A angústia de não pertencer rugia dentro da maioria das pessoas que entrevistei em Roraima, em diferentes momentos. Mas isso jamais era admitido. Ao contrário. Como costuma acontecer neste tipo de fenômeno, ela se expressava como uma identidade feroz, a de ser o único cidadão legítimo, o único com o direito de estar ali, o único que trabalha e quer progredir. Isso se manifestava em três comportamentos clássicos: a hostilidade contra estrangeiros de outra língua, especialmente americanos, a desconfiança com relação a brasileiros não migrantes, o desejo de apagar as populações nativas, ainda que pela assimilação ou pela supressão de direitos.
Anos atrás eu estava num bar em Boa Vista, à beira do Rio Branco, quando os clientes começaram a se levantar nas outras mesas e apontar o dedo para cima. A princípio, eu e o fotógrafo não entendemos e nos alarmamos que algo grave pudesse estar acontecendo. Até que alguém gritou, visivelmente alarmado, com os olhos postos no céu noturno: “Lá! Os americanos espionando a Amazônia!”. Tinham visto o que acreditavam ser um satélite e se sentiram ameaçados por essa espécie de invasão gringa e alienígena, como uma versão da “Guerra dos Mundos”, de H. G. Wells.
Com a disseminação da internet, habitantes de toda a região amazônica se tornaram ao mesmo tempo alvo e propagadores daqueles SPAMs com variações da seguinte frase: “Os gringos querem tomar a Amazônia do Brasil!”. Como se a Amazônia não estivesse tomada desde a ditadura civil-militar (1964-85) por empreendimentos transnacionais, em geral em conluio com governos e elites locais, a maioria deles destruidores do meio ambiente. E mesmo muito antes da ditadura: como exemplo, basta lembrar de Fordlândia, o desvario de Henry Ford a partir do final dos anos 20 do século passado, ao criar uma cidade tipicamente americana no coração da floresta para a extração da borracha.
Hoje, a quantidade de chineses circulando pela Amazônia quase certamente é muito maior do que a de americanos. Mas há também noruegueses, como os da Hydro Alunorte, que contaminou os rios e os igarapés de Barcarena, no Pará, e canadenses, como os da mineradora Belo Sun. Se o projeto de implantar a maior mina de ouro a céu aberto for adiante, a sobrevivência dos povos, do rio e da floresta na Volta Grande do Xingu, já altamente impactada pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, pode não ser mais possível.
Curiosamente, no imaginário local das Amazônias urbanas, para parte da população esses gringos são uma esperança de melhoria imediata, de emprego e de “progresso”, mesmo que saibam que temporários. Mas para um migrante a vida é sempre temporária, o chão é que não pode mais ser. A palavra “empresa” ou “empreendimento” desestrangeiriza o que vem de fora, é portadora de uma familiaridade universal, esta uma conquista subjetiva do capitalismo com efeitos bem objetivos.
Os perigosos são os outros, estes que espionam nos céus ou que perambulam pelo território fotografando a floresta ou recolhendo amostras ou lutando pelos direitos dos povos indígenas. Ou apenas fazendo perguntas. Quando se contrapõem a um empreendimento poluidor e destruidor do meio ambiente, ou se colocam em defesa dos interesses das populações nativas, as ONGs (organizações não governamentais) são tachadas de “gringas” mesmo quando brasileiras. Lembro de um fotógrafo francês que foi amarrado numa estaca de pau ao chegar numa cidade do interior de Roraima. Suspeito pelo motivo de ser um estranho com uma câmera, ele de imediato se tornou inimigo. Não era visto como alguém da mesma espécie, poderia ter uma cabeça de polvo e olhos no lugar do coração.
O sentimento de terem sido “abandonados pelo Brasil” é uma marca constituinte da identidade do que chamam “roraimense”Em Roraima ouvi muitas vezes a pergunta: “Você veio do Brasil?”. O Brasil era toda a parte debaixo do mapa, em especial o centro-sul. E marcava a diferença entre os que falavam a mesma língua, mas não pertenciam ao mesmo território simbólico. A maior parte de Roraima contraria a música de Chico Buarque, sobre “não existir pecado do lado de baixo do Equador”. Uma grande parcela do estado, incluindo a capital, Boa Vista, está no hemisfério norte. Roraima era “território” do Brasil e só virou estado da federação com a Constituição de 1988. Essa marca é ainda muito presente. Embora a maior parte da população viva direta ou indiretamente ligada ao serviço público, o sentimento de ter sido abandonada pelo governo federal e de ter menos tudo, inclusive reconhecimento, é uma marca quase constituinte da identidade do que chamam “roraimense”.
É fácil compreender como a disputa atual —entre parte de Roraima, liderada pela governadora Suely Campos (PP), e Brasília e o Brasil, representados pelo governo central e o Supremo Tribunal Federal (STF)— repercute e amplia este sentimento de isolamento ao impedir o poder local de fechar a fronteira para os venezuelanos. Membro de um clã político que espolia o Estado há décadas, Suely Campos é mulher de Neudo Campos, ex-governador de Roraima. Ele é um freguês assíduo de processos criminais, envolvido, entre outros casos, no “Escândalo dos Gafanhotos”, assim batizado porque funcionários fantasmas estavam “comendo” a folha de pagamento do Estado para encher o bolso de políticos e apadrinhados dos Campos. A atual governadora, que é candidata à reeleição, encontra na manipulação das paixões e dos medos uma oportunidade numa eleição difícil.
Mais uma vez o Brasil e Brasília não compreendem Roraima e os roraimenses. É assim que vários moradores de Roraima se manifestam nas redes sociais, ofendidos e magoados por serem considerados sem coração e xenófobos por agredirem venezuelanos e reivindicarem o fechamento das fronteiras. O Brasil não sabe nada de Roraima, é o que dizem, com muito ressentimento e certa razão. Eles —ou seus pais e avós— escalaram o mapa e lutaram para estar lá. Ninguém ajudou, apesar de paradoxalmente Roraima depender de dinheiro público. E agora o Brasil e Brasília querem se meter em assuntos internos. As redes sociais multiplicam discursos como esse.
Leia mais o artigo de Eliane Brum
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