O mal da província não está só nessas pequenas vaidades inofensivas, o seu pior mal provém de um exagerado culto ao dinheiro. Quem não tem dinheiro nada vale, nada pode fazer, nada pode aspirar com independência. Não há metabolia de classes. A inteligência pobre que se quer fazer, tem que se curvar aos ricos e cifrar a sua atividade mental em produções incolores, sem significação, sem sinceridade, para não ofender os seus protetores. A brutalidade do dinheiro asfixia e embrutece as inteligências.
Lima Barreto, "Os Bruzundangas"
segunda-feira, 22 de julho de 2024
Um dia na vida de um vagabundo
Em primeiro lugar, o que é um vagabundo?
O vagabundo é uma espécie nativa inglesa. Estas são as características que o distinguem: ele não tem dinheiro, veste-se com andrajos, caminha cerca de vinte quilômetros por dia e nunca dorme duas noites seguidas no mesmo lugar.
Em suma, ele é um andarilho que vive de caridade, perambula dia após dia durante anos e atravessa a Inglaterra de ponta a ponta muitas vezes em suas andanças.
Ele não tem emprego, lar ou família, nada de seu no mundo, exceto os farrapos que cobrem seu pobre corpo; vive às custas da comunidade.
Ninguém sabe de quantos indivíduos é composta a população de vagabundos. Trinta mil? Cinquenta mil? Talvez cem mil na Inglaterra e no País de Gales, quando o desemprego é particularmente alto.
O vagabundo não perambula para se divertir, ou porque herdou os instintos nômades de seus ancestrais; antes de mais nada, ele tenta não morrer de fome.
Não é difícil ver por quê: o vagabundo está desempregado em consequência da situação da economia inglesa. Assim, para existir, ele precisa apelar à caridade pública ou privada. Para ajudá-lo, as autoridades criaram asiles (albergues) onde os destituídos podem encontrar alimento e abrigo.
Esses lugares estão a vinte quilômetros uns dos outros e ninguém pode ficar em um deles mais que uma vez por mês. Daí as peregrinações sem fim dos vagabundos, que, se quiserem comer e dormir embaixo de um teto, precisam buscar um novo lugar de repouso todas as noites.
Essa é a explicação para a existência dos vagabundos. Agora, vejamos que tipo de vida eles levam. Será suficiente examinar um dia apenas, pois os dias são sempre iguais para esses desafortunados habitantes de um dos países mais ricos do mundo.
Tomemos um deles no momento em que sai do albergue, por volta das dez da manhã.
Ele está a cerca de vinte quilômetros do próximo albergue. Levará provavelmente cinco horas para caminhar essa distância e chegará ao seu destino por volta das três da tarde.
Ele não descansará muito no caminho, porque a polícia, que vê com suspeição os vagabundos, tratará de mandá-lo logo embora de qualquer cidadezinha ou aldeia onde possa tentar parar. É por isso que nosso homem não se demorará no caminho.
Como dissemos, são cerca de três horas da tarde quando ele chega ao albergue. Mas o albergue só abre às seis. Três horas desgastantes para esperar em companhia dos outros vagabundos que já estão esperando. O bando de seres humanos, extenuados, barbas por fazer, sujos e maltrapilhos, cresce a cada minuto. Logo há centenas de homens desempregados que representam quase todas as profissões.
Mineiros e fiandeiros de algodão, vítimas do desemprego que grassa no norte da Inglaterra, compõem a maioria, mas todas as profissões estão representadas, especializadas ou não.
A idade deles?
Dos dezesseis aos setenta.
Sexo? Há cerca de duas mulheres para cada cinquenta homens.
Aqui e ali, um imbecil matraqueia palavras sem sentido. Alguns vagabundos estão tão fracos e decrépitos que nos perguntamos como podem caminhar vinte quilômetros.
As roupas impressionam pelo grotesco, esfarrapadas e de imundície repugnante.
Os rostos nos fazem pensar no focinho de um animal selvagem, talvez não perigoso, mas que se tornou ao mesmo tempo selvagem e assustadiço, por falta de descanso e cuidado.
Lá eles esperam, deitados na relva ou agachados na terra. Os mais corajosos rondam o açougue ou a padaria, na esperança de catar algum resto de comida. Mas isso é perigoso, porque mendigar é proibido por lei na Inglaterra; então, na maior parte do tempo eles se contentam em ficar ociosos, trocando palavras vagas numa gíria estranha, a língua especial dos vagabundos, cheia de palavras esquisitas e pitorescas e expressões que não se encontram em nenhum dicionário.
Eles vieram de todos os cantos da Inglaterra e do País de Gales e contam uns aos outros suas aventuras, discutindo sem muita esperança sobre a probabilidade de encontrar trabalho no caminho.
Muitos já se encontraram antes em algum albergue do outro extremo do país, pois seus passos não param de se cruzar nas perambulações sem fim.
Esses albergues são hospedarias deploráveis e sórdidas, onde os peregrinos ingleses miseráveis se reúnem por algumas horas antes de se espalhar novamente em todas as direções.
Todos os vagabundos fumam. Como é proibido fumar dentro do albergue, eles aproveitam ao máximo as horas de espera. Seu tabaco consiste principalmente em baganas de cigarro que catam nas ruas. Eles as enrolam em papel ou enfiam em cachimbos velhos.
Quando um vagabundo consegue algum dinheiro, ganho num trabalho ou por esmola, seu primeiro pensamento é comprar fumo, mas na maior parte do tempo ele tem de se satisfazer com baganas apanhadas da calçada ou da rua. O albergue lhe dá apenas comida: para o resto, roupas, tabaco etc., ele tem de se virar.
Mas está quase na hora de o portão do albergue se abrir. Os vagabundos se levantaram e fazem fila junto ao muro do enorme prédio, um desprezível cubo amarelo de tijolos, construído em algum subúrbio distante e que pode ser confundido com uma prisão.
Mais alguns minutos e os pesados portões se abrem e o bando de seres humanos entra.
A semelhança entre um desses albergues e uma prisão é ainda mais notável depois que se passa pelos portões. No meio de um pátio vazio, cercado por muros altos de tijolos, encontra-se o prédio principal que abriga celas de paredes nuas, um banheiro, as dependências administrativas e uma sala minúscula mobiliada com bancos de madeira simples que serve de refeitório. Tudo é tão feio e sinistro quanto se possa imaginar.
A atmosfera de prisão está em todo canto. Funcionários uniformizados intimidam os vagabundos e os empurram, sem esquecer de lembrar-lhes que, ao entrar no albergue, eles abriram mão de todos os seus direitos e de sua liberdade.
O nome e a profissão do vagabundo são escritos num livro de registros. Depois, ele é obrigado a tomar um banho e suas roupas e pertences pessoais são levados embora. Então, dão-lhe um camisão de algodão ordinário para passar a noite.
Se por acaso ele tiver algum dinheiro, será confiscado, mas, se ele admitir que tem mais de dois francos [quatro pence], não será aceito no albergue e terá de encontrar uma cama em outro lugar.
Em consequência, os vagabundos que têm mais de quatro pence — não há muitos deles — se esforçaram para esconder o dinheiro em suas botas sem que fossem vistos, pois essa fraude poderia ser punida com prisão.
Após o banho, o vagabundo, cujas roupas lhe foram tomadas, recebe sua ceia: meia libra de pão com um pouco de margarina e meio litro de chá.
O pão feito especialmente para os vagabundos é terrível. É cinzento, sempre dormido e tem um gosto desagradável que faz a gente pensar que a farinha de que é feito vem de grãos estragados.
O chá não poderia ser pior, mas os vagabundos o tomam de bom grado, pois os aquece e conforta depois da exaustão do dia.
Essa refeição insossa é engolida em cinco minutos. Depois disso, os vagabundos recebem ordens para entrar nas celas onde passarão a noite.
Essas celas, verdadeiras celas de prisão de tijolos ou pedras, têm cerca de três e meio por dois metros. Não há iluminação artificial — a única fonte de luz é uma janela estreita e gradeada no alto da parede e um olho mágico na porta que permite que os guardas fiquem de olho nos internos.
Às vezes, as celas têm uma cama, porém o mais comum é que os vagabundos tenham de dormir no chão, com apenas três mantas para se proteger.
Não costuma haver travesseiros, e por esse motivo os desafortunados têm permissão para ficar com seus casacos, os quais enrolam e põem sob a cabeça.
Em geral, o quarto é terrivelmente frio e as mantas, devido ao tempo de uso, são tão finas que não oferecem nenhuma proteção contra o rigor da temperatura.
Assim que os vagabundos entram nas celas, as portas são firmemente trancadas por fora: só se abrirão às sete horas da manhã seguinte.
Em geral, ficam dois internos em cada cela. Murados em sua pequena prisão por doze horas desgastantes sem nada para se proteger do frio exceto um camisão de algodão e três mantas finas, os pobres miseráveis sofrem cruelmente com o frio e a falta do conforto mais elementar.
Os lugares estão quase sempre infestados de percevejos, e o vagabundo, vítima da praga, com os membros exaustos, passa horas e horas se virando e revirando, numa vã espera pelo sono.
Se consegue adormecer por alguns minutos, o desconforto de dormir sobre o chão duro logo o desperta de novo.
Os vagabundos antigos e espertos, que estão nessa vida há quinze ou vinte anos e, em consequência, ficaram mais filosóficos, passam as noites conversando. No dia seguinte, descansarão por uma ou duas horas num campo, sob alguma cerca viva que julguem mais acolhedora do que o albergue. Mas os mais jovens, ainda não endurecidos pela familiaridade com a rotina, lutam e gemem na escuridão, esperando com impaciência que a manhã lhes traga alívio.
E no entanto, quando o sol afinal brilha dentro de sua prisão, eles consideram com desânimo e desespero a perspectiva de outro dia exatamente igual ao anterior.
Por fim, as celas são destrancadas. Está na hora da visita do médico: com efeito, os vagabundos não serão libertados enquanto essa formalidade não for cumprida.
O médico costuma se atrasar, e os vagabundos têm de esperar por sua inspeção, em fila e seminus num corredor. Nesse momento, é possível ter uma ideia da condição física deles.
Que corpos e que rostos!
Muitos têm malformações congênitas. Vários sofrem de hérnias e usam cintas. Quase todos têm pés deformados e cobertos de feridas em consequência das longas caminhadas com botas inadequadas. Os velhos não passam de pele e ossos. Todos têm músculos caídos e a aparência miserável de homens que não têm uma refeição decente do início ao fim do ano.
Seus traços emaciados, rugas prematuras, barbas por fazer, tudo neles fala de alimentação insuficiente e carência de sono.
Mas eis que chega o médico. Sua inspeção é tão rápida quanto superficial. Afinal, ela se destina apenas a detectar se algum dos vagabundos mostra sintomas de varíola.
O médico olha rapidamente para cada um deles, de cima a baixo, frente e costas.
Ora, a maioria deles sofre de uma ou outra doença. Alguns, imbecis quase completos, mal conseguem cuidar de si mesmos. No entanto, serão soltos desde que estejam livres das temíveis marcas da varíola.
As autoridades não se importam se estão bem ou mal de saúde, desde que não sofram de uma moléstia infecciosa.
Depois da inspeção médica, os vagabundos se vestem de novo. Então, na luz fria do dia, é possível ter realmente uma boa visão das roupas que os pobres-diabos usam para se proteger dos estragos causados pelo clima inglês.
Esses artigos disparatados de vestuário — a maioria esmolada de porta em porta — não servem nem para a lata do lixo. Grotescos, mal-ajambrados, longos demais, curtos demais, grandes demais ou pequenos demais, a esquisitice deles nos faria rir em qualquer outra circunstância. Aqui, sentimos uma enorme piedade ao vermos essas roupas.
Elas foram consertadas até o limite do possível, com todos os tipos de remendos. Cordões substituem botões. As roupas de baixo não passam de farrapos imundos, os buracos tapados pela sujeira.
Alguns deles não têm roupa de baixo. Muitos não têm sequer meias; depois de enrolar os pés em trapos, enfiam-nos em botas cujo couro, endurecido pelo sol e pela chuva, perdeu toda a elasticidade.
É uma visão terrível observar os vagabundos se aprontando para sair.
Depois de vestidos, eles recebem o desjejum, idêntico à ceia da noite anterior.
Então, são perfilados como soldados no pátio do albergue, onde os guardas os põem a trabalhar.
Alguns lavarão o chão, outros cortarão lenha, quebrarão carvão, farão uma variedade de tarefas até as dez horas, quando é dado o sinal para partir.
Eles recebem de volta os pertences pessoais confiscados na noite anterior. A isso acrescentam meia libra de pão e um pedaço de queijo para a refeição do meio-dia, ou às vezes, mas com menos frequência, um tíquete que pode ser trocado em cafés específicos do caminho por pão e chá, no valor de três francos [seis pence].
Um pouco depois das dez horas, os portões do albergue se abrem para deixar sair um bando de destituídos miseráveis e imundos que se espalham pelo campo.
Cada um deles parte para um novo albergue, onde será tratado exatamente da mesma maneira.
E durante meses, talvez décadas, o vagabundo não conhecerá outra existência.
Em conclusão, devemos observar que a comida para cada vagabundo consiste, no total, em cerca de 750 gramas [duas libras] de pão com um pouco de margarina e queijo, e um litro de chá; isto é, sem dúvida, uma dieta insuficiente para um homem que deve percorrer vinte quilômetros por dia a pé.
Para suplementar sua dieta, obter roupas, fumo e as mil outras coisas de que possa precisar, o vagabundo precisa mendigar quando não consegue achar trabalho (e ele dificilmente o encontra) — mendigar ou roubar.
Ora, mendigar é proibido por lei na Inglaterra e muitos vagabundos conhecem as prisões de Sua Majestade por causa disso.
É um círculo vicioso: se ele não mendiga, morre de fome; se mendiga, infringe a lei.
A vida desses vagabundos é degradante e desmoralizadora. Em muito pouco tempo pode transformar um homem ativo em eterno desempregado e parasita.
Além disso, é extremamente monótona. O único prazer deles é obter alguns xelins inesperados; isso lhes dá a chance de comer à farta por uma vez ou tomar uma bebedeira.
O vagabundo está isolado das mulheres. Poucas mulheres entram nessa vida. Para suas irmãs mais afortunadas, o vagabundo é objeto de desprezo. Assim, a homossexualidade não é um vício desconhecido para esses eternos andarilhos.
Por fim, o vagabundo, que não cometeu nenhum crime e que, no fim das contas, não passa de uma vítima do desemprego, está condenado a levar uma vida mais miserável que a do pior criminoso. Ele é um escravo com uma aparência de liberdade que é pior do que a mais cruel escravidão.
Ao refletirmos sobre seu destino miserável, que é compartilhado por milhares de homens na Inglaterra, a conclusão óbvia é que a sociedade o trataria melhor se o trancasse pelo resto de seus dias na prisão, onde ao menos ele desfrutaria de um relativo conforto.
George Orwell, "Como morrem os pobres e outros ensaios"
O vagabundo é uma espécie nativa inglesa. Estas são as características que o distinguem: ele não tem dinheiro, veste-se com andrajos, caminha cerca de vinte quilômetros por dia e nunca dorme duas noites seguidas no mesmo lugar.
Em suma, ele é um andarilho que vive de caridade, perambula dia após dia durante anos e atravessa a Inglaterra de ponta a ponta muitas vezes em suas andanças.
Ele não tem emprego, lar ou família, nada de seu no mundo, exceto os farrapos que cobrem seu pobre corpo; vive às custas da comunidade.
Ninguém sabe de quantos indivíduos é composta a população de vagabundos. Trinta mil? Cinquenta mil? Talvez cem mil na Inglaterra e no País de Gales, quando o desemprego é particularmente alto.
O vagabundo não perambula para se divertir, ou porque herdou os instintos nômades de seus ancestrais; antes de mais nada, ele tenta não morrer de fome.
Não é difícil ver por quê: o vagabundo está desempregado em consequência da situação da economia inglesa. Assim, para existir, ele precisa apelar à caridade pública ou privada. Para ajudá-lo, as autoridades criaram asiles (albergues) onde os destituídos podem encontrar alimento e abrigo.
Esses lugares estão a vinte quilômetros uns dos outros e ninguém pode ficar em um deles mais que uma vez por mês. Daí as peregrinações sem fim dos vagabundos, que, se quiserem comer e dormir embaixo de um teto, precisam buscar um novo lugar de repouso todas as noites.
Essa é a explicação para a existência dos vagabundos. Agora, vejamos que tipo de vida eles levam. Será suficiente examinar um dia apenas, pois os dias são sempre iguais para esses desafortunados habitantes de um dos países mais ricos do mundo.
Tomemos um deles no momento em que sai do albergue, por volta das dez da manhã.
Ele está a cerca de vinte quilômetros do próximo albergue. Levará provavelmente cinco horas para caminhar essa distância e chegará ao seu destino por volta das três da tarde.
Ele não descansará muito no caminho, porque a polícia, que vê com suspeição os vagabundos, tratará de mandá-lo logo embora de qualquer cidadezinha ou aldeia onde possa tentar parar. É por isso que nosso homem não se demorará no caminho.
Como dissemos, são cerca de três horas da tarde quando ele chega ao albergue. Mas o albergue só abre às seis. Três horas desgastantes para esperar em companhia dos outros vagabundos que já estão esperando. O bando de seres humanos, extenuados, barbas por fazer, sujos e maltrapilhos, cresce a cada minuto. Logo há centenas de homens desempregados que representam quase todas as profissões.
Mineiros e fiandeiros de algodão, vítimas do desemprego que grassa no norte da Inglaterra, compõem a maioria, mas todas as profissões estão representadas, especializadas ou não.
A idade deles?
Dos dezesseis aos setenta.
Sexo? Há cerca de duas mulheres para cada cinquenta homens.
Aqui e ali, um imbecil matraqueia palavras sem sentido. Alguns vagabundos estão tão fracos e decrépitos que nos perguntamos como podem caminhar vinte quilômetros.
As roupas impressionam pelo grotesco, esfarrapadas e de imundície repugnante.
Os rostos nos fazem pensar no focinho de um animal selvagem, talvez não perigoso, mas que se tornou ao mesmo tempo selvagem e assustadiço, por falta de descanso e cuidado.
Lá eles esperam, deitados na relva ou agachados na terra. Os mais corajosos rondam o açougue ou a padaria, na esperança de catar algum resto de comida. Mas isso é perigoso, porque mendigar é proibido por lei na Inglaterra; então, na maior parte do tempo eles se contentam em ficar ociosos, trocando palavras vagas numa gíria estranha, a língua especial dos vagabundos, cheia de palavras esquisitas e pitorescas e expressões que não se encontram em nenhum dicionário.
Eles vieram de todos os cantos da Inglaterra e do País de Gales e contam uns aos outros suas aventuras, discutindo sem muita esperança sobre a probabilidade de encontrar trabalho no caminho.
Muitos já se encontraram antes em algum albergue do outro extremo do país, pois seus passos não param de se cruzar nas perambulações sem fim.
Esses albergues são hospedarias deploráveis e sórdidas, onde os peregrinos ingleses miseráveis se reúnem por algumas horas antes de se espalhar novamente em todas as direções.
Todos os vagabundos fumam. Como é proibido fumar dentro do albergue, eles aproveitam ao máximo as horas de espera. Seu tabaco consiste principalmente em baganas de cigarro que catam nas ruas. Eles as enrolam em papel ou enfiam em cachimbos velhos.
Quando um vagabundo consegue algum dinheiro, ganho num trabalho ou por esmola, seu primeiro pensamento é comprar fumo, mas na maior parte do tempo ele tem de se satisfazer com baganas apanhadas da calçada ou da rua. O albergue lhe dá apenas comida: para o resto, roupas, tabaco etc., ele tem de se virar.
Mas está quase na hora de o portão do albergue se abrir. Os vagabundos se levantaram e fazem fila junto ao muro do enorme prédio, um desprezível cubo amarelo de tijolos, construído em algum subúrbio distante e que pode ser confundido com uma prisão.
Mais alguns minutos e os pesados portões se abrem e o bando de seres humanos entra.
A semelhança entre um desses albergues e uma prisão é ainda mais notável depois que se passa pelos portões. No meio de um pátio vazio, cercado por muros altos de tijolos, encontra-se o prédio principal que abriga celas de paredes nuas, um banheiro, as dependências administrativas e uma sala minúscula mobiliada com bancos de madeira simples que serve de refeitório. Tudo é tão feio e sinistro quanto se possa imaginar.
A atmosfera de prisão está em todo canto. Funcionários uniformizados intimidam os vagabundos e os empurram, sem esquecer de lembrar-lhes que, ao entrar no albergue, eles abriram mão de todos os seus direitos e de sua liberdade.
O nome e a profissão do vagabundo são escritos num livro de registros. Depois, ele é obrigado a tomar um banho e suas roupas e pertences pessoais são levados embora. Então, dão-lhe um camisão de algodão ordinário para passar a noite.
Se por acaso ele tiver algum dinheiro, será confiscado, mas, se ele admitir que tem mais de dois francos [quatro pence], não será aceito no albergue e terá de encontrar uma cama em outro lugar.
Em consequência, os vagabundos que têm mais de quatro pence — não há muitos deles — se esforçaram para esconder o dinheiro em suas botas sem que fossem vistos, pois essa fraude poderia ser punida com prisão.
Após o banho, o vagabundo, cujas roupas lhe foram tomadas, recebe sua ceia: meia libra de pão com um pouco de margarina e meio litro de chá.
O pão feito especialmente para os vagabundos é terrível. É cinzento, sempre dormido e tem um gosto desagradável que faz a gente pensar que a farinha de que é feito vem de grãos estragados.
O chá não poderia ser pior, mas os vagabundos o tomam de bom grado, pois os aquece e conforta depois da exaustão do dia.
Essa refeição insossa é engolida em cinco minutos. Depois disso, os vagabundos recebem ordens para entrar nas celas onde passarão a noite.
Essas celas, verdadeiras celas de prisão de tijolos ou pedras, têm cerca de três e meio por dois metros. Não há iluminação artificial — a única fonte de luz é uma janela estreita e gradeada no alto da parede e um olho mágico na porta que permite que os guardas fiquem de olho nos internos.
Às vezes, as celas têm uma cama, porém o mais comum é que os vagabundos tenham de dormir no chão, com apenas três mantas para se proteger.
Não costuma haver travesseiros, e por esse motivo os desafortunados têm permissão para ficar com seus casacos, os quais enrolam e põem sob a cabeça.
Em geral, o quarto é terrivelmente frio e as mantas, devido ao tempo de uso, são tão finas que não oferecem nenhuma proteção contra o rigor da temperatura.
Assim que os vagabundos entram nas celas, as portas são firmemente trancadas por fora: só se abrirão às sete horas da manhã seguinte.
Em geral, ficam dois internos em cada cela. Murados em sua pequena prisão por doze horas desgastantes sem nada para se proteger do frio exceto um camisão de algodão e três mantas finas, os pobres miseráveis sofrem cruelmente com o frio e a falta do conforto mais elementar.
Os lugares estão quase sempre infestados de percevejos, e o vagabundo, vítima da praga, com os membros exaustos, passa horas e horas se virando e revirando, numa vã espera pelo sono.
Se consegue adormecer por alguns minutos, o desconforto de dormir sobre o chão duro logo o desperta de novo.
Os vagabundos antigos e espertos, que estão nessa vida há quinze ou vinte anos e, em consequência, ficaram mais filosóficos, passam as noites conversando. No dia seguinte, descansarão por uma ou duas horas num campo, sob alguma cerca viva que julguem mais acolhedora do que o albergue. Mas os mais jovens, ainda não endurecidos pela familiaridade com a rotina, lutam e gemem na escuridão, esperando com impaciência que a manhã lhes traga alívio.
E no entanto, quando o sol afinal brilha dentro de sua prisão, eles consideram com desânimo e desespero a perspectiva de outro dia exatamente igual ao anterior.
Por fim, as celas são destrancadas. Está na hora da visita do médico: com efeito, os vagabundos não serão libertados enquanto essa formalidade não for cumprida.
O médico costuma se atrasar, e os vagabundos têm de esperar por sua inspeção, em fila e seminus num corredor. Nesse momento, é possível ter uma ideia da condição física deles.
Que corpos e que rostos!
Muitos têm malformações congênitas. Vários sofrem de hérnias e usam cintas. Quase todos têm pés deformados e cobertos de feridas em consequência das longas caminhadas com botas inadequadas. Os velhos não passam de pele e ossos. Todos têm músculos caídos e a aparência miserável de homens que não têm uma refeição decente do início ao fim do ano.
Seus traços emaciados, rugas prematuras, barbas por fazer, tudo neles fala de alimentação insuficiente e carência de sono.
Mas eis que chega o médico. Sua inspeção é tão rápida quanto superficial. Afinal, ela se destina apenas a detectar se algum dos vagabundos mostra sintomas de varíola.
O médico olha rapidamente para cada um deles, de cima a baixo, frente e costas.
Ora, a maioria deles sofre de uma ou outra doença. Alguns, imbecis quase completos, mal conseguem cuidar de si mesmos. No entanto, serão soltos desde que estejam livres das temíveis marcas da varíola.
As autoridades não se importam se estão bem ou mal de saúde, desde que não sofram de uma moléstia infecciosa.
Depois da inspeção médica, os vagabundos se vestem de novo. Então, na luz fria do dia, é possível ter realmente uma boa visão das roupas que os pobres-diabos usam para se proteger dos estragos causados pelo clima inglês.
Esses artigos disparatados de vestuário — a maioria esmolada de porta em porta — não servem nem para a lata do lixo. Grotescos, mal-ajambrados, longos demais, curtos demais, grandes demais ou pequenos demais, a esquisitice deles nos faria rir em qualquer outra circunstância. Aqui, sentimos uma enorme piedade ao vermos essas roupas.
Elas foram consertadas até o limite do possível, com todos os tipos de remendos. Cordões substituem botões. As roupas de baixo não passam de farrapos imundos, os buracos tapados pela sujeira.
Alguns deles não têm roupa de baixo. Muitos não têm sequer meias; depois de enrolar os pés em trapos, enfiam-nos em botas cujo couro, endurecido pelo sol e pela chuva, perdeu toda a elasticidade.
É uma visão terrível observar os vagabundos se aprontando para sair.
Depois de vestidos, eles recebem o desjejum, idêntico à ceia da noite anterior.
Então, são perfilados como soldados no pátio do albergue, onde os guardas os põem a trabalhar.
Alguns lavarão o chão, outros cortarão lenha, quebrarão carvão, farão uma variedade de tarefas até as dez horas, quando é dado o sinal para partir.
Eles recebem de volta os pertences pessoais confiscados na noite anterior. A isso acrescentam meia libra de pão e um pedaço de queijo para a refeição do meio-dia, ou às vezes, mas com menos frequência, um tíquete que pode ser trocado em cafés específicos do caminho por pão e chá, no valor de três francos [seis pence].
Um pouco depois das dez horas, os portões do albergue se abrem para deixar sair um bando de destituídos miseráveis e imundos que se espalham pelo campo.
Cada um deles parte para um novo albergue, onde será tratado exatamente da mesma maneira.
E durante meses, talvez décadas, o vagabundo não conhecerá outra existência.
Em conclusão, devemos observar que a comida para cada vagabundo consiste, no total, em cerca de 750 gramas [duas libras] de pão com um pouco de margarina e queijo, e um litro de chá; isto é, sem dúvida, uma dieta insuficiente para um homem que deve percorrer vinte quilômetros por dia a pé.
Para suplementar sua dieta, obter roupas, fumo e as mil outras coisas de que possa precisar, o vagabundo precisa mendigar quando não consegue achar trabalho (e ele dificilmente o encontra) — mendigar ou roubar.
Ora, mendigar é proibido por lei na Inglaterra e muitos vagabundos conhecem as prisões de Sua Majestade por causa disso.
É um círculo vicioso: se ele não mendiga, morre de fome; se mendiga, infringe a lei.
A vida desses vagabundos é degradante e desmoralizadora. Em muito pouco tempo pode transformar um homem ativo em eterno desempregado e parasita.
Além disso, é extremamente monótona. O único prazer deles é obter alguns xelins inesperados; isso lhes dá a chance de comer à farta por uma vez ou tomar uma bebedeira.
O vagabundo está isolado das mulheres. Poucas mulheres entram nessa vida. Para suas irmãs mais afortunadas, o vagabundo é objeto de desprezo. Assim, a homossexualidade não é um vício desconhecido para esses eternos andarilhos.
Por fim, o vagabundo, que não cometeu nenhum crime e que, no fim das contas, não passa de uma vítima do desemprego, está condenado a levar uma vida mais miserável que a do pior criminoso. Ele é um escravo com uma aparência de liberdade que é pior do que a mais cruel escravidão.
Ao refletirmos sobre seu destino miserável, que é compartilhado por milhares de homens na Inglaterra, a conclusão óbvia é que a sociedade o trataria melhor se o trancasse pelo resto de seus dias na prisão, onde ao menos ele desfrutaria de um relativo conforto.
George Orwell, "Como morrem os pobres e outros ensaios"
Não é preciso normalizar a ultradireita para encarar o fenômeno
Se os franceses tivessem acordado no dia 1º de julho convencidos de que a ultradireita representava uma alternativa normal na política do país, a Reunião Nacional estaria hoje no poder. No segundo turno da disputa, a maior parte daqueles atores decidiu que a turma de Marine Le Pen não deveria governar a França.
O problema da "normalização da ultradireita" começa e termina no desejo do eleitor, mas é também uma questão de debate público e de organização política. Quando a população de um país identifica uma plataforma radical como melhor opção de governo, a escolha está feita. Ela não deixa de ser radical nem passa a ser admitida com menos resistência.
O mundo já mostrou que programas que incluem a redução de controles democráticos ou a violação de direitos humanos são capazes de obter apoio eleitoral majoritário. A necessidade de compreendê-los como fenômenos de massa, sancionados pelo voto, não deveria ser suficiente para que sejam encarados como uma opção qualquer.
A objeção feita na arena pública costuma ser uma tentativa de convencer o eleitor a não abandonar valores morais mínimos ou não aceitar determinadas ideias como um mal menor. Nas elites partidárias e institucionais, a crítica representa um gatilho para ações de coordenação política que, em geral, têm o objetivo de isolar grupos radicais.
O erro grosseiro dos adversários da ultradireita é que a maior parte se recusa a compreendê-la como um fenômeno de massa. Para piorar, ainda revertem contra si aquele esforço de isolamento a partir do momento em que entregam a seus rivais o monopólio de temas como segurança ou imigração.
A normalização oferece à ultradireita a possibilidade de apresentar soluções radicais como itens aceitáveis do cardápio político, avalizados por uma demanda popular. Condenar esses programas, por outro lado, é uma maneira de impor um custo a candidatos que os adotam e, principalmente, dar respaldo às instituições que podem conter seus abusos.
Bruno Boghossian
O problema da "normalização da ultradireita" começa e termina no desejo do eleitor, mas é também uma questão de debate público e de organização política. Quando a população de um país identifica uma plataforma radical como melhor opção de governo, a escolha está feita. Ela não deixa de ser radical nem passa a ser admitida com menos resistência.
O mundo já mostrou que programas que incluem a redução de controles democráticos ou a violação de direitos humanos são capazes de obter apoio eleitoral majoritário. A necessidade de compreendê-los como fenômenos de massa, sancionados pelo voto, não deveria ser suficiente para que sejam encarados como uma opção qualquer.
A objeção feita na arena pública costuma ser uma tentativa de convencer o eleitor a não abandonar valores morais mínimos ou não aceitar determinadas ideias como um mal menor. Nas elites partidárias e institucionais, a crítica representa um gatilho para ações de coordenação política que, em geral, têm o objetivo de isolar grupos radicais.
O erro grosseiro dos adversários da ultradireita é que a maior parte se recusa a compreendê-la como um fenômeno de massa. Para piorar, ainda revertem contra si aquele esforço de isolamento a partir do momento em que entregam a seus rivais o monopólio de temas como segurança ou imigração.
A normalização oferece à ultradireita a possibilidade de apresentar soluções radicais como itens aceitáveis do cardápio político, avalizados por uma demanda popular. Condenar esses programas, por outro lado, é uma maneira de impor um custo a candidatos que os adotam e, principalmente, dar respaldo às instituições que podem conter seus abusos.
Bruno Boghossian
Traços do caos na linha do horizonte
Joe Biden, nos EUA, tem dito e repetido que Donald Trump é um mentiroso contumaz. E o republicano, agora com uma bandagem branca sobre uma orelha, torna-se favorito ao pleito de novembro, graças ao atentado de que foi vítima. Produziu uma foto icônica, punho erguido, sangue escorrendo da orelha para as bochechas, com a estética que o insere no altar dos heróis, reforçada pelo grito: “Lutem, lutem, lutem”.
Se for eleito, veremos um personagem voltando ao comando do poder executivo da maior democracia ocidental, fato que alargaria a teia de preocupações das Nações, face à identidade de um megaempresário do mundo da diversão, cujo foco de compromissos inclui extravagâncias, entre as quais a expulsão de 15 milhões de imigrantes, hoje sediados nos EUA. A escolha de um senador com visão ultraconservadora, J.D. Vance, compõe o rol de expectativas aterrorizantes.
Tentemos suavizar a leitura acima com o sentimento de que, chegando mais uma vez ao Salão Oval da Casa Branca, Donald Trump veria que a realidade mundial está a exigir um ocupante naquele espaço com responsabilidade para não exorbitar em suas funções de mandatário e retocar um discurso pleno de ameaças. E, sobretudo, que seja guiado pela bússola do bom senso.
Ocorre que a geopolítica em nossos tempos contemporâneos tem afastado os governantes de seus traçados e rumos, bastando ver a paisagem destrutiva que assola a Ucrânia e a Faixa de Gaza, onde falta vontade política aos protagonistas para acabar com as guerras em curso. Lá está Vladimir Putin, de olhos fixados na agregação de territórios aos seus domínios russos. Lá está Xi Jinping, da imensa China, com a cabeça balançando entre Oriente e Ocidente. Lá está Emanoel Macron, boquiaberto com a França dividida. E a União Europeia debatendo quem pode entrar no bloco.
Quem diria que na metade da segunda década do século XXI, o nosso habitat padeceria de situações de barbárie, atos que revelam um atraso civilizatório, tão horripilantes como os que devastaram, no passado, nações ao curso de guerras e massacres.
O momento sugere a reflexão: afinal, o que está por trás dos conflitos, medo e insegurança que banham o espírito do nosso tempo? Só mesmo a ambição, a ânsia do poder, o desejo do Homem em vencer seu semelhante, tornando este um refém de sua vontade. O altruísmo está dando adeus. A convivialidade humana se esvai na poeira da história. A grandeza abre crateras de terror e medo. A conflituosidade se adensa pelos espaços, sob a ameaça do “paradigma do caos”, nos termos usados pelo professor Samuel Huntington, de Harvard, e já expressos por este escriba em textos anteriores:
– “Quebra da lei e da ordem, Estados fracassados e anarquia crescente, onda global de criminalidade, máfias transnacionais e cartéis de drogas, declínio na confiança e na solidariedade social, violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revólver.
Até parece que o relógio do Juízo Final está perto da meia noite. Abro, aqui, um parêntesis para descrever a história. (Em 1947, a artista norte-americana, Martyl Langsdorf, esposa do físico Alexander Goldsmith Jr, do projeto Manhattan -fabricação da bomba atômica, obra de Roberto Oppenheimer-, desenhou um relógio para a capa de uma revista.
Este relógio faz uma analogia com a raça humana, mostrando que ela está a segundos da meia noite, hora da destruição do planeta por uma guerra nuclear. De lá para cá, o relógio aparece no boletim dos cientistas atômicos, anunciando o apocalipse, fruto da multiplicidade de atos e comportamentos de países e líderes diante da iminência de uso de armas nucleares de destruição do planeta. O fim do mundo está mais próximo.
Lembrete: ao final da Segunda Guerra Mundial, bombas nucleares jogadas nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki deixaram efeitos devastadores. Ainda hoje sentidos.
Onomatopeias de horror – Santo Deus! Que tristeza! Quanta crueldade! Quanta crueldade…!) se ouvem aqui e ali. O medo nos faz fechar os vidros do carro. Portas e trancas fortes nos guardam em nossas moradias. A fuzilaria barulha as ruas. Os humanos procuram sombras de segurança. Mas esbarram em montanhas de violência.
Que Deus nos proteja!
Se for eleito, veremos um personagem voltando ao comando do poder executivo da maior democracia ocidental, fato que alargaria a teia de preocupações das Nações, face à identidade de um megaempresário do mundo da diversão, cujo foco de compromissos inclui extravagâncias, entre as quais a expulsão de 15 milhões de imigrantes, hoje sediados nos EUA. A escolha de um senador com visão ultraconservadora, J.D. Vance, compõe o rol de expectativas aterrorizantes.
Tentemos suavizar a leitura acima com o sentimento de que, chegando mais uma vez ao Salão Oval da Casa Branca, Donald Trump veria que a realidade mundial está a exigir um ocupante naquele espaço com responsabilidade para não exorbitar em suas funções de mandatário e retocar um discurso pleno de ameaças. E, sobretudo, que seja guiado pela bússola do bom senso.
Ocorre que a geopolítica em nossos tempos contemporâneos tem afastado os governantes de seus traçados e rumos, bastando ver a paisagem destrutiva que assola a Ucrânia e a Faixa de Gaza, onde falta vontade política aos protagonistas para acabar com as guerras em curso. Lá está Vladimir Putin, de olhos fixados na agregação de territórios aos seus domínios russos. Lá está Xi Jinping, da imensa China, com a cabeça balançando entre Oriente e Ocidente. Lá está Emanoel Macron, boquiaberto com a França dividida. E a União Europeia debatendo quem pode entrar no bloco.
Quem diria que na metade da segunda década do século XXI, o nosso habitat padeceria de situações de barbárie, atos que revelam um atraso civilizatório, tão horripilantes como os que devastaram, no passado, nações ao curso de guerras e massacres.
O momento sugere a reflexão: afinal, o que está por trás dos conflitos, medo e insegurança que banham o espírito do nosso tempo? Só mesmo a ambição, a ânsia do poder, o desejo do Homem em vencer seu semelhante, tornando este um refém de sua vontade. O altruísmo está dando adeus. A convivialidade humana se esvai na poeira da história. A grandeza abre crateras de terror e medo. A conflituosidade se adensa pelos espaços, sob a ameaça do “paradigma do caos”, nos termos usados pelo professor Samuel Huntington, de Harvard, e já expressos por este escriba em textos anteriores:
– “Quebra da lei e da ordem, Estados fracassados e anarquia crescente, onda global de criminalidade, máfias transnacionais e cartéis de drogas, declínio na confiança e na solidariedade social, violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revólver.
Até parece que o relógio do Juízo Final está perto da meia noite. Abro, aqui, um parêntesis para descrever a história. (Em 1947, a artista norte-americana, Martyl Langsdorf, esposa do físico Alexander Goldsmith Jr, do projeto Manhattan -fabricação da bomba atômica, obra de Roberto Oppenheimer-, desenhou um relógio para a capa de uma revista.
Este relógio faz uma analogia com a raça humana, mostrando que ela está a segundos da meia noite, hora da destruição do planeta por uma guerra nuclear. De lá para cá, o relógio aparece no boletim dos cientistas atômicos, anunciando o apocalipse, fruto da multiplicidade de atos e comportamentos de países e líderes diante da iminência de uso de armas nucleares de destruição do planeta. O fim do mundo está mais próximo.
Lembrete: ao final da Segunda Guerra Mundial, bombas nucleares jogadas nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki deixaram efeitos devastadores. Ainda hoje sentidos.
Onomatopeias de horror – Santo Deus! Que tristeza! Quanta crueldade! Quanta crueldade…!) se ouvem aqui e ali. O medo nos faz fechar os vidros do carro. Portas e trancas fortes nos guardam em nossas moradias. A fuzilaria barulha as ruas. Os humanos procuram sombras de segurança. Mas esbarram em montanhas de violência.
Que Deus nos proteja!
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