segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Pensamento do Dia

 


Acho que a realidade morreu

Os The Yes Man ficaram famosos criando eventos falsos, nos quais assumem a identidade de políticos ou executivos de grandes companhias multinacionais. A dupla de geniais ativistas, ou artivistas, constituída por Jacques Servin e Igor Vamos, tem por objetivo denunciar, de forma satírica, todo tipo de injustiças sociais, ou projetos que ameacem a vida e o meio ambiente.

A ação mais recente da dupla ocorreu há poucos dias, em Lisboa, durante o Web Summit, evento sobre novas tecnologias, que reuniu na capital portuguesa mais de 70 mil participantes, de 153 países.

Os The Yes Man subiram ao palco principal da Web Summit, no passado dia 15, travestidos de DJ Marshmello e de um executivo da Adidas, chamado Aristide Feldhold. Sem que ninguém contestasse a falsa identidade dos dois, apresentaram um novo projeto da Adidas, o adiVerse, um mundo virtual onde os operários daquela conhecida marca de roupa desportiva poderiam ter tudo aquilo a que na vida real não têm acesso. O projeto incluiria o recurso a uma criptomoeda gerada por um chip implantado nos corpos dos trabalhadores, com o objetivo de rastrear a sua produtividade.


“Imaginem um lugar onde os trabalhadores, mesmo os mais pobres, possam ter tudo o que quiserem”, explicou o falso Aristide Feldholt: “onde os trabalhadores que não têm uma boa refeição por dia possam festejar o dia todo e a noite toda. Onde os trabalhadores possam educar e cuidar dos filhos menores, e onde, mesmo sem dinheiro, consigam viver vidas plenas.”

O fictício Feldhold concluiu o discurso falando sobre a ligação da marca alemã com o regime nazi e seus supostos abusos laborais nos dias de hoje. A multidão aplaudiu. Não aplaudiu a sátira — notem. Aplaudiu o projeto, acreditando ser real. Diversos participantes chegaram mesmo a elogiá-lo.

Releio as notícias sobre a intervenção dos The Yes Man sem saber se rio ou se choro. A sátira exagera uma determinada realidade — ridicularizando-a. Quando o público leva a sátira a sério, ou seja, quando se mostra disponível a aceitar como realidade a ficção mais fantasiosa, é porque a realidade caiu doente.

Talvez até já tenha morrido: a realidade.

A morte da realidade explicaria muita coisa que vem sucedendo neste nosso planeta nos últimos meses. Explicaria, por exemplo, a eleição do senhor Javier Milei, na Argentina.

Javier Milei parece, ele todo, incluindo o cachorro defunto a quem pede conselhos, uma invenção maravilhosa dos The Yes Man. A gente vê aquele sujeito desgrenhado a quebrar, à martelada, uma maquete do Banco Central, e pensa logo nos The Yes Man. Veja-o de motosserra na mão, gritando que vai cortar relações com a China, e que o Brasil é um país comunista, e pensa nos The Yes Man. Milei é a sátira do ultraliberalismo, na sua versão mais grosseira e mais anedótica.

Admitindo que a realidade tenha falecido, e que já estejamos todos vivendo na sátira delirante dos The Yes Man, como Alice do outro lado do espelho, a grande questão é a de saber se pode existir ainda outra ficção dentro da ficção — um espelho no interior do espelho. Se alguém souber onde fica esse segundo espelho digam-me, porque eu estou disposto a saltar.

Por que existem mulheres e crianças palestinas presas em Israel

A troca de 50 reféns capturados pelo Hamas durante o massacre de civis durante o dia 7 de outubro pela libertação 150 mulheres e crianças palestinas presas em Israel levanta uma questão que merece um olhar mais atento. Afinal, por que mulheres e crianças são mantidas em cárcere na maior democracia do Oriente Médio? Boa parte do mundo ocidental desconhece o assunto ou pouco repercute.

Essas mulheres e crianças que serão trocadas por reféns se encontram encarceradas por conta chamadas prisões administrativas, que permitem ao estado judeu deter quem considera necessário sem uma acusação formal e por períodos indefinidos.

“As prisões administrativas não requerem provas, tampouco acusações claras; na maioria das vezes não há acusação alguma”, afirmou ao Extra Classe o professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Bruno Huberman.

Segundo o professor – ele próprio judeu e crítico das políticas praticadas por Israel – não são poupadas mulheres, crianças ou idosos.


Pelo menos 350 pessoas foram presas desta forma em 5 de abril passado quando a polícia de Israel invadiu a Mesquita de al-Aqsa, em Jerusalém, durante o mês sagrado do Ramadã para os muçulmanos.

Na ocasião, as prisões foram condenadas por líderes de todo o mundo árabe e muçulmano e ocorreram durante a dispersão de protestos que estavam sendo realizados para impedir que grupos extremistas judeus realizassem o abate de cabras no complexo da mesquita, um antigo ritual do feriado da Páscoa que já não já vem mais sendo praticado pela imensa maioria dos judeus israelenses. O episódio teve ampla cobertura da imprensa local e internacional, tendo repercutido no mundo inteiro via Reuters, France-Presse e CNN.

Para a jornalista Soraya Misleh, coordenadora da Frente em Defesa do Povo Palestino, o sistema de encarceramento por parte de Israel é intrínseco ao projeto que denomina de colonização e apartheid sionistas.

“Palestinos e palestinas são presos políticos e encarcerados pelo simples fato de existirem enquanto palestinos, o que também é resistência”, afirma ela que é filha de palestinos, mas nasceu no Brasil.

Tanto o professor Huberman quanto Soraya dizem que a várias crianças palestinas são presas por se revoltar e atirar pedras em tanques ou nas forças de ocupação israelense.

“Podem ficar até 20 anos nos cárceres, enfrentando tortura, maus tratos, negligência médica”, registra Soraya ao lembrar que não é de hoje que existem relatos de violações dos direitos humanos de palestinos sob detenção de Israel.

“No caso das mulheres e meninas, intimidação e ameaça de agressão sexual e estupro são parte das terríveis torturas, como muitos relatos demonstram”, completa a jornalista.

Na realidade, denuncia Soraya, “protestar contra a ocupação, denunciar a limpeza étnica e o genocídio nas redes sociais, simplesmente mandar uma mensagem sobre a situação brutal, ser familiar ou amigo de alguém estão entre as ‘razões’ para que (palestinos) sejam presas e presos”.

Para Huberman, se de um lado muito se fala dos “reféns do Hamas”, de outro, é similar a situação dos presos administrativos de Israel.

“Prisão administrativa dá a ‘legitimidade’ de algo que é ilegal e é semelhante a sequestrar um refém”, entende.

Dados de organismos internacionais dão conta de que o número de palestinos detidos administrativamente quase que dobrou desde o ataque feito pelo Hamas em 7 de outubro.

Assim, informa Soraya, já seriam algo como 250 crianças e 95 mulheres nessa condição.

“Até então eram 5.200 (presos), incluindo 170 crianças e 33 mulheres. Vale observar que há dados de que em média 700 crianças são presas todos os anos pela ocupação israelense”, revela.

Ela vê a libertação das 150 mulheres e crianças como algo importante, mas não suficiente.

Lembrando que se trata de um acordo de pausa nos bombardeios, Soraya afirma: “Deve-se ampliar a pressão e mobilização pelo fim do apartheid, colonização, limpeza étnica e genocídio, o que se combina com a demanda pela libertação de todos os presos políticos palestinos”.

Os ideais serão algo que se possa alcançar?

Venho manifestando já por vezes minha opinião de que cada povo e até cada indivíduo, em vez de sonhar com falsas “responsabilidades” políticas, devia refletir a fundo sobre a parte de culpa que lhe cabe da guerra e de outras misérias humanas, quer por sua atuação, por sua omissão ou por seus maus costumes; este seria provavelmente o único meio de se evitar a próxima guerra. E por isso, não me perdoam, pois se julgam todos, sem dúvida, inocentes: o Kaiser, os generais, os grandes industriais, os políticos, os jornalistas... nenhum deles tem absolutamente nada de que recriminar-se, ninguém tem culpa alguma! Poder-se-ia até pensar que tudo foi melhor assim para o mundo, embora alguns milhões de mortos estejam embaixo da terra. E saiba, Hermínia, embora esses artigos ignominiosos não me possam atingir, às vezes me entristecem. Dois terços da gente do meu país leem esta espécie de jornal; leem de manhã e à noite coisas escritas neste tom, são trabalhados permanentemente, incitados, açulados; semeia-se neles o descontentamento e a maldade, e a meta final de tudo isto é outra vez a guerra, a próxima guerra, que já está chegando e que sem dúvida alguma será muito mais horrenda do que a última. Tudo isto é claro e simples, qualquer pessoa pode compreendê-lo; com uma hora de meditação todos poderiam chegar ao mesmo resultado. Mas ninguém quer agir assim, ninguém quer evitar a próxima guerra, quer livrar-se nem livrar a seus filhos da morte aos milhares, nem quer parar um instante e pensar voluntariamente. Uma hora de reflexão, um momento de entrar em si mesmo e perguntar a parte de culpa que lhe cabe nesta desordem e na maldade que impera no mundo... mas ninguém quer fazê-lo! E assim tudo continua como estava e a próxima guerra vai-se preparando cada dia que passa, com o auxílio de milhares e milhares de pessoas diligentes. Estas coisas sempre me desesperaram: para mim não existe “pátria”, não existe “ideal” algum. Tudo isto não passa de frases inculcadas por aqueles que preparam a próxima carnificina. Não tem sentido pensar ou escrever algo que seja humano, de nada vale ter boas ideias na mente... são duas ou três pessoas que agem assim em compensação, há milhares de jornais, de revistas, de conferências, reuniões públicas ou secretas que, dia após dia, insistem no contrário e acabarão por alcançá-lo. Hermínia permaneceu ouvindo com interesse.

— Sim — disse em seguida — você tem razão. Naturalmente haverá outra guerra; não é preciso ler nos jornais para saber disto. É certo, embora isso nos entristeça, que o homem, apesar de tudo e de todos, apesar do que possa fazer, o homem tem inevitavelmente de morrer. A luta contra a morte, meu caro Harry, é sempre uma coisa bela, nobre, prodigiosa e digna, da mesma forma que a luta contra a guerra. Mas há de ser sempre uma quixotada sem esperanças.

— Talvez seja verdade — exclamei enérgico — mas com verdades semelhantes a esta de que temos todos de morrer e que, por conseguinte, tudo é igual, é que convertemos a vida em algo monótono e estúpido. Desta forma teremos de renunciar a tudo, ao espírito, às aspirações; teremos de destruir a Humanidade, teremos de permitir que reine o egoísmo e o dinheiro e esperar a próxima guerra com um copo de cerveja à mão.

Estranho foi o olhar que Hermínia me dirigiu; um olhar de regozijo, cheio de ironia e malícia, de compreensão e camaradagem, mas também cheio de arrogância, de consciência e de profunda seriedade.

— Isto não se aplica a você — disse em tom maternal. — Sua vida não será monótona nem estúpida, embora saiba que sua luta é inútil. É muito mais lisonjeiro, Harry, lutar-se por alguma coisa bela e ideal e saber ao mesmo tempo que não se conseguirá alcançá-la. Os ideais serão algo que se possa alcançar? Viveremos para acabar com a morte? Não, vivemos para temê-la e também para amá-la, e precisamente por causa da morte é que nossa vida vez por outra resplandece tão radiosa num breve instante.

Hermann Hesse, "O lobo da Estepe"

A guerra e a terra

A guerra, retumbante fracasso da Política, é uma severa agressão ao Planeta em contraste com as sábias palavras de Francisco na Encíclica Laudato si, Louvado sejas, cujo subtítulo: sobre o Cuidado da Casa Comum (2015) exaltam os cuidados com a Terra.

O Professor Clovis Cavalcanti, economista ecológico avant la lettre, recomendou uma leitura reflexiva e me disse, feliz, que tínhamos um Papa que compreendera a dimensão do cântico de São Francisco de Assis ao pregar: “a nossa casa comum se pode comparar ora a uma Irmã, com que partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços”.

Que me perdoem os cientistas,, dedicados pesquisadores, notáveis filósofos, pensadores e os bem-intencionados líderes empresariais e políticos, mas o texto papal é insuperável. Revoluciona a base conceitual dos padrões civilizatórios contemporâneos e propõe uma relação fraterna entre o Homem e a Natureza de modo a assegurar equilíbrio e integridade planetária para as novas gerações.


O gatilho da releitura foi um cotidiano repleto de violências da guerra que nos chegam todos os dias, ao vivo e em cores, exemplos do extremo desamor humanitário. A destruição em larga escala do meio ambiente se soma também, às pequenas e grandiosas maldades, criminosas, que vão do corte da árvore, à poluição do ar, à contaminação da água e ao envenenamento da terra como se o papel da natureza se limitasse a alimentar um sistema de produção capaz de atender o consumo desenfreado e a ambição incontida.

Ao lado estrondoso da guerra, também, nos chegam eventos em proporções nunca vistas de enchentes, incêndios, vendavais, calor intenso e frio paralisante, ameaçando o ritmo da natureza e, por consequência, colocando em risco a biodiversidade, a cadeia produtiva e a segurança alimentar.

Ora, não foi por falta de aviso das instituições internacionais e de vozes esclarecidas que o abuso da natureza por uma equivocada dominação humana e o uso desenfreado dos recursos naturais, afetaria o clima, acelerando mudanças e provocando graves emergências climáticas. Tudo com base científica, ignorada pelo obscuro, delinquente negacionismo e desmedida ganância do enriquecimento.

É inegável que as inovações tecnológicas e os avanços da ciência ajudam, a mitigar os impactos, mas estão longe de ser um Deus ex-machina. O verdadeiro poder está na consciência das pessoas; é um impulso de dentro para fora que enxergue uma relação amorável com cada pedaço e cada ser do universo.

Neste desafio de profunda transformação cultural, há uma componente vital: a ética do bem comum. Inviável trilhar este caminho sem a companhia de um regime político que assegure a força da alteridade, da solidariedade, do diálogo e dos consensos. Este regime político é a democracia.

A guerra e a autocracia são inimigas do futuro da Terra.

Neste sentido, o argumento democrático vem sofrendo ameaças em decorrência do avanço da polarização política, do discurso antistabilshment, apropriado pelo populismo extremista. É uma doença que tem sérios sintomas endêmicos. Os aliados da antidemocracia, revela recente e farta literatura política, promovem a erosão das instituições e destroem o regime com os próprios mecanismos que dão sustentação às democracias liberais. Sem tanques, a arma é a cooptação e desmoralização dos mecanismos da representação popular até o capítulo final da captura do poder. A Hungria é um caso exemplar.

A propósito, os autores, Levitsky e Ziblatt, de Como as democracias morrem, (Zahar, 2018) lançaram uma obra atualíssima Como salvar a democracia (publicada no Brasil no dia 17 do corrente mês pela Editora Zahar), com um prefácio comparativo das situações entre o Brasil e os EUA, enfatizando ao longo da obra o fenômeno trumpismo/republicanos e um olhar comparativo da ascensão dos extremismos mundo afora.

De outra parte examinam com acurácia algumas circunstâncias a serem enfrentadas: a banalização do autoritarismo, a semilealdade, atributo dos personagens aproveitadores de qualquer espaço de poder, a tirania das minorias (a reversão da “tirania da maioria”).

E ao constatar a perda de prestígio da democracia, os autores defendem estratégias capazes de lutar contra o perigo autoritário, entre elas, coalizões centristas, democracia militante e defensiva, reformismo institucional, reafirmando que “a cura de todos os males da democracia é mais democracia”.

Sem meias palavras, os autores concluem com firmeza: nossas instituições não salvarão as democracias, temos que salvá-las nós mesmos; ou seremos democracias multirraciais no século XXI ou não seremos democracias.