quinta-feira, 21 de maio de 2020

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A dor coletiva e o desamparo

Um chefe de Estado demonstra sentimento quando o seu povo sofre, vai aos locais onde a tragédia acontece, conversa com atingidos e os conforta. Um governante mantém uma atitude de seriedade quando o país é alvejado por alguma catástrofe. Tem palavras de encorajamento para os que estão na frente da batalha socorrendo os enfermos. O que parece ser apenas protocolo faz parte do conjunto de obrigações da pessoa pública. Isso não resolve o problema, mas impacta muito mais do que se imagina a tomada de decisões. Só tem chance de acertar o líder que entende a dimensão da dor coletiva.

A comunicação de quem governa não pode ser tocada por um miliciano digital. Tem que ter sobriedade e propósito. Não pode ser uma corrida por likes e lacrações. É a expressão do próprio Estado e por isso tem que ser dirigida por pessoas que evitem os ruídos e as agressões, as omissões e os conflitos. Mas nada substitui a palavra do líder, se ela for sincera e tiver relação com os atos praticados.

Ir até o local onde se sofre é a norma de conduta mais elementar que um governante tem que seguir. Não estar presente simboliza desprezo pelos governados. Normalmente, os que visitam o povo em seu sofrimento entendem a urgência da tomada de decisão. A pessoa pública conseguirá dialogar apenas com alguns e ver somente uma fração do que acontece, mas algumas histórias costumam falar por muitas e por isso, ao sair do seu casulo, onde os áulicos lhe dizem que está tudo certo, o governante precisará ter ouvidos para ouvir e aproveitar a chance de ver com os próprios olhos.

O Brasil se acostumou à dor sem consolo. Aceita que o presidente faça piada quando a pandemia mata mais de mil pessoas num mesmo dia. Na piada rimada do presidente — quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, tubaína — não há apenas mau gosto. Há perversidade. Na terça-feira em que ele fez a blague houve 1.179 mortes por coronavírus no país. Bolsonaro parece querer exibir a indiferença, como se tivesse orgulho dela.

De vez em quando alguém tenta entender o tamanho do acontecido calculando quanto as mortes representariam em quedas de avião — e vários aviões caem diariamente no Brasil— ou usando métricas de outros desastres, para ter uma dimensão da realidade. Isso é importante para que não se fique anestesiado diante da repetição diária dos eventos. Há gente atrás de cada número, como nos lembra o projeto “Inumeráveis”.

São inumeráveis as dores que atingem as famílias, inumeráveis as aflições de quem teme ser o próximo ou que o mal ameace as pessoas queridas. Inumeráveis as noites mal dormidas no Brasil nestes meses difíceis. Inumeráveis as horas de angústia de quem luta por um leito em hospital. Contudo, seguimos usando números para contar as vítimas de cada dia, e assim dimensionar o sofrimento do país. Cada pessoa é única para os seus. E depois que o registro da perda deixar de ser notícia, a família atingida passará anos carregando as cicatrizes.

O ser humano foi dotado da virtude da empatia. Isso é natural. O sofrimento não precisa ser pessoal, para que cada um o sinta de certa forma e consiga se imaginar na pele do outro. Isso nos fez gregários. Assim nasceram as sociedades, os povos se organizaram, os países foram constituídos. Nessa ideia se inspiram as religiões. A cristã vai além de pedir que entendamos o sofrimento do semelhante. Avisa que é preciso amar o próximo.

O presidente do Brasil nos revela até que ponto pode chegar a insensibilidade ao sofrimento. Se o “E daí?” foi um tapa na cara do país, a piada da cloroquina/tubaína, seguida da gargalhada, no dia dos mil mortos, foi inqualificável. O dicionário da língua portuguesa parece gasto. As palavras andam fracas demais para qualificar o comportamento adotado por Jair Bolsonaro diante da dor dos brasileiros.

Quando tudo isso passar — e tudo isso passará — nós olharemos para trás e não acreditaremos que fomos capazes de tolerar esse tempo extremo. Veremos com espanto o pesadelo coletivo que atravessamos sem o amparo de palavras de conforto de quem o país escolheu para o posto mais alto da administração. Os erros de gestão terão levado muitas pessoas à morte, mas nem poderemos saber que vidas seriam poupadas. Muitos serão os filhos do talvez. Haverá, então, a batalha das versões e é apenas nela que pensa Jair Bolsonaro.

Ódio, ganância e ignorância, os inimigos

Se o público está aterrorizado e quer que um líder forte assuma, isso torna muito mais fácil um ditador fazer exatamente isso: assumir o poder. Se, ao contrário, houver reação do público quando um político for longe demais, podemos evitar que os desdobramentos mais perigosos aconteçam.

O problema realmente grande são nossos demônios interiores, nosso próprio ódio, ganância e ignorância. Temo que não se esteja reagindo a esta crise com solidariedade global, mas com ódio, colocando a culpa em outros países, em minorias étnicas e religiosas
Yuval Noah Harari

Desigualdade endêmica

No mês em que o Brasil comemora 132 anos da Lei Áurea, a sociedade debate se o Enem deve ser adiado. É claro que fazer o exame logo depois da epidemia vai acirrar a brutal desigualdade de como a educação de base é oferecida, mesmo nos períodos normais.

Escolas privadas estão substituindo aulas presenciais por ensino a distância, com a mesma ou até melhor qualidade, desde que os alunos tenham os equipamentos necessários e contem com apoio de pais ou de professores particulares. Mas raríssimas escolas públicas conseguem se adaptar com a mesma rapidez ao uso dos métodos do ensino a distância e, dificilmente, seus alunos contam com celulares, tablets, notebooks ou com o apoio pedagógico familiar.


Por isso, é absurdo que o governo federal se recuse a adiar a realização do Enem para quando as escolas tiverem recuperado o tempo perdido. Felizmente, entidades estudantis e grupos preocupados com a educação estão lutando para forçar o adiamento do exame na tentativa de impedir o agravamento das consequências decorrentes da desigualdade de como a educação é oferecida às nossas crianças. Mas é lamentável que a sensibilidade à desigualdade só chame a atenção quando se trata do ingresso à universidade.

Os movimentos que agora defendem postergar o Enem por causa da epidemia ignoram que, há décadas, independentemente do coronavírus, o ingresso na universidade trata diferentemente os candidatos, conforme a renda da família. A desigualdade na qualidade de educação de base só é percebida quando se trata da entrada no ensino superior — é a desigualdade entre os que terminaram o ensino médio e se sentem em condições de disputar o vestibular ou o Enem.

Mais grave é a desigualdade que atinge os esquecidos que não terminam o ensino médio, abandonam a escola antes ou fazem um curso tão ruim, que não se atrevem a buscar vaga em faculdade. É preciso, portanto, barrar a maldade do governo ao impor um Enem da epidemia, mas as diferenças educacionais são antigas, não são culpa (ou apenas) da atual administração. É herança maldita de governos anteriores, inclusive os últimos democratas-progressistas, que geriram o país por 26 anos, e os da esquerda, por 13 anos.

Durante toda a nossa história, relegamos a qualidade média da educação. Cuidamos dela apenas para os filhos de poucos, abandonando os descendentes dos negros durante a escravidão e os filhos dos pobres depois da Abolição. E só descobrimos a desigualdade quando está em jogo o ingresso no ensino superior, mesmo assim, por seu agravamento durante o confinamento provocado pela epidemia.

Por 350 anos, os navios negreiros tinham marujos com ordem para não deixar os escravos pularem no mar durante o trajeto desde a África. Os traficantes sabiam que o suicídio de um escravo era prejuízo como jogar mercadoria ao mar. Depois do trajeto, quando um escravo se suicidava, os parentes eram punidos porque a morte representava descapitalização para o dono.

Nós não entendemos ainda que, ao abandonar a escola, o jovem está se suicidando socialmente e descapitalizando o país de seu potencial intelectual. Os traficantes de escravos não eram mais humanos e sensíveis do que nós, brasileiros republicanos, mas somos, igualmente, insensíveis e menos inteligentes.

Fechamos os olhos ao suicídio social de dezenas de milhões de brasileiros que saltam os muros da escola e ignoramos o prejuízo que isso provoca no país e na humanidade. O abandono escolar, como o salto ao mar dos escravos, decorre em parte da pobreza da família, exigindo que os filhos trabalhem, mas decorre, sobretudo, da má qualidade e da pouca atratividade da escola. A maior parte delas, como navios negreiros para o futuro.

Nossos constituintes sofreram dessa ignorância ao definirem que educação é um direito de cada brasileiro, mas não o vetor do progresso do Brasil. Por isso, lutamos contra o Enem neste momento, mas não para que a escola tenha a mesma qualidade, independentemente da renda da família. Por um lado, porque vemos a educação apenas como um direito, não como o vetor do progresso. Por outro, pelo elitismo de nossos movimentos sociais que se interessam pelo direito de quem terminou o ensino médio, mas não o direito dos que abandonarão a escola antes do vestibular ou do Enem.

A luta pelo adiamento do Enem deve ser apoiada, contudo, não basta: é preciso lembrar os que jamais farão vestibular, por nem sonharem com o ensino superior devido à má qualidade da educação de base que lhes foi oferecida.
Cristovam Buarque

As razões dos militares

Os militares que estão no governo aparentemente não comandam. Por motivo simples: uma coisa é a aptidão técnica e a formação intelectual para planejar e executar considerando meios e fins. Para isso os militares foram muito bem preparados em suas academias, que equivalem a escolas de business comparáveis às melhores lá de fora.

Outra coisa é o exercício da política, aprendizado que não está nos currículos dessas academias. Tem sido mais fácil para os militares no governo se apegar a seu padrão ético de “cumprir a missão”, “obedecer ao comando hierárquico” e “não abandonar o barco em dificuldades” do que enxergar que prestígio e respeito pacientemente recuperados pelas Forças Armadas após o regime que instauraram e conduziram por 21 anos estão naufragando pelo suporte que emprestam ao que hoje, sob Bolsonaro, deriva numa aventura rumo ao abismo.

O que os levou a pular para a carruagem do atual presidente, que estava longe de ser a primeira escolha deles, foi a noção de esgarçamento do tecido social e de desagregação institucional ilustrada por dois episódios significativos ainda no início da campanha eleitoral de 2018. O primeiro foi o fica ou sai de Lula da cadeia em Curitiba, devido a uma sequência de canetadas do Judiciário. Bagunça que por um triz não levou à desordem. O segundo foi a bagunça mesmo criada pela greve dos caminhoneiros.

A um candidato sem planos, além de frases de efeito, os militares levaram seriedade, confiabilidade e gente experiente em logística, gestão de recursos, planejamento, disciplina e hierarquia. Acharam que a onda disruptiva que destruiu a reputação de políticos, partidos, imprensa e várias instituições se traduziria num “momento” político capaz de fazer prosperar mesmo num Legislativo hostil a reformas, à transformação do Estado e por aí vai. Não estavam sozinhos nessa mescla de fé e esperança, combinadas a um pouco de cálculo.


Faltou o lado político, pelo qual Bolsonaro enveredou da pior forma possível. Preferiu renunciar ao exercício de seu maior poder, que é ditar a agenda. Preferiu concentrar-se no afago à suas parcelas de seguidores incondicionais, que estão diminuindo. Jogou fora várias oportunidades de se tornar uma voz pregando convergência, união, pacificação, concentração de esforços. Perdeu tempo e, com a pavorosa crise do coronavírus, perdeu também a moral.

Na mais recente grande crise do governo, a da saída de Sérgio Moro, os militares encontraram como conveniente justificativa para tolerar um governo no mínimo errático a postura do STF de limitar as prerrogativas do Executivo. Além de legislar, o Judiciário em alguns casos até governa, ou não deixa governar. Há um forte debate jurídico e acadêmico sobre o tema, mas militares e políticos, e não só os do Centrão, avaliam esse fato como usurpação de prerrogativas.

Portanto, sob essa ótica, é até “compreensível” o flerte nada discreto do presidente com a crise institucional que os militares não querem que aconteça. O problema político que eles não resolveram é traçar a linha entre o que é “suporte institucional” a um governo destrambelhado e o que é cumplicidade com o destrambelhamento. É o tipo de coisa, porém, que só fica bem clara depois.

Parece evidente neste momento que está além da formação técnica e doutrinária dos militares resolver um nó que é político na mais pura essência. O símbolo de tudo isso é um general, que não é médico, liberando no Ministério da Saúde um documento contendo protocolo de tratamento que médicos que o antecederam não quiseram assinar – e se recusaram a fazê-lo por razões técnicas, e o general o fez por razões políticas do presidente da República.

São razões que passaram a ser, por conivência, conveniência ou inércia, as razões também dos homens que vestiram ou vestem fardas.

Nova Saúde no Brasil


A pandemia da ignorância

Para falar das coisas prementes, vamos começar por um diagnóstico antigo: “Hoje, a maioria dos homens está doente, como que de uma epidemia, em função das falsas crenças a respeito do mundo, e o mal se agrava porque, por imitação, transmitem o mal uns aos outros, como carneiros”. Essas palavras foram mandadas gravar em pedras na cidade de Enoanda, na Capadócia (atual território da Turquia), por um certo Diógenes, no século 2.º desta era. Seguidor dos ensinamentos do filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.), Diógenes fez essas e outras inscrições em nome de seu mestre, para quem a filosofia teria o poder de nos curar. Epicuro via na ignorância um terrível mal da humanidade e nisso concordava com outros sábios gregos.


A ignorância é um mal que mata. Se alguém ainda duvida, que olhe para o Brasil. Em nosso país ficaram escancarados os nexos entre a estupidez e o fracasso no combate à pandemia da covid-19. Se quisermos olhar o mesmo fato por um ângulo invertido, diremos que estão mais do que patentes os nexos entre o conhecimento e o sucesso contra a pandemia. Países onde as autoridades evitam espalhafatos e ancoram suas decisões na ciência têm se saído melhor. Nesses lugares distantes, os governos agem com o que se pode chamar de bom senso: as decisões são pautadas na razão, nas evidências científicas, e, não menos importante, a sociedade compreende o que as autoridades falam. A comunicação honesta e séria deve ser concebida como uma dimensão integrante da razão. Onde as autoridades alopram, predominam os surtos cloroquínicos, as mortes se avolumam e ninguém entende nada.

Na televisão, os sepultamentos com retroescavadeira conferem aos funerais um aspecto de manobras de terraplanagem. Loucura desgrenhada. Embora o atestado de óbito registre covid-19, não há mais como fingir que a burrice governamental não seja uma assassina pior. A ignorância causa a mortandade – ou o morticínio. As provas estão aí. Se o novo coronavírus não se vê a olho nu, as engrenagens internas da irresponsabilidade estulta do presidente da República estão mais do que expostas. Todo mundo vê, todo mundo sabe, mesmo os que não sabem o que fazem ao apoiá-lo, como “carneiros” celerados, em transes dominicais.

O presidente é um avatar do fascismo digital, com o detalhe de que, em lugar de um comando pensante em outra dimensão de si mesmo, tem as instruções de seus atos vindas de um lugar fora de si. Que ele pareça um ser fora de si é mero detalhe. O que não é detalhe é a lógica irracional (mas, ainda assim, lógica) a que ele obedece, como um personagem desses videogames em que os contendores se engalfinham pelas redes digitais. O presidente é um autômato teleguiado pela dinâmica das redes sociais. Ele e seus aduladores vivem a fantasia tecnológica de uma guerra permanente contra os direitos, a democracia, a modernidade e a civilização. E em tempos de pandemia essa brincadeira de criançonas psicóticas mata gente a uma taxa de mais de mil por dia.

Os brasileiros estão morrendo não só de covid-19, morrem porque lhes foi inoculada a doença da ignorância apatetada do presidente da República. Estamos morrendo de bolsonarite. No inferno das UTIs precárias, das UTIs inexistentes, dos cemitérios revirados do avesso pelas motoniveladoras, a nossa maior tragédia não é que Bolsonaro seja fascista (o que ele é, embora não saiba o que quer dizer esse adjetivo), a tragédia maior é que nele a idiotia militante (e fascista) assume a forma de uma política pública de genocídio a céu aberto.

Diante da vala comum a que este governo nos vai reduzindo, os juristas ajuizados (são poucos) trabalham para localizar elementos probatórios de crime de responsabilidade onde grassa a irresponsabilidade mais desarvorada e mais tanática. Trata-se de dar um jeito de montar um pedido de impeachment com começo, meio e fim que force o sujeito a sair de lá. Não é de descartar a hipótese de que, apavorado, ele renuncie. (O Centrão não será resistência, pois vai com quem dá mais e quando perceber que o governo não tem mais o que dar pulará fora.)

O impeachment ganhou a força de um imperativo moral, um dever cívico, uma questão de sobrevivência, uma agenda de saúde pública e uma mobilização para evitar a morte pública da coisa pública, das vidas brasileiras e, se você quiser, também da economia nacional. Esse é o compromisso inadiável dos que acordaram para a urgência de construir uma unidade antifascista (uma frente) para estancar o genocídio. O remédio de que dispomos contra a epidemia da ignorância responde pelo nome de impeachment.

O antídoto é mais simples do que o tetrafármaco prescrito por Epicuro: “Não há que temer a morte, não há que temer os deuses, a dor se pode suportar, a felicidade se pode alcançar”. O impeachment é mais fácil de usar do que a ataraxia (imperturbabilidade da alma). Impeachment na veia. Aviemos logo a receita.

Vale o que não está escrito


Assim funciona a propaganda: não preste atenção aos verdadeiros crimes e no que os motiva. Se você conta os crimes, mas não explica as estruturas institucionais em que eles ocorrem, as pessoas não entendem o que acontece e os crimes se repetem
Noam Chomsky

Saúde militarizada

Na terça-feira, o Brasil cruzou uma barreira macabra ao contabilizar mais de mil mortos pelo coronavírus num intervalo de 24 horas. Foram 1.179 vítimas do patógeno, segundo o Ministério da Saúde.

O número é certamente maior, dada a notória subnotificação verificada aqui, mais uma entre tantas mazelas locais que a Covid-19 veio apenas sublinhar —e também pelo colapso do sistema funerário do país, que mal consegue registrar os dados básicos de seus mortos (em muitos lugares o laudo omite a cor da vítima, por exemplo).

Tem-se morrido às centenas diariamente de genéricos “problemas respiratórios”, em número várias vezes superior à média histórica brasileira, para ficar apenas numa das rubricas lavradas em atestados de óbitos que devem mascarar novas vítimas da nova doença.


Mesmo considerando somente o número oficial, é aterradora a comparação com as principais causas de morte pré-coronavírus: doenças cardiovasculares, sejam infartos ou AVCs (980 pessoas na média diária de 2018), câncer (624) e causas externas, como acidentes de trânsito e violência (412), segundo as informações mais recentes do DataSUS, do Ministério da Saúde.

As cifras são tristemente eloquentes também no número de contaminados, de 291,6 mil oficialmente contabilizados até esta quarta-feira (20), o que faz o Brasil saltar de sexto para terceiro lugar no ranking mundial, atrás apenas de EUA (1,5 milhão) e Rússia (299 mil). Um de cada sete novos casos no mundo acontece aqui.

Outra marca lamentável foi atingida nesta semana —pelo governo Jair Bolsonaro. Ao empossar um coronel do Exército como seu número dois, o ocupante interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, somou 17 militares nomeados, de qualificação ignorada, apenas nos últimos dias. É o que o humorista José Simão chamou de “Milistério”.

Blagues à parte, vai sendo desmontado aos poucos o quadro técnico organizado pelo ex-ministro Henrique Mandetta, a maioria com experiência na gestão da saúde pública federal, celebrizada em entrevistas coletivas diárias pelo uso dos coletes pretos do SUS.

A militarização começou já na gestão do sucessor de Mandetta, Nelson Teich, o Breve, cujas únicas marcas nos 29 dias de atuação terão sido o semblante sombrio e a tutelagem verde-oliva. Mas esta não se restringe à pasta.

Segundo levantamento mais recente deste jornal, feito no fim de 2019 por meio da Lei de Acesso à Informação, eram 2.500 militares em cargos de chefia ou assessoramento no governo, um recorde desde a redemocratização do país.

O número, possivelmente maior hoje, não inclui o próprio presidente Jair Bolsonaro, um tenente indisciplinado e conspirador que se tornou capitão ao ser obrigado a deixar as fileiras do Exército, seu vice, general Hamilton Mourão, e 9 de seus 22 ministros atuais.

O caso da Saúde é o mais visível. Causa alarme a presença cada vez maior de fardados numa pasta que deveria ser o centro científico e estratégico do combate à pandemia que vitimiza e empobrece uma geração no Brasil e no mundo.

Ao trocar a experiência na coisa pública pela obediência cega e a priorização da logística, Bolsonaro nem sequer disfarça seu objetivo de fazer do ministério um empório de distribuição da cloroquina e da hidroxicloroquina, suas obsessões irracionais.

As drogas —de eficácia ainda não comprovada no combate aos efeitos do coronavírus em sua fase mais branda e com efeitos colaterais importantes— tornaram-se a bandeira do governo e, desde a saída de Mandetta, sua única resposta visível à pandemia.

Nesta quarta, após determinação presidencial, o ministério divulgou documento que amplia a possibilidade de uso dos medicamentos para paciente com sinais e sintomas leves. Até então, o protocolo oficial os recomendava somente para casos graves e com monitoramento em hospitais.

No cálculo bolsonarista, não chancelado por nenhum estudo sério e não adotado por nenhum país do mundo até agora, a disseminação do medicamento levaria a uma diminuição dos casos, o que possibilitaria a implantação de um isolamento seletivo (idosos e grupos de riscos, por exemplo), com retomada das atividades normais pelo resto da população e consequente recuperação econômica.

A preocupação com a reabertura das empresas é legítima, e os governos deveriam de fato estar preparando seus planos de abandono gradual das restrições. Entretanto o presidente apequena a discussão, contaminando-a com o vírus da política inconsequente.

Até papagaio bate continência

Nunca, desde abril de 1985, as Forças Armadas foram usadas de maneira tão escancarada em favor de um projeto político. E nunca, em toda a história do Brasil, cederam tão docilmente. A ocupação das estruturas do Executivo por militares já depõe sobre a subserviência das forças ao presidente Bolsonaro. Não se trata de disciplina, de obediência ao comandante em chefe, que podem ser até a desculpa oficial, mas é porque há uma compensação. Com esse loteamento de cargos, Jair Bolsonaro interfere à vontade em todas as instâncias de poder militar, sobretudo no Exército.

Não fosse assim, sua ordem para a revogação de três portarias do Comando Logístico do Exército que estabelecem controle, identificação e rastreabilidade de armas e munições jamais passaria. Passou e foi mais um dos muitos ataques de Bolsonaro ao Estatuto do Desarmamento, que o Ministério Público Federal denunciou por inconstitucional. O presidente já baixou diversos decretos autorizando porte, aumentando volume de compra de munições, reduzindo idade e ampliando áreas para uso de armas de fogo. Quase todos foram revogados depois de reconhecidas suas inconstitucionalidades. 

Um desses decretos aumentava de 50 para 5.000 o número de munições que poderiam ser compradas anualmente por qualquer pessoa que tivesse arma registrada. Ela autorizava a compra de pouco mais de 2 bilhões de balas por ano, permitindo que se dessem quase 6 milhões de tiros a cada dia no Brasil. Caiu, claro. Em outro, Bolsonaro flexibilizava de tal forma a lei de compra de armas que um cidadão como você e eu poderia ir ao mercado e comprar um fuzil para defesa pessoal. Há quem veja nisso apenas o atendimento de uma pauta da turma da bala. Ma há os que veem mais do que isso. 

Haveria um projeto em curso para armar e municiar pessoas e grupos que apoiam o presidente? O fato é que as pessoas estão cada vez mais à vontade para portar armas. No acampamento paramilitar da Esplanada dos Ministérios há gente armada, como revelou a líder do grupo, Sara Winter. Ela disse que as armas servem para o grupo se defender. Se defender de quê? Todos os acampados de Brasília são radicais antidemocráticos e atacam sistematicamente o Congresso, o Supremo e a imprensa, e muitos são membros efetivos ou reformados de forças militares.

Nesse sentido, os milhares de cargos federais entregues a militares, suas famílias e seus amigos se transformam em motivadores do apoio a Bolsonaro. Além de membros das três Forças Armadas, há cargos ocupados por oficiais e praças da ativa ou da reserva das forças auxiliares estaduais, como PMs e Bombeiros, e por delegados e agentes das polícias Civil, Federal e Rodoviária. A aposta é consolidar de tal maneira a presença militar e policial nas estruturas do poder que qualquer solavanco que ameace esses empregos se transforme num gatilho de defesa do governo. 

Eles estão por todos os lados, nos ministérios, nas autarquias, nas estatais, nos bancos oficiais. Mas o caso do Ministério da Saúde é exemplar. Lá há tantos militares em cargos de chefia, 18 segundo contabilidade do GLOBO, que até papagaio bate continência. A expressão é do falecido escritor Joel Rufino, se referia à antiga CBD, Confederação Brasileira de Desportos e dava conta da militarização da seleção brasileira sob o comando do almirante Heleno Nunes. Na Saúde do general Pazuello ocorre o mesmo. 

A explicação de que são bons porque são disciplinados é mais esfarrapada que pano de chão velho. Ninguém é melhor em qualquer coisa apenas porque foi ou é militar. Com certeza, pode-se garantir apenas que os militares são melhores em ordem unida. Fora isso, podem ser melhores ou piores, de acordo com a formação acadêmica de cada um. O que está ocorrendo sob o manto da eficiência militar é a distribuição de cargos com salários que variam de R$ 10 mil a R$ 39 mil. E, nas ruas, colegas de farda, amigos e parentes armados e municiados servem de apoio. Assim Bolsonaro se protege, dando boquinhas aos militares e bocarras ao centrão.

Pensamento do Dia


O pilantra, o corrupto e o burro

Talvez o leitor mais otimista não concorde comigo, mas devo dizer que, salvo algumas exceções, há três tipos de políticos e governantes: os corruptos, os pilantras e os burros. Uso a palavra pilantra em respeito às senhoras, o correto seria um termo que envolve progenitoras e a profissão mais antiga do mundo. De qualquer maneira o PF — prato feito, é claro — da política atual se faz com os três. Eles, às vezes, se misturam: existem corruptos com pitadas de burro, assim como burros com um toque de pilantra, mas é só uma característica que traz fama ao político.

Os corruptos existem em grande número, dos mais variados tipos, mas a maior parte — por incapacidade, não por falta de vontade — fica só nas jogadas rasteiras. Só os mais espertos — por assim dizer — conseguem as grandes verbas e as comissões polpudas. São também os que percebem que se roubarem todo o dinheiro de uma vez o governo quebra e se perdem as negociatas. É a sabedoria do parasita e do sanguessuga. Também têm consciência de que, se o roubo for espalhafatoso demais acabarão, cedo ou tarde, na cadeia. Não à toa estão por aí desde sempre. Como chegam ao poder? Pagando, é claro. Com o seu dinheiro.

Já os pilantras são um grupo menor em número, porém maior na influência. São os que não têm ética alguma, prometem e não cumprem, dizem uma coisa e fazem outra e mentem, muito, sempre. Também dependem da esperteza, usada em proveito próprio para disfarçar as reais intenções. Como todos os picaretas, são simpaticíssimos e carismáticos. Alguns, de tão safados, acabam virando folclóricos e terminam a vida escrevendo livros e dando palestras. Não chegam ao poder porque, na verdade, nunca saíram dele.

Finalmente, os burros.

Sei o risco que corro ao falar mal deles, a categoria é muito unida, e o sindicato dos idiotas costuma atacar com fúria seus desafetos. No entanto, devo dizer que são os piores: o corrupto pode até trabalhar a favor do país, ainda que a sua motivação seja ter mais o que roubar. O pilantra pode, por algum interesse escuso, atuar em prol de alguma causa justa, mas o governante burro, pela sua natureza, não descansa. É obtuso 24hs por dia, sete dias por semana. Não tem férias nem dia santo. Todo dia é dia, toda hora é hora para mais uma estupidez.

Como um idiota acaba no poder, perguntará o leitor, afinal ninguém tem um currículo mais insignificante que um imbecil. Acontece que às vezes o corrupto exagera e o pilantra perde a mão. É quando o eleitor conclui que está sendo enganado. Ele grita “Basta!” e aponta para o primeiro burro que estiver passando: vamos votar naquele ali, ele nunca fez nada — os eleitores sempre têm razão —, portanto será um excelente governante.

Claro que, com sua malandragem característica, o corrupto e o pilantra enxergam no poder do burro mais uma oportunidade: podem voltar ao seu ofício sem serem incomodados, as imbecilidades e estultices proferidas e praticadas pelo burro criam tanta confusão que ninguém liga para mais nada.

Para não estragar o dia do leitor mais otimista, não vou especular sobre qual deles está no poder. Melhor brindar à vida: vai uma cloroquina aí?
Leo Aversa 

Minorias de guerra

Minorias, que contra toda a razão e civilização, alimentam para isso castas guerreiras, explicáveis no tempo dos assírios, mas anacrônicas e absurdas nesta era
Miguel Torga, 'Diário"

Que papelão, Forças Armadas

É madrugada de quarta-feira, dia 20 de maio de 2020. O dia começou há pouco: digito essa frase às 00h37. Há oficialmente 271.885 casos confirmados de Covid-19 no Brasil e 17.983 mortes, mas o que o Ministério da Saúde diz não se escreve, até porque não temos ministro, não temos equipe no segundo escalão, não temos políticas federais minimamente confiáveis, não temos testes suficientes, não temos nada, nada, nada — além de alguns milicos brincando de médico e da certeza absoluta de ter o pior governo possível no pior momento imaginável.

A situação é tão desesperadora que, nesse momento, o coronavírus é o menor dos problemas do Brasil. Já se prevê uma vacina em futuro razoável, adivinham-se possíveis anticorpos aqui e ali, a Ciência funciona e, mais cedo ou mais tarde, estaremos livres disso, assim como ficamos livres de outras doenças — a peste bubônica, várias gripes, a paralisia infantil, a meningite, a Aids. Elas não desapareceram, mas já as conhecemos e as combatemos com eficiência suficiente para não temê-las mais (ou não temê-las tanto).


Mais difícil vai ser encontrar uma cura para a maldição que rege Brasília. E que não, não vem de 2018, embora nesse ano tenha chegado a um patamar nunca antes atingido na História desse país. Saímos cheios de esperança da ditadura — para cair em Sarney e Collor. Elegemos Fernando Henrique — mas ele nos legou a reeleição, essa sim a verdadeira Herança Maldita, que fez com que todos os que se sentassem depois naquela cadeira desgraçada sonhassem em se fincar no poder até o fim dos tempos (ou, pelo menos, até o fim das reeleições possíveis).

De desastre em desastre viemos dar aqui: um sociopata genocida apoiado por militares.

Não é difícil entender Bolsonaro. Ele é um Napoleão de hospício com poder real, com a caneta que é, afinal, o sonho de todo Napoleão de hospício. Numa sociedade saudável, porém, Napoleões de hospício estão, obviamente, no hospício, e não na Presidência da República.

O Napoleão de Hospício é doido, mas as pessoas que estão ao seu redor não são.

Por isso, paradoxalmente, é tão difícil entender o fenômeno Bolsonaro, sobretudo para além das eleições. Eleitores desesperados (ou seja, quase todos, sempre) fazem qualquer coisa, de entregar países a tiranos ou cidades a rinocerontes. Mas uma coisa é entregar uma cidade a um rinoceronte, outra deixá-lo governar e, ainda por cima, incentivar os seus arroubos.

Cacareco continuou no zoológico; Jair Bolsonaro é presidente.

Os militares passaram os últimos 35 anos tentando mudar a imagem sombria que conquistaram durante a ditadura. Ainda que não possam reescrever a História, tiveram êxito. Respeitaram a constituição, trabalharam muito e falaram pouco. As pesquisas de opinião mostram que reconquistaram a confiança da população.

Agora, como se 1964 não tivesse acontecido nunca, começam a sair dos quartéis e se aliam a um homem que foi afastado das Forças Armadas por indisciplina e deslealdade.

É fácil entender o Napoleão de hospício; é fácil até entender a sua família, porque genética é, como sabemos, uma coisa hereditária. Mas é impossível entender os altos oficiais que se mantém ao seu lado, e que não se envergonham em bater palma para o maluco dançar.

Que papelão, Forças Armadas, que papelão.

A cloroquina e o crime de responsabilidade

A pressão do presidente Jair Bolsonaro para que o Ministério da Saúde altere, contra as evidências e estudos médicos, o uso da cloroquina em pacientes com covid-19 é uma patente violação do direito à saúde, tal como previsto na Constituição de 1988. “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, estabelece o art. 196 da Carta Magna.

A manobra do presidente é manifestamente perversa, por insistir numa medida com graves riscos para a saúde da população. Nada mais nada menos, Jair Bolsonaro quer que o Ministério da Saúde atue em sentido contrário ao que preconiza a medicina. Até Nelson Teich, que assumiu a pasta da Saúde assegurando “alinhamento completo” com o presidente, se recusou a assinar o novo protocolo.

Mas isso não é obstáculo para Jair Bolsonaro. Se médicos não podem assinar a mudança de orientação no uso da cloroquina, por ferir a ética profissional, o presidente da República quer valer-se do interino, Eduardo Pazuello, que não é médico – e sim um general de brigada intendente –, para obter a desejada aquiescência a seus arbítrios. À plena luz do dia, Jair Bolsonaro utiliza-se do cargo para causar dano à saúde da população, em escancarado exercício abusivo do poder.


Vale notar que a insistência de Jair Bolsonaro no uso da cloroquina não causa danos apenas à saúde da população. Ela coloca em risco a própria permanência de Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto, uma vez que a insistência em agredir a saúde da população, prescrevendo algo que afronta as evidências médicas, se encaixa inequivocamente em uma das descrições dos crimes de responsabilidade previstos na Lei 1.079, de 1950.

Assim estabelece o seu art. 7.º: “São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: (9) violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição”. Editada em 1950, a lei refere-se aqui a dois artigos da Constituição de 1946. O primeiro protege os direitos fundamentais – direito à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade – e o outro, os direitos sociais, incluindo a saúde. A Constituição de 1988 ampliou e tornou ainda mais explícito esse direito.

No caso, a conduta do presidente da República não viola o direito à saúde por uma limitação de recursos financeiros, falta de infraestrutura, ausência de mão de obra qualificada ou alguma circunstância condicionante da atuação do poder público. Não é que o Estado, em razão de alguma limitação, se mostre incapaz de prover atendimento médico adequado à população. O empenho de Jair Bolsonaro para ampliar o uso da cloroquina em pacientes com covid-19 é de outra ordem e, portanto, de outra gravidade. O que se vê é o uso insistente e arbitrário do poder presidencial para pôr em risco a saúde da população.

É de tal forma desastrosa, do ponto de vista médico, a ampliação do uso da cloroquina que governadores ouvidos pelo <b>Estadão</b> disseram que ignorarão o novo protocolo, se houver. Além dos graves efeitos colaterais da cloroquina e da ausência de comprovação de sua eficácia no tratamento da covid-19, o novo protocolo não contribuiria para solucionar os problemas principais das atuais circunstâncias, por exemplo, a falta de respiradores, leitos e testes.

Os fatos são contundentes: o governo de Jair Bolsonaro é completamente disfuncional. E de pouco adianta a presença de pessoas oriundas das Forças Armadas, seja com experiência em coordenação, logística ou enfrentamento de crise, se a orientação que prevalece no Executivo federal são os delírios de Jair Bolsonaro. Não se pode tapar o sol com peneira. Não há racionalidade e tampouco moderação em um governo no qual o presidente da República tenta obrigar o Ministério da Saúde a emitir uma orientação que inequivocamente coloca em risco a saúde da população. É o poder direcionado a causar dano, e isso é crime.