quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Diálogo com os mortos

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Hoje, Dia de Finados, acordo
e vou ao cemitério dialogar com os mortos.
Me assento solitário
no mármore do poema
na cova rasa da história
e considero
os mortos de outrora
e a vergonha de estar vivo agora.

Olho os mortos em torno:
há qualquer coisa estranha e dura
no vazio de seus rostos:
– é vergonha,
é a calcinada amargura
segregada na solidão dos que choram
do fundo da sepultura.

Certamente não sabiam
que mesmo depois de mortos
uma vez mais morreriam
de vergonha e humilhação.

Vou dialogar com os mortos
e descubro
que os vivos é que estão surdos.
vou dialogar com os mortos
e escuto
que os vivos é que estão mudos.

– Podem os mortos em seus jazigos
emprestar sua voz aos vivos?
Será preciso um comício
de cinza, círios e ossos
para resgatar
os vivos mortos?

Mal formulo esse juízo, percebo
que me equivoco:
– são os mortos que me assomam à porta
sacudindo os ossos
brandindo vozes
desenterrando em mim
meus insepultos remorsos.

O que é isso? dança macabra?f
festa de bruxa: – abacadabra?

O que fazem na praça soltos
os mortos de nossa história?

O que fazem expostos, fora
da cova da memória?

Que dia torto, esquisito,
onde o morto é que está vivo
chorando na praça, às claras
a nossa escura desgraça…….

Diziam os sábios antigos
– os mortos governam os vivos.
Mas na ironia da frase
descubro um outro sentido
ao contemplar meu país
num desgoverno aflitivo.

Os que deviam reinar
estão sonâmbulos, perdidos
em seus palácios sombrios
em seus esquifes de vidro
olhando de longe a nação.

Não percebem que estão mortos
começam a já mal cheirar
e, no entanto, se recusam
a se deitar – no caixão.
Affonso Romano de Sant’Anna

Paisagem brasileira

Itaúnas - Itaúnas - ES
Itaúnas (ES)

Aborrecido com Torquato, Temer se faz de morto

Michel Temer decidiu tratar a crise que opõe o seu ministro da Justiça ao governo do Rio de Janeiro como uma espécie de bala perdida que passou de raspão pelo Palácio do Planalto. Aconselhado por um parlamentar fluminense a demitir Torquato Jardim, o presidente fez ouvidos moucos. Ante a cogitação de divulgar uma nota, preferiu se abster. Uma declaração oral? Refugou. Espera que a desavença seja sedada pelo feriado. Sem condições de agigantar-se em meio ao tiroteio, Temer agachou-se. Embora esteja aborrecido com o amigo Torquato, optou por não fazer nada. O que explica tudo.

Temer não deseja afastar o ministro. Mas ainda que desejasse, não teria condições de fazê-lo. Após transformar a Esplanada numa trincheira multipartidária de investigados, o presidente atiraria contra o próprio pé se colocasse no olho da rua um auxiliar com a ficha imaculada, cujo pecado foi ecoar meia dúzia de verdades contidas em relatórios sigilosos dos órgãos de inteligência sobre o acasalamento da política e da Polícia Militar fluminense com o crime organizado.

Empurrar Torquato para fora do governo, forçando-o a pedir para sair, também não seria uma manobra inteligente. Sobretudo porque Temer acaba de pegar em lanças para aprovar na Câmara o congelamento das investigações criminais contra si mesmo e contra os ministros palacianos Moreira Franco e Eliseu Padilha. Festejado nas redes sociais pela sinceridade, o titular da pasta da Justiça ganharia uma aparência de navio que abandona os ratos.

Para fazer média com o governador Luiz Fernando Pezão, Temer poderia submeter Torquato a uma admoestação cenográfica. Coisa para carioca ver. Mas o ministro da Justiça não é político. Ele faz a Temer o favor de gerir um ministério. Não domina a arte de engolir sapos. Tampouco parece afeito à prática de procurar saídas honrosas em meio à desonra. De resto, Temer se arrisca a entrar na briga do lado da polícia do Rio. A corporação não é 100% corrupta, como insinuou o ministro. Mas 95% dos seus membros dão aos 5% restantes uma péssima reputação.

A lógica da lei

O juiz Sergio Moro, aplaudido e criticado porque pôs na prisão uma quadrilha no poder, é um herói mas não é uma estrela. Porque a estrela é a lei que deve valer para pobres e ricos, famintos e gorrinhos, doentes e sãos, honestos e desonestos, poderosos e comuns. 

Pois a lei só é autêntica se vale também para quem não tem boa ou má-fé, dinheiro, poder, influência e prestígio. Sua lógica é implacável e seu alvo é o delito e não apenas a pessoa. A justiça razoável é o processo de adequação entre o crime, o delinquente e as suas circunstâncias.

Aí reside a sua universalidade, à qual se aplica até mesmo a quem a promulgou. Até mesmo Deus está – e eu digo isso com abalo –, Ele próprio, submetido à sua Lei.



Não é, pois, por acaso que a imagem da lei tem os olhos vendados, mas não é cega. A venda simboliza a determinação de não distinguir quem deve ser pesado na sua balança, cuja neutralidade, porém, é visível. A venda remete ao ideal de igualdade e a espada simula a penalidade que obrigatoriamente fecha o ciclo iniciado com o rompimento da norma.

Vendo a nossa crescente familiaridade com os processos legais e ainda um tanto bestificado pela prisão de alguns poderosos, enquanto aguardo (com uma imensa incerteza) a de outros tantos, é impossível não comparar minhas experiências com a lei nas diversas sociedades nas quais vivi.

Entre os Apinayé (uma humanidade sem escrita), seria impossível separar lei do costume, sempre muito mais abraçado do que contestado. Nessas sociedades fiéis a si mesmas, como diz Lévi-Strauss, vive-se sem a distinção marcante entre o individual e o coletivo e o revolucionismo, tão habitual no Leblon, é impossível. Além disso, a dinâmica social é dinamizada pela reciprocidade, de modo que mais vale dar e distribuir do que receber e guardar. Ali, eu não vi prisões e não descobri criminosos ou pervertidos.

Nos Estados Unidos, experimentei uma outra vivência da norma. Em South Bend, Indiana, vivi, nos anos 1980, uma experiência drástica com a lei local. Numa noite de verão, soube que meus filhos haviam sido presos quando, em estado de razoável influência do mero álcool, saíam, após um jogo, de um estádio de beisebol. Um membro do grupo tentou deixar o estádio por uma dada passagem, mas foi barrado por um policial à paisana. O grupo indagou o que havia ocorrido e meu filho Renato cometeu uma falta mortal: tocou com a mão, num gesto brasileiro, o ombro do policial: foi empurrado, empurrou de volta e, por isso, foi algemado. A agitação pública levou o grupo para a cadeia.

No xadrez da cidade, situado ao lado da prefeitura, um tranquilo sargento nos recebeu no melhor estilo dos filmes de Frank Capra, dissipando as fantasias de violência e tortura do pai. O guarda perguntou os nomes, confirmou-os, cobrou a respectiva fiança – imediatamente paga em dinheiro – e, depois de uma explicação-admoestação em tom sereno, disse que eles estavam de quarentena por três meses, pois, caso repetissem o mesmo delito, seriam enjaulados por mais tempo. Fomos todos para casa. Ninguém perguntou quem era quem e não houve nenhuma juridicidade barata ou papelada.

No dia seguinte, comentei envergonhado o ocorrido com alguns colegas de universidade. Foi quando descobri que todos haviam passado por experiências semelhantes. Lá, a polícia não era chamada e nem era um corpo exótico ou uma sentença final. Era simplesmente parte e parceira de uma sociedade na qual todos podiam cometer delitos sabendo que a polícia estava ao seu lado – para protegê-los ou puni-los.

Confesso que a generalidade da experiência em lidar com a polícia e a prisão foi, para mim, mais surpreendente do que o fato, até então dramático, de ver meus filhos presos.

Em dezembro de 1969, na véspera de voltar ao Brasil e ao Museu Nacional, depois de concluir meus estudos em Harvard, fui detido por um carro de polícia em Somerville, uma cidade vizinha de Cambridge, Massachusetts, a cerca de dois quarteirões da vila onde morava. Eu havia vendido meu primeiro caro, um velho fusca, para um vizinho e, por isso, não paguei a renovação da licença. Depois de um belo jantar, a polícia me perseguiu e me obrigou a parar.

Saindo do carro, o policial perguntou porque eu não tinha licenciado o meu automóvel. Mentirosamente respondi que ignorava tal obrigação. O policial olhou meus documentos e vendo que eu era aluno de Harvard, disse sério: “Você é da Harvard. É muito esperto para não saber dessa regra”. E falou algo que jamais esqueci: “Não minta! Se você continuar mentindo, a multa pode ser de 1.500 dólares!” (era tudo que havíamos economizado...). Aceitei o conselho, falei a verdade, ouvi uma espinafração e fui liberado.

Aquelas experiências me abriram ao seguinte: nas democracias, quanto mais você sabe, quanto mais você tem, quanto mais você é poderoso, maior é o seu dever de falar a verdade e de seguir a lei. Prestígio, riqueza, influência e poder não desobrigam – muito pelo contrário: obrigam.

*

PS: Lavar a Lava Jato seria a maior sujeira da nossa história política!

De novo, a banda podre

Em março de 2000, o antropólogo Luiz Eduardo Soares denunciou a existência de uma “banda podre” na polícia do Rio. Ele não disse mais que o óbvio, mas entrou na mira de deputados e coronéis. O governador Anthony Garotinho resolveu a crise da forma mais fácil: demitiu o colaborador, que atuava como subsecretário de Segurança.

Em novembro de 2017, o enredo ensaia se repetir com Torquato Jardim. Depois de apontar vínculos entre a PM do Rio e o crime organizado, o ministro da Justiça virou alvo de reações histéricas. O presidente da Assembleia Legislativa o chamou de mentiroso. O presidente da Câmara, de infantil e irresponsável. O governador Luiz Fernando Pezão ameaçou processá-lo no Supremo.
Os políticos fluminenses acusam Jardim de ofender a honra do Estado. Eles indicam que só vão recuar se a cabeça do ministro for servida numa bandeja. “Se a população do Rio ainda tem quem a defenda, é a Polícia Militar”, discursou o deputado Jorge Picciani, chefão local do PMDB.

“É a reação corporativista e provinciana de sempre”, comenta o antropólogo Luiz Eduardo Soares, 17 anos depois de ser demitido por criticar a polícia. “Isso me parece uma hipocrisia tremenda. O orgulho do Rio não está ferido por uma entrevista, e sim pela violência e pela corrupção”, afirma.

 As evidências de que a banda podre continua na ativa são fornecidas pela própria polícia. Em junho, 96 PMs foram presos sob acusação de receber mesada do tráfico. Em outubro, o comandante de uma UPP foi detido sob suspeita de desviar armas e munições. Negar o problema é o caminho mais seguro para não resolvê-lo.

Isso não significa que Jardim esteja liberado para fazer acusações graves sem ajudar a apurá-las. Ao assumir o cargo, ele já tropeçou na língua ao dizer que sua única experiência em segurança era o fato de ter sido assaltado. No dia em que denunciou os maus policiais, o professor Luiz Eduardo Soares foi ao Ministério Público e entregou um calhamaço de provas.

Imagem do Dia

'Se roubava para se fazer política, hoje se faz política para roubar

O que me faz voltar à operação Lava Jato é uma das frases – que uso para dar título a este artigo – do jornalista italiano Gianni Barbacetto, entrevistado no programa “Roda Viva”. Gianni trabalhou em jornal, rádio, televisão e cinema. Como repórter, cobriu a operação Mãos Limpas, que comprovou pagamentos de propinas a políticos com vistas à conquista de licitações na construção civil. Ela também inspirou a operação Lava Jato. Em companhia dos repórteres Marco Travaglio e Peter Gómez, que, na mesma época, foram repórteres do jornal “Il Fatto Quotidiano”, publicou o livro “Operação Mãos Limpas”. Sua entrevista à TV Cultura, sob o comando do jornalista Augusto Nunes, merece ser vista. Diria até que ela é imperdível. Está disponível no canal do YouTube.

Não sei se a frase dita por Gianni Barbacetto reflete, exatamente, o que acontece em nosso país. Todavia, de muitos anos para cá, ficou evidente que a política por estas bandas se transformou em eficiente meio para fazer negócio. Esqueceu-se de que “a arte de governar, segundo Thomaz Jefferson, consiste, exclusivamente, na arte de ser honesto”. São várias as causas dessa repulsiva distorção. Nosso sistema eleitoral é uma delas. Está na cabeceira. No início, usava-se, à vontade, o caixa 2 para se eleger. E ninguém contestava, apesar do desrespeito à essência do regime democrático. Só se elegia o candidato que dispunha de mais dinheiro. E isso ainda poderá ocorrer em 2018.

Era assim o paradigma adotado por qualquer político. As eleições foram encarecendo ao longo do tempo, e o caixa 2, que antes não era crime, já não bastava. Era necessário ir além. Afinal, na política, tudo era válido. Grassou, então, a propina, custeada por dinheiro público. Vários partidos políticos, obviamente acompanhados pelos eleitos, aparelharam empresas públicas e, por meio dos cupinchas que nomeavam para tocar sua gestão, desviaram bilhões de reais. Parte ia para os partidos (ou para seus donos) e para candidatos de sua preferência; parte ia para o bolso dos cupinchas, que enriqueciam criminosamente. Os depoimentos de executivos da Petrobras que fizeram delação premiada jamais serão apagados de nossa memória.

O que ocorre aqui acontece em outros países. Portugal, por exemplo, tem sua operação Lava Jato, não tão extensa, nem tão profunda, pelos valores que ela envolve. Chama-se “operação Marquês”. Há poucos dias, o Ministério Público denunciou o ex-presidente José Sócrates (2005-2011). A acusação contra ele – a de ter transformado seu gabinete num balcão de negócios – tem mais de 4.000 páginas. Pretende-se recuperar por lá, pelo menos, € 58 milhões. A operação portuguesa, segundo o colunista Mathias de Alencastro, da “Folha de S.Paulo”, “chega num momento em que Portugal atravessa sua melhor fase desde o começo do século: o crescimento do PIB atinge números históricos, e a classe política reconquistou uma imagem positiva. E, talvez ainda mais importante, a credibilidade das instituições, que se destacaram por sua discrição, permanece intacta”.

A operação de Portugal, que transcorre com discrição, lembra o que disse o advogado Técio Lins e Silva no artigo “Advocacia em tempo de cólera” (“O Globo”, 29.10.2017): “É inaceitável a alegação, falsa, de que o necessário combate à criminalidade, especialmente a que assalta os cofres públicos, exige a flexibilização de direitos”.

E é só!, diria o saudoso Ariosvaldo de Campos Pires.

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Por quem os sinos dobram?

Dia de Finados evoca a nossa finitude. Pensar na “irmã morte corporal, da qual nenhum ser vivente pode escapar”, como cantou Francisco de Assis (1182/1226) em seu magistral “Cântico das Criaturas”, é antídoto contra a vaidade, o orgulho e a ostentação – defeitos tão em voga nesses tempos de individualismo máximo. Mas é tempo também de lembrar da morte dos outros. Pensar nos que se foram por algum tipo de violência, mesmo que não os conheçamos, é exercício de alteridade, de solidariedade.

Assim, quero convidá-lo(a), paciente leitor(a), a refletir, por exemplo, sobre a morte trágica dos 358 somalis, vitimados por um violentíssimo e covarde atentado do grupo Al Shabab, ainda neste outubro. A destruição letal quase não foi mencionada na imprensa mundial e nacional. Vidas pobres, negras, africanas não contam? A Somália, onde uma terrível seca vitimou, há alguns anos, 250 mil pessoas, não faz parte do nosso planeta?

Proponho que você se coloque no lugar das famílias que, diariamente, têm um ente querido seu levado pela brutalidade da violência no Brasil. Em 2016, houve um aumento de 17,5% na morte de policiais (56% deles negros) e de 26% nas vítimas fatais de intervenções policiais (76% negros), diz o Anuário da Segurança Pública. Não há um dia sequer em que não saibamos de alguém que saiu de casa, para tocar sua vida, quem sabe cheio de planos alegres para um futuro não muito distante, e não voltou. Exercício de amor é “sentir na própria carne”, ter sensibilidade para quem se vê, subitamente, privado do filho, da parceira, do pai, da mãe, do(a) amigo(a). Não pode ser normal!
Charge O Tempo 02/11/2017

Lembre-se dos pais das crianças e dos adolescentes com a vida ceifada precocemente na creche em Janaúba (MG) e no colégio em Goiânia (GO). Não se trata de recomendar uma lembrança mórbida, carregada de luto e dor, mas de um pensamento que impulsione à ação. Para que cada um, à sua maneira, ajude a construir uma sociedade na qual desatinos como esses, perpetrados por pessoas desamparadas de afeto, sejam reduzidos, até desaparecer – ainda que só na época dos nossos tataranetos.

A morte provocada também mostra sua face sombria na natureza, da qual somos parte (consciência biológica que muitos ainda não têm). Mãos humanas, movidas a ganância, acenderam o fogo que devastou quase 30% da Chapada dos Veadeiros! “As araras voavam doidas, desesperadas, ao verem as chamas se aproximarem de seus ninhos e filhotes”, diz Leonilton Ferreira, gerente de uma pousada em São Jorge, porta de entrada para o Parque Nacional (OESP, 26/10/17).

Incêndios destruíram instalações e veículos do Ibama e do ICMBio em Humaitá, no sul do Amazonas. De novo a agressora ação humana, para que a morte do rio Madeira e a exploração predatória dos garimpos ilegais e das madeireiras clandestinas prossiga.

Como não considerar como “roteirista macabro” dessa trama toda um governo que decreta a mineração em área até então protegida (Renca) e baixa uma portaria reduzindo os controles contra o trabalho escravo?

A morte, às vezes, entra devagarinho na vida da gente. Em outras ocasiões, vem súbita, como brutal ruptura. É preciso estar atento e forte para enfrentá-la, em suas mil e uma formas. Nem sempre é possível derrotá-la, mas é necessário acreditar que, apesar de tudo, a vida vence. Nós, com nosso corpo perecível, nos eternizaremos nas generosas causas de justiça, igualdade e paz que abraçarmos.

Nada pelo social

“Tudo pelo social”, o slogan do governo Sarney, foi escolhido com base nas regras de ouro do marketing, mas deu tudo errado, com o fracasso do Plano Cruzado. Foi inspirado na Constituição de 1988, a carta cidadã de Ulysses Guimarães, que ampliou os direitos sociais dos brasileiros, contra a qual José Sarney se bateu, depois de embarcar no populismo voluntarista de sua política econômica de crescimento acelerado e naufragar. Acabou o mandato com o governo na lona, em meio à hiperinflação, juntamente com seus aliados. Todos eles assistiram perplexos uma disputa de segundo turno entre os ex-presidentes Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva, vencida pelo primeiro, que foi apeado do poder porque era um “outsider” na política. A crise econômica parecia imbatível.

Ministro da Fazenda de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardozo fez o ajuste fiscal e um plano de estabilização da economia que deram tão certo que acabou presidente da República. Foi eleito graças ao fim da hiperinflação. Seu governo fez a reforma patrimonial do Estado (privatizações) e adotou uma política social liberal, que consistiu na focalização dos gastos sociais nos mais pobres. As políticas sociais universalistas enfrentaram grande restrição de recursos, mesmo assim, foram inovadoras em alguns aspectos, entre os quais a universalização do ensino básico, sob comando do ex-ministro da Educação Paulo Renato, já falecido, e alguns êxitos importantes na saúde pública, como o controle da epidemia de Aids e a produção de medicamentos genéricos, com a quebra de patentes internacionais, mérito do senador José Serra (PSDB-SP).



Lula deitou e rolou quando assumiu o poder, porque a cama estava arrumada. A crise cambial que enfrentou foi fruto de expectativas negativas, mas acabou facilmente superada quando anunciou na Carta aos Brasileiros que manteria o “mais do mesmo” da política monetária do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan: superavit fiscal, câmbio flutuante e meta de inflação. Na crise financeira internacional de 2008, porém, caiu no canto da sereia da chamada “nova matriz econômica” de Dilma Rousseff. Como o Brasil ainda surfava as altas taxas de crescimento da China e a expansão da economia mundial, Lula ampliou os programas sociais para 13 milhões de famílias de baixa renda e conseguiu manter taxas elevadas de crescimento na sua sucessão, chegando a 7% em 2010, quando Dilma foi eleita pela primeira vez.

Tudo parecia caminhar na direção da transformação do Brasil numa potência emergente, com uma classe média numerosa, mas o naufrágio era iminente. As manifestações de 2013 foram o recado dos jovens de que as coisas não estavam indo bem, apesar do oba-oba em torno da Copa do Mundo. Além disso, os sintomas de que a corrupção era sistêmica e fora organizada de cima pra baixo já eram aparentes. Mesmo assim, Dilma foi reeleita em 2014, quando a economia já mandava sinais de que o seu motor estava pifando.

Dilma ganhou o segundo mandato, mas não levou. O impeachment foi mais um ponto fora da curva, como o de Collor de Mello, mas uma decorrência de seus erros. Dilma não soube aproveitar as oportunidades, potencializou todas as ameaças, anulou os pontos fortes de seu governo e não compensou nenhum de seus próprios pontos fracos. O que parecia impossível aconteceu: perdeu o mandato de presidente da República com o povo na rua pedindo sua cabeça, enquanto o PT, acuado, procurava preservar suas forças com a narrativa do golpe e a candidatura de Lula a presidente em 2018.

Chegamos ao governo de Michel Temer, que não somente articulou a queda de Dilma, como herdou seu sistema de alianças, expurgado do PT e seus satélites de esquerda. A antiga oposição se incorporou ao governo, dando-lhe legitimidade e base de apoio no Congresso para enfrentar as adversidades. No caso, foram duas denúncias do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot, ambas rejeitadas pela Câmara, da qual Temer foi presidente três vezes. Soube neutralizar pontos fracos e conter ameaças para preservar o mandato.

Temer reverteu a recessão e retomou o crescimento; jogou a inflação abaixo de 3,5% ao ano, com uma taxa de juros que deve chegar a 7%. Teria tudo para ter o mesmo sucesso de Itamar Franco e emplacar um sucessor, mas está longe disso. Além do desgaste provocado pelo envolvimento na Operação Lava-Jato, o governo parece não dar a menor bola para a questão social, haja vista a portaria sobre trabalho escravo, num país com 13 milhões de desempregados declarados. Não tem política de emprego, a face mais perversa da crise social, que cresce vegetativamente, a ponto de os indicadores de 2017 serem superiores aos de 2016, porque o ingresso de jovens no mercado de trabalho é superior à geração de novos postos de trabalho, que este ano atingiu 1 milhão de postos. O mais grave, porém, é a crise de segurança pública, na qual a violência urbana, principalmente no Rio de Janeiro, escandaliza o país e o mundo.