domingo, 15 de maio de 2016

Charge (Foto: Miguel)

A desgraça dos salvadores

Passei dia e noite ouvindo discursos. O último nome de senador que ouvi foi o de Vicentinho, que viajava num carro negro para entregar a Dilma a notícia do fim de jogo. A longa sessão foi um pouco diferente da da Câmara. Mais discursos, menos gestos. Ainda assim, creio que já havia amanhecido, ouvi o senador Ivo Cassol dedicar quase toda sua fala à pílula do câncer. Para ele, Dilma estava caindo porque hesitou em colocar laboratórios oficiais produzindo a pílula. Foi a única saudação aberta ao obscurantismo. O dia já estava claro, e consultava a lista de oradores como nos desfiles de escola de samba, aqueles em que algumas aparecem já com dia claro.

Quando olho para trás, ainda meio tonto de cansaço, tento alinhar algumas ideias verdadeiramente sinistras, aquelas que levaram a esquerda brasileira a essa derrota histórica. Seduzir-se pelo chamado socialismo do século XXI é uma delas. Costumo compará-la aos pedaços do Muro de Berlim, não os verdadeiros que foram vendidos logo após a queda. Com as fortes vendas, os camelôs de Berlim tiveram que falsificar pedaços do muro para atender à demanda.

O socialismo do século XXI tornou-se atraente na América do Sul com a vitória do chavismo. A ideia era conquistar o governo pelo voto e, progressivamente, dominar as instituições autônomas: Congresso, Judiciário, Forças Armadas e, dentro das possibilidades, a imprensa. O modelo teve êxito na Venezuela, se podemos chamar de êxito um regime que empobreceu o país e cria enormes filas até para comprar papel higiênico. Lá foi possível dominar o Congresso, ganhar as principais disputas na Justiça e ter comandantes militares partidários do governo. A imprensa independente foi mantida sob intenso ataque.

No Brasil, essas expectativas começaram a falhar no mensalão. Para dominar o Congresso, era preciso injetar muito dinheiro nos partidos aliados. O escândalo acabou sendo descoberto, e um juiz indicado pelo governo do PT, Joaquim Barbosa, conduziu o inquérito com admirável lisura. Os militares brasileiros mantiveram-se distantes do choque partidário. A imprensa, cortejada pelo PT nos seus tempos de oposição, foi demonizada. Não porque tenha, através da investigação, descoberto os grandes lances da corrupção. Ela noticiou o resultado do trabalho de duas instituições também autônomas: Polícia Federal e Ministério Público, em sintonia com o juiz Sérgio Moro.

Uma outra ideia sinistra que sobreviveu na esquerda brasileira foi que os fins justificam os meios. No fundo, isso significa dizer: estou fazendo o bem, danem-se as regras democráticas. Para avançar nesse terreno contaminado, tornou-se necessário desenvolver uma nova língua e prosseguir com a tática já esboçada na campanha: culpabilizar os seus críticos.

Se na campanha eram chamados de preconceituosos os que tinham reservas sobre as ideias e atitudes de Lula, no governo tornaram-se, principalmente, reacionários a serviço das elites. Ao optar sempre pelo contra-ataque, o PT não percebia que a crise se aprofundava e o partido se afastava cada vez mais da única possibilidade de superá-la: um esforço de união nacional. O PMDB, como sócio menor, fez muitas coisas erradas em parceria com o PT. Nunca embarcou, entretanto, no discurso nós contra eles, nem se refugiou numa suposta superioridade moral em relação aos seus críticos. A chance, ainda que precária, de realizar um tipo de união nacional, ideia sedutora em crises profundas, acabou levando as águas para os moinhos do PMDB. Era uma questão de tempo.

A troca não significa substituir um esquema corrupto por algo puro e imaculado. Mas é sempre possível denunciar as falcatruas das raposas do PMDB sem que te acusem de estar a serviço das elites e afirmem sua superioridade moral como portadora de um projeto único de salvação.

Nesse sentido, o choque com o PMDB abre uma chance de recuperar um diálogo político, sem, necessariamente, se defender de estar a serviço das elites, colonizadores de olhos azuis, brancos, machos e heterossexuais. Esse processo de critica à esquerda para mim já está se encerrando, pois acredito que ela própria terá de refletir sobre os caminhos que a levaram a esse fracasso. O mais importante é olhar para a frente, inventariar o rombo deixado nas contas nacionais e a amplitude do processo de corrupção.

Não é preciso parar a reconstrução. Mas, se não tivermos todos os dados sobre nossa desgraça econômica, será difícil traçar um caminho realista para superá-la. Quanto ao processo de corrupção, nunca é demais esquecer que os governos Collor e Dilma caíram sob acusações semelhantes. E olha que tanto Collor como o PT, nos palanques das diretas, eram as estrelas do futuro. Caçador de marajás, Collor prometia combater a corrupção, e Lula defendia a ética na política. Hoje, ambos são acusados no escândalo do Petrolão. Nossa jovem democracia falhou nesse quesito.

Em vez de acreditar em salvadores, será preciso conhecer e discutir as condições básicas que levam os governos brasileiros à ruína moral, independentemente de suas propostas moralizadoras. Redentores caíram no mesmo buraco. São responsáveis por seus erros, mas também é preciso desmontar as armadilhas do caminho.

Mudando de assunto

O tema dominante é um só: o novo governo. Como todos já falam disso (e só disso), mudo de assunto para chamar a atenção para fatos recentes quase afogados no tsunami geral, mas que podem ter repercussões importantes para todos.

Nesse quadro merece destaque a revelação dos chamados Panama Papers, divulgados por um coletivo de profissionais de imprensa — o Consorcio Internacional de Jornalistas Investigativos — a partir do vazamento de farta documentação sobre evasão fiscal, contas de laranjas e movimentação financeira internacional em empresas offshore e paraísos fiscais. No foco, os serviços de uma empresa de advocacia baseada no Panamá, a Mossack Fonseca, que atua em 42 países e emprega mais de 600 pessoas. O dossiê inclui mais de 11,5 milhões de arquivos de mais de 215.000 entidades e ainda levará algum tempo para ser devidamente examinado. Pode haver casos em que a manutenção dessas contas não é criminosa e se dá por razões de herança ou direitos de sucessão, ou por perseguição política no país de origem. Algumas dessas contas podem se explicar por mecanismos de isenção fiscal em determinadas legislações, e não por evasão e tentativas criminosas de enganar os diversos fiscos nacionais. Mas, feitas essas ressalvas, é impossível não constatar que tudo aponta para uma avassaladora maioria de casos de fuga de impostos e ocultação de patrimônio por motivos ligados à ilegalidade — como tráfico de drogas, contrabando de armas, sequestros, corrupção envolvendo políticos e empresas. No meio desse mundo a desbastar e esclarecer, um destaque especial e positivo para o Brasil. Revelou-se que somos o único país do mundo em que as autoridades já estavam oficialmente investigando essa companhia e esses mecanismos. Mérito da Operação Lava-Jato e suas apurações minuciosas envolvendo colaboração internacional, por meio de troca de informações fiscais e financeiras.

Nessa área em que se movem as grandes empresas e a propina, num momento em que se exige transparência e respeito aos cofres públicos, vale ainda destacar no âmbito nacional a questão dos acordos de leniência. Levando em conta que a lógica dos negócios das grandes empreiteiras com o governo teve seus crimes descobertos e isso tem de mudar, mas considerando também a quantidade de empregos que essas empresas geram e sua capacidade de contribuir com impostos para a economia do país, era natural que se pensasse em uma forma de colaboração premiada para ajudar a elucidação dos caminhos da propina. Mas é fundamental garantir que não haja impunidade, e também incentivar a mudança dos métodos adotados até agora. 

Nesse quadro, a lenientíssima Dilma editou uma medida provisória em dezembro, fingindo enfrentar o problema mas, na prática (ah, esses eternos fingimentos), revogando a Lei Anticorrupção em vigor, ao retirar o Ministério Público dos acordos de leniência, que passariam a ser feitos apenas com o Executivo — eventual parte interessada, se acusado de envolvimento no crime. Deveria ser votada até o fim de maio, acrescida de um relatório do deputado Paulo Teixeira, ainda mais bonzinho com as empresas. Agora, deve cair por decurso de prazo, junto com o governo despencado, preocupado em proteger as empreiteiras. Segundo o jurista Modesto Carvalhosa, sua aprovação seria um escândalo legislativo, garantindo a impunidade, esvaziando o Ministério Público e legalizando a corrupção.

No sentido contrário, vimos nos últimos dias uma empreiteira tomar o caminho oposto. A Andrade Gutierrez seguiu os passos da Camargo Corrêa ao fazer um acordo e foi além: se comprometeu a indenizar o Estado em 1 bilhão de reais, e publicou uma nota reconhecendo seus erros e pedindo desculpas. Já imaginaram como tudo poderia ter sido diferente, se o governo tivesse feito algo semelhante, entendendo que não estava acima da lei, assumindo sua responsabilidade, reconhecendo erros, pedindo desculpas, e se dispondo a mudar, em vez de insistir em seu papel de vítima inocente a martelar uma perfeição arrogante?

Como se não bastasse, a nota da Andrade Gutierrez sugere algumas medidas anticorrupção, com propostas concretas que podem impedir que continuem campeando as espertezas e achaques, os aditivos e embustes, as manhas e artimanhas que vinham caracterizando a relação entre poder público e empresários no país. São sensatas, prudentes e atentas a questões ambientais. Em geral, são sugestões tão lógicas que é de espantar que as coisas já não fossem assim.

Em momentos carentes de esperança, sinais positivos são bem-vindos. É o caso desse anúncio, como é o caso da eleição de um prefeito muçulmano em Londres, lição de convivência e democracia que os londrinos dão aos radicais de toda parte, ao apostar no desmanche de preconceitos e no desmonte de ódios e polarizações.

Pequenas flores furam o asfalto e brotam tímidas. Que ninguém as esmague, com passos descuidados.

Ana Maria Machado 

Nem cor nem gênero

 14/05
Há pouco mais de uma semana vieram à tona as negociações do então vice e agora presidente em exercício para formar o governo, dando conta de barganhas ao estilo toma-lá-dá-cá, tão usuais na política brasileira. Para abrigar aliados, Michel Temer teria de ceder na ideia de reduzir pastas. Teria de fazer mais do mesmo. Não foi o que se viu: anunciou uma equipe menos obesa, com 23 ministros. Mas, em vez de elogios, tomou uma saraivada de críticas pela ausência de mulheres no primeiro escalão – como se governo fosse questão de gênero -- e por fundir os ministérios da Educação e Cultura.

Grossa bobagem. Não de Temer, mas dos que esperneiam.

É deplorável que artistas do porte de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e outros tantos avalizem a sandice de que sem um ministério próprio o Brasil “fechará as cortinas de um grandioso palco aberto para o mundo”, como, dramaticamente, afirmam na carta aberta enviada a Temer.

Na missiva, dizem que a economia a ser feita com a fusão é pífia – como se não fosse obrigatório poupar cada tostão – e que o setor merece, por sua importância, excepcionalidade. Ao fazê-lo, diminuem o valor da cultura, igualando-se aos que reivindicam privilégios. Não se diferem em nada daqueles políticos condenáveis que, acima de tudo, querem manter regalias para si ou para o segmento que representam.

Triste país este em que seus artistas creem que cultura depende de ter ou não um Ministério.

Acusado de machista, de manter em casa uma linda primeira-dama “recatada e do lar”, Temer cometeu o pecado de não incluir uma mulher no primeiro escalão. Até desejou levar a deputada Mara Gabrilli (PSDB-SP), mas acabou extinguindo a pasta pensada para ela.

Foi execrado nas redes sociais e pelos movimentos de mulheres que hierarquizam o gênero antes da competência. E que têm como ícone a presidente afastada Dilma Rousseff, que adora atribuir parte de seus problemas a uma ilusória discriminação sexista.

Sem demora, Dilma aproveitou-se de sua condição de mulher para espinafrar Temer. Na entrevista à imprensa internacional, repetiu a ladainha da ilegitimidade do novo governo e lamentou a ausência de mulheres e negros no time que passou a comandar o país.

É claro que não contou aos jornalistas que o seu governo também não tinha um único negro, mesmo quando ostentava 39 ministérios. Algo que não tem importância alguma, não fosse o fato de ela reclamar da pele de quem a sucede sem olhar o próprio umbigo.

Ter ou não negros, amarelos, católicos, judeus ou evangélicos nada garante. As exigências sabidamente são outras.

Lula teve Benedita da Silva, mulher, negra e evangélica. Durou pouco mais de um ano. Foi afastada depois de ser flagrada usando dinheiro público para custeio pessoal em um evento de sua crença, na Argentina. E teve homens brancos que acabaram atrás das grades, condenados pelo mensalão.

Teve oito ministros em dívida com a Justiça, mesmo número de ministros investigados de Temer, muito aquém dos 21 enrolados do grupo de Dilma, uma equipe que figura como a pior que já se viu.

Além da presidente, o governo Dilma também tinha mulheres. E isso não se refletiu em êxito. E sua derrocada veio pela incompetência gerencial, inabilidade política e soberba, não pelo fato de ela ser mulher. O país sabe disso e ela finge não saber.

Quem insiste na representação por gênero, cor ou credo, o faz por ignorância, desonestidade intelectual ou má-fé. Ou por tudo isso.

O outro lado

Sob o sol inclemente, milhares de pessoas enfrentam uma fila para entrar na área cercada diante do Planalto. Índios, funcionários públicos, velhos militantes de longos cabelos brancos e jornalistas se comprimem contra as grades. Muitos vestidos de vermelho, com camisas da CUT, bandeiras da UNE e uma espécie de avental do MST. Há gente fina, elegante e, creio, sincera, com óculos Ray-Ban e iPhone, mas a maioria traz na roupa e na expressão o selo da pobreza. Cheiro do suor e balões vermelhos, rosas meio murchas nas mãos das mulheres. Celulares registrando cada movimento, como convém a esses tempos.

Palavras de ordem de repente rebentam no meio da multidão. “Dilma, guerreira da pátria brasileira” e “Golpistas não passarão” soam mais modernos, mas “O povo não é bobo: abaixo a rede Globo” parece ressuscitar algum fantasma da década de 70 que deveria estar morto e enterrado, não fossem os interesses da hora. Entre os que estão fechados no espaço gradeado há reclamações sobre crianças e idosos sedentos. Seus pedidos por água são ouvidos com total impassibilidade pelos seguranças do Planalto.

Nem bem encosto na grade e ouço uma moça, com crachá de funcionária de um dos Ministérios, comentar com a amiga: “A luta continua. Eles vão ter que nos matar. Nós, servidores públicos, mulheres, negros e trabalhadores rurais enfrentaremos tempos muito difíceis. Mas nós resistiremos“. A frase me soa surreal. Eles. Quem seriam eles? Temer? As perversas elites? Não me contenho e indago. “Eles, os que sempre mandaram no Brasil e agora não admitem que os pobres estejam no comando. Esses coxinhas, claro!“, é a resposta.

Um silêncio se faz em mim. Coxinhas. Sob esse rótulo – mais um dos que nos separam – vi o rosto de cada um de meus muitos amigos que combatem, com todas as forças, o governo petista. São médicos, garçonetes, taxistas, engenheiros, porteiros e professores. Alguns têm filhos recém-nascidos, outros estão desempregados, há os que estão abatidos com o noticiário interminável sobre corrupção e os que apostaram tudo o que tinham em pequenos negócios. Todos temem a sombra da grande crise que nos engolfa. Além de posts no Facebook e participação em manifestações, são inofensivos como borboletas. E menciono borboletas propositalmente, pois tenho um ridículo medo delas. São incapazes de me fazer qualquer mal, mas, em algum momento de minha vida, aprendi a temê-las e até odiá-las, coitadas.

Exatamente nessa hora recebo uma mensagem da Paula, que me confidencia: “Por que estou constrangida em dar uma leve comemoradinha em público!? Será que é respeito pelos colegas de esquerda, queridos, ou porque não há o que comemorar de verdade? Depois de tanto tempo eu deveria estar mais eufórica, mas não estou”. Paula, coxinha e borboleta, cuja doce sensibilidade até em comemorar traduz bem o instante e o perigo de julgar desconhecidos. Paula e sua mensagem são uma demonstração de que nem todo “coxinha” toma champanhe em copinhos de plástico na Paulista.

“Olha essas flores, vem aqui que eu te dou. Essas duas cercas não podem nos separar!“, grita um rapaz com sotaque gaúcho para uma garota do outro lado da grade. Não ouço a resposta, mas registro no rosto dele, se não o amor, mas a pura atração em tempos de cólera. Ele insiste: “Vem pra cá com a sua câmera. Aqui não tem ladrão nem golpista“. Atrás de mim, uma voz responde: “Há golpistas aqui, também“.

O ruído aumenta, punhos erguidos, mãos fechadas. Os ânimos se acirram, a grade é derrubada, um grito alto se eleva e o povaréu invade a cena. A jornalista americana está visivelmente tensa, assim como o cinegrafista musculoso, de óculos de sol e coberto de suor. Juntam os equipamentos e correm. Apenas um susto. A segurança intervém e põe a grade de pé novamente.

Olho para o lado e vejo dois militantes de meia idade – Tomás e sua companheira – que carregam cartazes em russo e alemão falando sobre o suposto golpe. Vieram do Ceará e querem alertar o mundo sobre o que acreditam ser um atentado à democracia. Atrás deles, um homem idoso, de longos cabelos totalmente brancos, compra um pacote de amendoim na barraca do ambulante (sempre os há). Veste uma regata branca. Os cabelos empapados de suor grudam na pele clara e no rosto vermelho.

De repente, um burburinho: o ex-presidente Lula chega. Começam a cantar um olê-olê-olê-olá-Lulá-Lulá. Apesar da saudação, Lula mal olha para os apoiadores. Passa direto, sem disfarçar o abatimento.

Pouco depois, Dilma começa a falar. Cada frase transmitida pelo sistema de som desperta reações na plateia. Chama o processo de impeachment de golpe e repete que não cometeu crime de responsabilidade. Quando se diz “vítima de uma grande injustiça” vários manifestantes começam a chorar, principalmente as mulheres. A presidente afastada pede várias vezes para que os seguranças mudem de lugar para que ela enxergue as pessoas do outro lado da grade. “Quero ver o pessoal!”, repete.


Atrás dela, Lula se mantém alheio, acariciando o bigode com um gesto mecânico e aquela expressão de descrença que todos temos nos velórios dos amados. Lula assiste ao enterro de seu projeto. Pergunto a mim mesma no que estará pensando. Lembro do líder carismático, domador de multidões de outrora, e tenho certeza que, naquele instante, ele está enfrentando a si mesmo: as escolhas equivocadas, a voracidade de seu grupo que lhe corroeu a popularidade, os planos de poder destruídos. Parece muito, muito velho. E cansado.

Volto novamente minha atenção para Dilma, que responsabiliza por sua queda não os erros que cometeu, mas os adversários, “os que não conseguiram chegar ao governo pelo voto direto do povo”, os que perderam as eleições e “tentam agora pela força chegar ao poder”. É aplaudida em delírio.

Em meio ao discurso de Dilma, disperso-me de novo. Noto um rapaz. Muito jovem, negro, vestido com simplicidade. Soluçava abraçado à mãe, que o consola. Eu e outra jornalista os fotografamos (a imagem era irresistível). A mãe nota as câmeras e quase sorri, abraça-o mais, conferindo pelo canto dos olhos se os celulares registram a cena. O rapaz afunda a cabeça no pescoço dela, as lágrimas encharcando a camisa. Balbucia frases sobre futuro incerto, desesperança, portas fechadas e perdas. Sinto uma brutal vontade de chorar. Uma compaixão imensa por aquele rapaz, tão jovem, acreditar que apenas um governo é capaz de erguê-lo.

Penso imediatamente em meu tio-avô, Deoclécio, negro, com seu impecável uniforme branco da Marinha Mercante, muito engomado, desfilando perante a vizinhança, orgulhoso de só dever sua carreira a si mesmo. E sofro, muda, por aquele rapaz estar tão vitimizado e dependente. Minha dor imensa é por terem roubado dele o que temos de mais esplêndido: o espírito independente, altivo. Abatido, ele agora acredita que não é nada. Sem a mão do governo, que seria dele? E isso, penso, é uma coisa inominável.

Isso, sim, é a restauração da escravidão. Uma escravidão que não atinge apenas a uma raça, que não vitima uma epiderme: a escravidão da alma, que é subjugada até não mais acreditar em si mesma, em seu esforço e capacidade. Alguém disse àquele rapaz – quase menino – que só sob a tutela do grande pai governamental ele seria algo na vida. E ele acreditou. Ao microfone, Dilma repete que é um dia muito triste.

Uma espiada em torno e vejo novamente os tipos clássicos que deveriam estar ali, obrigatoriamente. Alguns com jeito de classe média alta, mas que carregam uma culpa ancestral pela desigualdade social que testemunham. São sonhadores como Lennon e querem mudar o mundo como Cazuza. Dividem o planeta entre capitalistas feios e socialistas bondosos; acreditam que ser de esquerda é um certificado de “ser do bem”. Demoro algum tempo observando a moça que tudo fotografa com um iPhone: corte de cabelo moderno, óculos de sol e um colar de miçangas alaranjadas enrolado no braço direito.

Volto a atenção para Dilma pela terceira vez. Ela está dizendo que sofreu a dor da tortura, da doença e, agora, a da injustiça e da traição. Um coro se eleva: “Fora Temer!”. Ouço o discurso pensando que ela também foi vítima da própria arrogância. A primeira mulher a presidir o Brasil pecou por falta de humildade, por inabilidade, por não saber ouvir.

A presidente se aproxima de onde estou. Abraça e beija as mulheres que estão ao meu lado. Sorri muito. Noto seus cabelos escovados, a face coberta de pesada maquiagem. Terá dormido? Estará medicada para enfrentar a dureza da hora? Começo a sentir piedade, mas lembro que, poucos minutos antes, ela havia, ainda uma vez, insinuado a toda aquela gente desesperançada que eles perderiam tudo o que tinham conquistado: Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Fies, Prouni, cotas raciais e sociais. E a imagem do rapaz que chorava absorve toda a minha capacidade de sentir compaixão.

A presidente se afasta e começo a retornar. O caminho está impedido por muitos índios que cantam, dançam e gritam pela demarcação das terras indígenas. Penso nos treze anos em que o autointitulado governo das minorias e dos desamparados não resolveu a questão indígena, a mortandade dos Guarani-Kaiowá e a reforma agrária.

Abro caminho entre os índios, os jornalistas que correm e uma parte do povo que se dispersa. De repente eu me apanho rindo e tentando decifrar uma imagem: caminha à minha frente um objeto de chita onde está escrito “Dilma”. Penso comigo: parece algo que faria parte de uma encenação de bumba-meu-boi, mas era apenas um guarda-chuva que tinha uma espécie de sainha costurada nele. A pessoa andava e a sainha ia sacolejando pela Praça dos Três Poderes, com suas letras de tecido colorido costuradas. Tão pueril, tão brasileiro.

E pensei, como Vinicius, poeta e brasileiro como eu:
Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos…
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!

Lula amou muito o desastre. E foi correspondido

“Eu vou pra casa”, limitou-se a declarar Lula aos repórteres que tentaram arrancar dele uma reação qualquer ao afastamento de Dilma da poltrona de presidente da República. Habituado a ouvir o personagem durante vários anos, o país ficou sabendo que Lula, a caminho do automóvel após testemunhar a saída de sua criatura do Palácio do Planalto, não tinha nada a dizer. Por um instante, nada foi uma palavra que ultrapassou tudo.

Lula poderia ter dito muitas coisas. Por exemplo: “Escolher Dilma como candidata em 2010 foi um grande erro. Renovar a escolha em 2014 foi uma temeridade.'' Ou: “Jamais deveríamos ter permitido a conversão da rotina em escândalo.” Ou ainda: “Onde estávamos com a cabeça quando trocamos a responsabilidade fiscal pelo malabarismo econômico?”

Lula poderia ter feito um mea-culpa. Algo assim: “Depois de tudo o que ocorreu no caso do mensalão, eu não poderia ter avalizado a nomeação de petrogatunos para a diretoria da Petrobras. Pagamos agora a conta da longevidade de um poder promíscuo.”

Lula poderia ter despejado dados sobre os gravadores e os microfones dos repórteres: “Na era petista, todos os estratos sociais prosperaram. A renda dos 10% mais pobres subiu 129% acima da inflação. A dos 10% mais ricos aumentou 32%. Mas a ruína econômica mastiga esses ganhos.”

Lula poderia ter recorrido às lamúrias: “O Brasil usufruiu como poucos do chamado ciclo das commodities. Mas lamento não ter feito as reformas estruturais. Lamento também não ter impedido a manobra das pedaladas fiscais, que maquiaram a realidade em meio a uma gastança que, se reelegeu a Dilma, criou o pretexto para derrubá-la.”

Lula poderia ter constatado que, em 13 anos, ajudou o PT a protagonizar o caso mais dramático de flexibilização das fronteiras ideológicas. Dormiu de um lado e acordou do outro lado, de mãos dadas com Sarney, Renan, Cunha, Collor e o imenso etcétera que cavou a sepultura do impeachment.

Lula poderia ter dito como se sente na pele de alvo da PF, do STF e do juiz Sérgio Moro. Antes de entrar no carro, Lula poderia ter gritado para os repórteres: “Eu amei profundamente o desastre. E fui correspondido.”

O enigma e o ossobuco

Certa vez, um dos pais do Plano Real me pediu que almoçasse com o então correspondente de uma vetusta revista de economia do Reino Unido. Fomos ao restaurante do Bonaparte, em Brasília. Não resisti a fazer um comentário: disse que estava preocupado com a precisão das informações sobre a Rússia e a China.

Teria dito ele: “I beg you pardon?”. Não, não disse. Eram tempos mais informais. Perguntou apenas o porquê daminha preocupação e se eu sabia de alguma grave imprecisão no noticiário da ilustrada revista. Disse eu que não. Somente que, por analogia, temia que as notícias sobre os dois países estivessem um pouco imprecisas.

“Por analogia?”, indagou ele. Não resisti. Sabia que ia me custar um gelo. Com uma ponta de ironia, respondi que as notícias sobre o Brasil eram muito imprecisas e que, por analogia, temia que estivesse acontecendo o mesmo quando a revista tratava da Rússia e da China.

Claro que o correspondente jamais voltou a falar comigo. Retornou para a sua prudente distância de Brasília, a mais de mil quilômetros, e de lá prosseguiu disparando seus comentários sobre os acontecimentos no DF.

Evidentemente, o pobre correspondente não tem tanta culpa assim. Até mesmo para brasileiros do Rio e de São Paulo é difícil entender a política de Brasília. Trata-se de cidade invicta cujo enigma prossegue intacto desde a sua criação. A redemocratização só complicou. Trouxe muitos partidos, muitos caciques, muitos escândalos, tudo muito tudo!

Lembro-me de um livro em que o correspondente de guerra, que estava confortavelmente instalado em um hotel a centenas de quilômetros do front, mandava suas matérias para o jornal. Entre um trago e outro, a guerra acabou e ele mandou a informação errada de batalhas imaginárias. Falar de Brasília a alguns milhares de quilômetros de distância é uma temeridade. Compra-se gato por lebre.

Por isso eu gosto do comentarista Gerson Camarotti. Com ele não tem erro. Lembram quando disseram, às vésperas da votação do impeachment, no plenário da Câmara, que o governo articulava uma reação liderada por Waldir Maranhão e que corria o risco de o governo DilmaRousseff virar o jogo? Camarotti não acreditou. Ele estava no front, em meio ao tiroteio.

Agora o não menos vetusto New York Times veio, em editorial, afirmar que Dilma talvez tenha sido vítima de uma injustiça por estar pagando um preço “desproporcional” por seus pecados, já que aqueles que a condenam cometeram crimes maiores.

Ou seja, Dilma deveria ser aliviada de seus crimes porque parte daqueles que a julgam teriam cometido crimes piores. Muito bem, quantos dos que a julgam foram condenados? Quantos cometeram crimes maiores do que pedalar bilhões de reais? O que seria proporcional para Dilma no entendimento ilustrado do NYT?

No mínimo, para não dizer o máximo, o vetusto periódico está viajando na maionese. Dilma cometeu crimes apontados pelos seguintes organismos: Tribunal de Contas da União, que lá nos Estados Unidos se chama General Accounting Office (GAO); pela Câmara dos Deputados;pelo Senado Federal; e tudo chancelado pelo Supremo Tribunal Federal. Onde está a injustiça? Onde está a desproporcionalidade?

Seria proporcional que os crimes de Dilma fossem aliviados porque os crimes dos outros são potencialmente piores? Qual é a noção do direito que se depreende do raciocínio do editorial doNew York Times? By the way, a “injustiçada” Dilma está sendo processada por obstrução da Justiça. Será que o NYT aceitaria as pedaladas do presidente da República caso apontadas pelo GAO norte-americano, Congresso e chanceladas pela Suprema Corte?

Será que o bem-informado NYT não sabe que Dilma está sendo investigada pelo Departamento de Justiça e pela Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos? Ou, ainda, que o FBI andou buscando provas da Operação Lava-Jato para robustecer as investigações que correm nos Estados Unidos e que afetam à sua presidência.

Para consolo do editorialista do NYT, aqueles que cometeram crimes e que ainda não foram julgados não perdem por esperar. A mão forte do STF será pesada. Aos que perderem o foro privilegiado, restará enfrentar o juiz Sérgio Moro.

Ainda que seja inaceitável o NYT ter um entendimento tão shallow da realidade brasileira, devemos ter paciência com o bom homem branco do Norte e suas intenções de tentar restabelecer a justiça neste trópico cheio de suores e alegorias. Resulta de um misto de preguiça e colonialismo.

O Brasil é tão complicado que dá preguiça. Dá vontade de “deixar pra depois” ou dizer “amanhã, quem sabe, eu vou”. Imaginem para o gringo que esta lá em Nova York e que tem que escrever um editorial sobre o “Brazil” antes de ir correndo para traçar aquele ossobuco no Becco?

Antes que me ataquem, respondo com a frase do velho editor na peça Lucky Guy, de Nora Ephron: “Só existem dois fatos na vida: o nascimento e a morte. O resto está submetido a interpretações.” Muitas delas são horrendas.

O que sobrar

Lula anunciou que montará um “governo paralelo” para fiscalizar a gestão de Michel Temer. É o que os ingleses chamam de “shadow cabinet” – um ministério informal, agindo à sombra do oficial, para ver se este está trabalhando a favor dos interesses da população. Já leu? Pois esqueça. Lula disse isto todas as vezes em que foi derrotado numa eleição. O “shadow cabinet” é um de seus factoides, destinado apenas a fazer espuma e adoçar seu minguante eleitorado interno.

Se Lula não fiscalizou seu governo, nem o de Dilma, como fiscalizará um governo alheio? Nos 13 anos de PT no poder, houve o aparelhamento e a tomada do Estado, o assalto à Petrobras, o festival de propinas, a farra das montadoras e das empreiteiras, a venda de medidas provisórias, a bacanal fiscal e o rombo nas contas públicas. Tudo isto levou o país para o buraco e, como a Carolina do Chico Buarque, só Lula não viu.

Lula não fiscalizou as manhas e artimanhas de seus amigos José Dirceu, Delúbio Soares, José Genoíno, João Vaccari, Silvinho Pereira, Delcídio do Amaral e demais cartolas do PT, dos marqueteiros João Santana e Mônica Moura, dos empreiteiros Leo Pinheiro e Marcelo Odebrecht, do pecuarista José Carlos Bumlai e de outros que ficam, literalmente, na geladeira.

Aliás, Lula não fiscalizou nem a si mesmo. Deslumbrou-se com os vinhos e jatinhos da elite golpista loura e de olhos azuis, promoveu reformas em sítios e tríplex que não lhe pertenciam e fez palestras milionárias de que não se conhece uma palavra.

E, agora, Lula já não conseguirá fiscalizar seus antigos aliados, que estão presos na Lava Jato e a fim de contar o que sabem para mitigar as sentenças de que não escaparão. Marcelo Odebrecht, por exemplo, quer falar para reduzir os 100 anos de cadeia a que está sujeito e, quem sabe, dividir com Lula o que sobrar.

Questão de gênero

Eu não estou interessado em saber o que as pessoas têm entre as pernas quando em pauta estão assuntos de estado. Ou qual é a cor de sua pele. Eu estou interessando em saber o que elas têm dentro da cachola
Reinaldo Azevedo 

A herança

Na noite da decisão do afastamento de Dilma Rousseff da Presidência da República, e no dia seguinte, com sua saída do Palácio do Planalto e a posse do presidente interino, a frase martelou constantemente minha cabeça. Atribuída ao poeta romano Públio Terêncio Afro e, segundo alguns, ensinamento predileto de Machado de Assis e Marx, ela sintetiza a complexidade do que senti vendo acabar de desmoronar aquilo que foi parte de minha vida.

Os que porventura me lerem devem se lembrar de que nunca votei em Dilma e que, ao fim e ao cabo, foi diante da violência da imposição da candidatura dela ao PT por Lula, com a sucessão de decisões por ele tomadas para fazê-la vitoriosa, que deixei definitivamente o partido que ajudei a fundar.

Mas a gente não se livra de algo pelo qual lutou tanto tempo de uma só vez. Por mais que tudo que ocorreu tenha sido falha humana e que eu tente por isso compreender, a gente morre várias e sucessivas vezes diante do fracasso de seu ideal. Quem já teve algum tipo de perda na vida – e todos nós temos – compreende o que quero dizer com isso.

Diante dos brasileiros, abre-se agora um novo período. Sei que muitos estão esperançosos em dias melhores. Oxalá tenham razão. Mas o tamanho do estrago deixado pela herança dela e do próprio PT – haja vista o que vem acontecendo no governo de Minas Gerais, para não falar de outros Estados, governados por siglas como o PMDB no Rio e o PSDB em São Paulo – gera em mim um medo terrível do sofrimento dos excluídos. Falo dos trabalhadores de modo geral, dos pobres, daqueles que não tiveram sequer as oportunidades de possuir um teto, uma cama confortável, comida no prato todos os dias, bons médicos e remédios quando doentes, empregos seguros, uma vida de família repleta de momentos alegres. E, lembrando Drummond às avessas, “até um cão”.

Temo pela reconstrução na política, na economia, nas instituições e nas relações entre elas. Temo pelas consequências dessa mais que necessária operação de combate à corrupção sistêmica que acompanha o Brasil há muito, mas que chega ao paroxismo quando muitos investigados, réus ou já condenados, têm a coragem de pegar o microfone no Congresso Nacional e decidir a condenação de outros acusados, como Delcídio do Amaral e Dilma Rousseff. O rosário de discursos hipócritas de lado a lado, tanto dos que votaram contra a presidente quanto dos que tentaram defendê-la –, tudo isso me trouxe a exata dimensão de quantos desafios esperam o país daqui para a frente.

E, se não bastassem todos esses temores, vi perfilados na despedida de Dilma no Palácio muitos dos que foram responsáveis pelas humilhações que vivi enquanto estive na vida pública. Porque nela não vivi apenas glórias e sucessos. Também sofri demais dentro do PT.

Termino este artigo invocando o poeta que me tem consolado: 
Todos estes que aí estãoatravancando meu caminho,eles passarão...eu passarinho” (Mario Quintana)

Como assim, humanismo?

Uma das marcas mais reconhecidas da cultura pós-moderna é o seu anti-humanismo. Individualista ao extremo, o pós-moderno é um modo de estar no mundo que não assimila a noção de valores humanos transcendentes à existência corrida de cada dia. O homem, como valor, está cassado. O humanismo se aposentou. Ficou excêntrico, fora do eixo. Quem percebe a incompletude desse modo achatado de ser fica procurando coisas perdidas. As pessoas ficaram no ar, desautorizadas de fazerem uma experiência de si mesmas que ainda mereça o nome de humanismo. Uma experiência de habitação do homem na Terra. Na terra, onde tudo começou.

Há uma antiga fábula sobre a disputa dos deuses quanto ao nome que dariam ao homem. Que coisa é um homem? Os diversos deuses e deusas pretendiam nomeá-lo, cada um segundo suas próprias características essenciais. A arte do guerreiro. A sabedoria que conhece. O engenho que produz. A alegria que canta. O corpo que deseja. O poder que domina. A linguagem que comunica. Não houve acordo, como era o mais frequente na mesa dos deuses, que comiam, bebiam e brigavam enquanto iam deliberando sobre as coisas do mundo sublunar. E Zeus, o rei dos deuses, decidiu quase salomonicamente: a coisa nova se chamaria, provisoriamente, homem, pois viera da terra, humus.

Outra narrativa, que conhecemos bem, nos dá conta da fabricação do nosso ancestral diretamente por Deus, o oleiro do homem. Deus moldou a forma original da sua mais alta criação. Às outras tinha-lhe bastado dizer “Seja!” Ao homem, não. Deus o quis à sua semelhança. Moldou-o para ser a mais perfeita criatura. A semelhança não estava no corpo, de que Deus não precisa. Estava em que Deus lhe soprou pelas narinas a alma. E o homem, animado pelo divino, viveu.

Barro e nome. Barro e sopro. Um elemento da natureza inerte, outro de vida e sentido. Entre essas duas metades de DNA do homem e da mulher (“e homem e mulher os criou”, diz a outra narrativa do Genesis) definiu-se, provisoriamente, a humanidade. Provisoriamente: os deuses ainda podiam fechar acordo sobre um nome que não lembrasse apenas a origem barrenta; e o primeiro casal, expulso do Jardim, precisou inventar nomes de cidades, ferramentas, armas e tendas. Seu nome próprio estava em suspenso. Precisava merecê-lo. E assim foi. Por um lado como pelo outro da nossa ancestralidade greco-latina e judaica, andamos procurando responder a essa pergunta, que Drummond formulou no bronze do seu verso: “Mas que coisa é homem...?”. As buscas constituíram os diversos humanismos de que se fez a nossa história. Seleciono apenas algumas estações maiores dessa viagem.

Houve um humanismo grego. O que propôs a educação, a formação pela cultura, para criar o homem e afastar o “bárbaro”. Uma Paideia. Herdamos dela. Como já havíamos herdado do humanismo judaico do Livro: sempre dois lendo, um diante do outro, para que da divergência florescesse a interpretação, e nela a continuidade da verdade de Deus. Também aprendemos do humanismo romano do cidadão, do homem livre pela lei, e sujeito a ela para ser livre. Uma bonita ideia sobre o que determina um homem a ser. Formulamos, cristãmente, a noção universal de humanidade, e a distribuímos pelos muitos cantos da terra. Um humanismo universalista, entusiasmante tentativa de entender o que, afinal, é homem, se Deus a todos criou, sem distinção. O humanismo renascentista acabou afastando o homem de Deus, e aproximando-o da outra grande criatura, a natureza. Esse humanismo naturalista nos encheu de arte e beleza, e prenunciou a época moderna, a da Razão soberana. A do homem público, súdito e senhor da Razão. O homem pós-moderno pode ser o antagonista deste. Abalada a Razão pela eficácia do cálculo que dispensa a verdade, surge o indivíduo consumidor, ávido de desejos e prazeres. Homem unidimensional. Não mais barro e sopro, terra e nome. Já não cultura ou interpretação da Palavra. Nada de cidadão e Lei. Nem criatura e Criador. Ou o parceiro da Natureza. Ou o servo e senhor da razão, atormentado pela verdade. O pós-moderno homem unidimensional rompeu todos esses vínculos. Largou amarras. Queria ficar livre: ficou à deriva.

Um humanismo, hoje, poderia funcionar como um contraveneno. Resgatar os jogados fora. Trazer de volta, no próprio momento da sua anunciada extinção, o corpo dos deuses, a Palavra e a Criação, a Lei e a liberdade, o gosto da Natureza. E começar de novo. Ainda não sabemos que coisa é um homem. Corremos o risco de nunca o saber, nesse mundo tornado global, que sofre de doença autoimune, e se devora porque não se reconhece.

O humanismo não seria, hoje, um saudosismo passadista. Nessa hora crepuscular, poderia ser um projeto revolucionário. E não tem mais tempo: é para já.

Marcio Tavares D'Amaral