos e reivindicarem o fechamento das fronteiras. O Brasil não sabe nada de Roraima, é o que dizem, com muito ressentimento e certa razão. Eles —ou seus pais e avós— escalaram o mapa e lutaram para estar lá. Ninguém ajudou, apesar de paradoxalmente Roraima depender de dinheiro público. E agora o Brasil e Brasília querem se meter em assuntos internos. As redes sociais multiplicam discursos como esse.
Leia mais o artigo de Eliane Brum

A política republicana

Não gosto, nem trato de política. Não há assunto que mais me repugne do que aquilo que se chama habitualmente política. Eu a encaro, como todo o povo a vê, isto é, um ajuntamento de piratas mais ou menos diplomados que exploram a desgraça e a miséria dos humildes.

Nunca quereria tratar de semelhante assunto, mas a minha obrigação de escritor leva-me a dizer alguma coisa a respeito, a fim de que não pareça que há medo em dar, sobre a questão, qualquer opinião.

No Império, apesar de tudo, ela tinha alguma grandeza e beleza. As fórmulas eram mais ou menos respeitadas; os homens tinham elevação moral e mesmo, em alguns, havia desinteresse.

Não é mentira isto, tanto assim, que muitos que passaram pelas maiores posições morreram pobríssimos e a sua descendência só tem de fortuna o nome que recebeu.

O que havia neles, não era a ambição de dinheiro. Era, certamente, a de glória e de nome; e, por isso mesmo, pouco se incomodariam com os proventos da “indústria política”

A República, porém, trazendo tona dos poderes públicos, a bôrra do Brasil, transformou completamente os nossos costumes administrativos e todos os “arrivistas” se fizeram políticos para enriquecer.

Já na Revolução Francesa a coisa foi a mesma. Fouché, que era um pobretão, sem ofício nem benefício, atravessando todas as vicissitudes da Grande Crise, acabou morrendo milionário.

Como ele, muitos outros que não cito aqui para não ser fastidioso.

Até este ponto eu perdoo toda a espécie de revolucionários e derrubadores de regimes; mas o que não acho razoável é que eles queiram modelar todas as almas na forma das suas próprias.


A República no Brasil é o regime da corrupção. Todas as opiniões devem, por esta ou aquela paga, ser estabelecidas pelos poderosos do dia. Ninguém admite que se divirja deles e, para que não haja divergências, há a “verba secreta”, os reservados deste ou daquele Ministério e os empreguinhos que os medíocres não sabem conquistar por si e com independência.

A vida, infelizmente, deve ser uma luta; e quem não sabe lutar, não é homem.

A gente do Brasil, entretanto, pensa que a existência nossa deve ser a submissão aos Acácios e Pachecos, para obter ajudas de custo e sinecuras.

Vem disto a nossa esterilidade mental, a nossa falta de originalidade intelectual, a pobreza da nossa paisagem moral e a desgraça que se nota no geral da nossa população.

Ninguém quer discutir; ninguém quer agitar idéias; ninguém quer dar a emoção íntima que tem da vida e das coisas. Todos querem “comer”.

“Comem” os juristas, “comem” os filósofos, “comem” os médicos, “comem” os advogados, “comem” os poetas, “comem” os romancistas, “comem” os engenheiros, “comem” os jornalistas: o Brasil é uma vasta “comilança”.

Esse aspecto da nossa terra para quem analisa o seu estado atual, com toda a independência de espírito, nasceu-lhe depois da República.

Foi o novo regime que lhe deu tão nojenta feição para os seus homens públicos de todos os matizes.

Parecia que o Império reprimia tanta sordidez nas nossas almas.

Ele tinha a virtude da modéstia e implantou em nós essa mesma virtude; mas, proclamada que foi a República, ali, no Campo de Santana, por três batalhões, o Brasil perdeu a vergonha e os seus filhos ficaram capachos, para sugar os cofres públicos, desta ou daquela forma.

Não se admite mais independência de pensamento ou de espírito. Quando não se consegue, por dinheiro, abafa-se.

É a política da corrupção, quando não é a do arrocho.

Viva a República!
Afonso Henriques de Lima Barreto (1918)

Pensamento do Dia


A bandeira da ética

As campanhas eleitorais estão nas ruas. A bandeira da ética volta a ganhar espaço nos programas dos candidatos, nas entrevistas e nos debates políticos. A ética passa a ser usada como arma contra os adversários. Embora a profusão de citações condene significativos vocábulos ao desgaste, a ética constitui um caso à parte, pois se torna cada vez mais referência importante na decisão do voto, passando a ser também baliza de comportamento no mundo corporativo, tanto na condução dos negócios quanto na atuação profissional e na relação com os consumidores.


A ética foi a poderosa bandeira que mobilizou a reação da sociedade à escalada da corrupção no setor público. São exemplares, como resultado da pressão social, dois avanços: a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010), que busca alijar das eleições candidatos corruptos, e a Lei Anticorrupção (Lei n.º 12.846), que pune empresas e seus dirigentes envolvidos em atos de corrupção.

Tais avanços sinalizam para o reconhecimento da ética como um dos pilares da construção da modernidade, com desenvolvimento sustentável e população beneficiada ao máximo pelo bom uso dos recursos públicos, com planejamento eficiente e gestão correta dos projetos e das políticas públicas.

Apesar dos retrocessos - decorrentes da multiplicidade de recursos propiciados por normas processuais obsoletas que persistem no País -, a nova postura cria condições para o fortalecimento de políticos e servidores públicos dispostos a privilegiar o interesse coletivo em detrimento do interesse pessoal ou da conquista do poder a qualquer preço.

A ética está ligada à cidadania e esta, por sua vez, decorre da boa educação, entendida em seu sentido mais amplo e nobre. O processo de formação cidadã pode - e deve - ter início na família, continuar na escola, invadir a trajetória profissional e prosseguir ao longo da vida.

A semente da cidadania brota da vinculação dos ensinamentos teóricos à pratica, em especial nas fases da vida em que as mentes estão mais abertas à aquisição de valores e princípios, isto é, na infância e na adolescência.

Para depurar largos segmentos da sociedade da inversão de valores ou do desencanto com corretas posturas sociais e individuais é preciso que quem respeita os códigos da ética continue e mesmo intensifique a pressão pelas mudanças de comportamento. A esses se pede que saiam da zona de conforto da omissão ou do simples protesto. Deles - candidatos ou eleitores - se espera uma ação mais assertiva já nas eleições de outubro, uns com a correta decisão de votos e outros com o compromisso de uma atuação pública de fato dedicada ao bem comum.

Vale sempre recordar a postura do Supremo Tribunal Federal (STF) no final de 2012, na Ação Penal 470 (o famoso mensalão), com a condenação da maioria dos denunciados, o que trouxe um alento aos milhões de cidadãos responsáveis que aspiram a viver num país sob o império da lei, e não num reino da impunidade.

Ficou evidenciada a necessidade da reforma modernizante do arcabouço jurídico da Nação. Para isso não basta uma limpeza das estruturas e dos dispositivos obsoletos que retardam os julgamentos, sem prejuízo do amplo direito de defesa. Será necessário também empreender ações que atenuem o ímpeto legiferante, que resulta em muitos projetos que, aprovados, ampliam a já confusa teia de leis, bom número das quais condenado ao lamentável fosso das “leis que não pegam” e, portanto, jamais serão cumpridas. Seja por serem inviáveis, seja por não encontrarem o respaldo da sociedade.

A análise detida e equilibrada da Ação Penal 470 serviu para mandar para a lata do lixo conceitos que, de tão aéticos, contribuem para denegrir a imagem do Brasil no cenário internacional e enfraquecer valores da cidadania, sem os quais não há desenvolvimento sustentável nem construção da paz e igualdade social.

Em artigo anterior publicado na página propus a seguinte reflexão: pode existir desenvolvimento econômico, social e político de uma nação sem obediência aos princípios éticos? Em outras palavras, é possível o desenvolvimento a qualquer custo? Apesar da disseminação da crença em contrário, a História mostra que a resposta é negativa, pois o desenvolvimento é impossível sem que dele participem cidadãos honestos, probos e comprometidos com os princípios éticos e morais, gerando um benefício em efeito cascata, que constitui, se não o único, ao menos o mais promissor caminho para corrigir as graves injustiças e atenuar as perigosas tensões entre as nações que marcam este início de século.

Espero, como milhões de brasileiros, que o histórico desfecho da Ação Penal 470 produza um benéfico efeito cascata contra a corrupção e contribua para sustentar a nova engenharia social, preconizada pelo desembargador Newton de Lucca, ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª. Região (TRF-3), em seu livro Da Ética Geral à Ética Empresarial.

A desideologizada atuação do STF no caso do mensalão resultou num momentoso resgate da confiança da sociedade no Poder Judiciário, outro fundamento do Estado do Direito, e de aperfeiçoamento da democracia. E se espera seja mantida nos julgamentos em curso com profunda repercussão na sustentação do Estado Democrático de Direito.

Eros Grau, ex-ministro do STF e professor aposentado da Faculdade de Direito da USP, em trabalho publicado na Revista do Advogado (Aasp) abordando o comportamento da chamada classe política, afirmou que a política com p minúsculo está aquém da ética; somente a Política com P maiúscula nela se compõe. E conclui: “O voto é a ferramenta do aperfeiçoamento da classe política e de que dispomos nas democracias. Refina tanto as virtudes de quem é votado quanto as virtudes dos eleitores”.

Supremo quer trocar bolsa-moradia por reajuste

Dias Toffoli e Luiz Fux assumirão em 13 de setembro a presidência e a vice-presidência do STF. Antes de tomar posse, decidiram converter uma agenda sindical num processo de corrosão da futura gestão. Sugeriram a Michel Temer trocar o “direito” dos juízes a um auxílio-moradia de R$ 4.377,73 por um reajuste salarial de 16,38%. O aumento elevará o contracheque dos ministros do Supremo, teto salarial do funcionalismo, de R$ 33,7 mil para R$ 39,3 mil.

A proposta de Toffoli e Fux carrega um vício de origem. O “direito” que os ministros oferecem como compensação para o reajuste é, na verdade, um privilégio imoral. A lei da magistratura anota que, além dos vencimentos, juízes “poderão” receber vantagens como o auxílio-moradia (quando forem transferidos para outras cidades, por exemplo). A coisa virou tunga em 2014, quando liminar concedida por Fux estendeu o mimo a todos os magistrados e procuradores.

Há um problema adicional. O reajuste pretendido pelos ministros do Supremo aumentará automaticamente a folha de todo o Judiciário federal e estadual. Eleverá também os vencimentos dos servidores que já recebem acima do teto e amargam mensalmente um abate-teto, que reduz o valor dos contracheques. Há, de resto, várias corporações de tocaia. Congressistas, por exemplo, tramam um autoreajuste.

Estima-se que os efeitos do aumento do STF custarão ao Tesouro algo entre R$ 4 bilhões e R$ 5 bilhões por ano. Não há verba disponível no Tesouro, às voltas com um déficit de R$ 139 bilhões para 2019. Levantamento feito pela consultoria do Senado demonstra que o eventual extermínio do privilégio do bolsa-moradia seria insuficiente para compensar o estrago provocado pelo reajuste do Judiciário.

A conta do auxílio-moradia de juízes e procuradores, informam os consultores do Senado, somou R$ 96,5 milhões entre janeiro de 2010 e setembro de 2014, quando Fux expediu a liminar que estendeu o priivilégio a todos os doutores. De outubro de 2014 até novembro de 2017, o espeto saltou para R$ 1,3 bilhão.

A incompatibilidade entre as cifras não deve impedir que Temer aceite a “troca” sugerida por Toffoli e Fux. Se confirmado, o aval do presidente azeitará a aprovação no Congresso do reajuste pretendido pelo STF, a vigorar a partir de 2019. Além de agravar o déficit público, o aumento para o Judiciário dificultará a pretensão do governo de impor um congelamento dos reajustes dos servidores. Sem mencionar a ofensa cometida contra os 13 milhões de brasileiros que se encontram no olho da rua.

Santificação do voraz e caótico

A modernidade virou o mundo de cabeça para baixo. Convenceu os coletivos humanos de que o equilíbrio era muito mais assustador do que o caos, e, como a avareza alimenta o crescimento, ela é uma força do bem. A modernidade, de acordo com isso, inspirou os humanos a querer mais e desmantelou as antigas disciplinas que subjugavam a cobiça. 
Os pensadores do capital reiteradamente nos acalmam: "Não se preocupem, tudo vai ficar bem. Contanto que a economia cresça, a mão invisível do mercado cuidará de todo o resto". Assim, o capitalismo santificou o sistema voraz e caótico que cresce aos pulos e saltos sem que ninguém entenda o que está acontecendo e para onde estamos correndo
Yuval Noah Harari, "Homo Deus"

A Previdência virou uma bomba-relógio que ameaça as 8 maiores economias

A cada 24 horas, o déficit do sistema de pensões em oito das maiores economias do mundo aumenta em US$ 28 bilhões (R$ 115 bilhões) - uma bomba-relógio que vai explodir em 2050, quando a cifra total chegar a US$ 400 trilhões, o equivalente a cinco vezes o tamanho da economia global, de acordo com um estudo do Fórum Econômico Mundial.

A análise incluiu Estados Unidos, Reino Unido, Japão, Canadá, Austrália, China, Índia e Holanda e destaca que não é preciso esperar três décadas para ver como o financiamento das pensões pode desmoronar.

No Brasil, o debate em torno de uma reforma da Previdência gera polêmica na corrida eleitoral, inclusive sobre qual é tamanho do rombo do sistema de pensões - alvo de disputa entre diferentes correntes políticas. No fim do ano passado, o governo de Michel Temer chegou a elaborar um projeto de reforma no INSS, mas foi derrotado no Congresso.

Em âmbito global, Yik Han, chefe do departamento de investidores institucionais do WEF, disse à BBC que os efeitos dessa crise estão evidentes hoje e que o país mais afetado é os Estados Unidos, onde "o número de pessoas (financeiramente) falidas depois dos 65 anos está atingindo níveis sem precedentes".

Entre 1991 e 2006, o problema triplicou, afetando 3,6 pessoas a cada mil habitantes, explicou o especialista.


O Japão tem tentado estratégias para se adaptar a essa realidade, por exemplo, através da expansão do mercado que oferece serviços para a terceira idade, robôs que prestam assistência a idosos e academias de ginástica voltadas a essa parcela da população.

No entanto, diz Yik, se as medidas não forem tomadas a tempo, "o pior cenário seria uma pirâmide invertida, com um grande número de pessoas idosas vivendo em situação de falência ou pobreza e sendo mantidas por uma população jovem cada vez menor".

Pesquisadores destacam que governos têm de reformar os sistemas de aposentadorias e pensões para que países se adaptem a sociedades em que será cada vez mais comum que pessoas vivam até os 100 anos.

Na verdade, muito se fala sobre isso, mas a pergunta é sempre a mesma: quem será o responsável por aumentar a poupança para os idosos? E a resposta é geralmente que o dinheiro deve sair de três partes: do trabalhador, do empregador e do Estado.

De quanto deve ser a contribuição de cada um deles? É aí que o debate se torna, às vezes, irreconciliável.

O estudo do WEF propõe medidas para as principais economias do mundo, focando principalmente em poupanças individuais.

Uma delas seria aumentar a idade de aposentadoria de acordo com as expectativas de vida. Por exemplo, em países como Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e Japão, isso deveria ocorrer pelo menos aos 70 anos nas próximas décadas.

Outras propostas se referem a tornar a poupança individual automática - ou seja, fazer com que parte do salário seja automaticamente depositada numa conta bancária. No Reino Unido, 8% da remuneração será descontado desta forma a partir de 2019.

No entanto, outros pesquisadores argumentam que, apesar da escassez de recursos perante o envelhecimento da população, mecanismos de poupança solidária são necessários para apoiar as famílias vulneráveis, ​​que não têm possibilidade de poupar e precisam de assistência social.

Esta postura contraria a ideia de que o caminho mais viável para o sistema de pensões é que as pessoas trabalhem mais anos e economizem mais dinheiro, algo que só pode dar resultados nos países com níveis mais altos de renda.

Na América Latina, por outro lado, há grandes setores da população com trabalhos informais ou autônomos que dificultam a formação de uma poupança futura para a aposentadoria.

"O Chile liderou o caminho na América Latina em termos de enfrentar a situação das aposentadorias por meio de várias reformas", diz Han Yik. "Agora eles estão vendo como implementar mais reformas neste ano, focadas em aumentar as contribuições."

A questão tem se destacado em debates recentes no país sul-americano, e inclusive, motivado protestos massivos nas ruas em que as pessoas exigem pensões "mais dignas".

Sob o sistema chileno, os trabalhadores poupam em contas individuais administradas por empresas privadas. Essas empresas investem esses recursos nos mercados internacionais para tentar obter maior rentabilidade.

A contribuição de cada empregado é obrigatória e gira em torno de 10% de seu salário. Nos últimos anos, os governos têm feito propostas para aumentar esse nível, acrescentando a contribuição dos empregadores e do Estado, de acordo com cada caso.

Existe ainda um "Pilar Solidário" no Chile, que é um fundo público que complementa as pensões mínimas, para ajudar as famílias mais pobres.

Mas, para a maior parte da população, o sistema está construído basicamente em torno da contribuição individual. Até agora, não se sabe quanto e como a contribuição aumentará no futuro, como o Pilar Solidário vai mudar e qual será a nova idade de aposentadoria.

Enquanto países como Chile, El Salvador, Bolívia e República Dominicana estão procurando formas de lidar com o déficit, diz Yik, há outros que enfrentam uma crise mais profunda.

É o caso de Brasil, Argentina ou Venezuela, países que têm "problemas endêmicos de sustentabilidade", acrescenta o pesquisador.

Outros estudos destacam que mais da metade dos idosos na América Latina não recebem pensão, e os trabalhadores se veem forçados a permanecerem ativos no mercado de trabalho, segundo dados da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Seguindo a tendência atual, é cada vez mais provável que muitos dos bebês nascidos neste ano vivam até 2118. Parece distante, mas as opções que estão agora na mesa provavelmente vão determinar como será a velhice deles.