A ação mais recente da dupla ocorreu há poucos dias, em Lisboa, durante o Web Summit, evento sobre novas tecnologias, que reuniu na capital portuguesa mais de 70 mil participantes, de 153 países.
Os The Yes Man subiram ao palco principal da Web Summit, no passado dia 15, travestidos de DJ Marshmello e de um executivo da Adidas, chamado Aristide Feldhold. Sem que ninguém contestasse a falsa identidade dos dois, apresentaram um novo projeto da Adidas, o adiVerse, um mundo virtual onde os operários daquela conhecida marca de roupa desportiva poderiam ter tudo aquilo a que na vida real não têm acesso. O projeto incluiria o recurso a uma criptomoeda gerada por um chip implantado nos corpos dos trabalhadores, com o objetivo de rastrear a sua produtividade.
“Imaginem um lugar onde os trabalhadores, mesmo os mais pobres, possam ter tudo o que quiserem”, explicou o falso Aristide Feldholt: “onde os trabalhadores que não têm uma boa refeição por dia possam festejar o dia todo e a noite toda. Onde os trabalhadores possam educar e cuidar dos filhos menores, e onde, mesmo sem dinheiro, consigam viver vidas plenas.”
O fictício Feldhold concluiu o discurso falando sobre a ligação da marca alemã com o regime nazi e seus supostos abusos laborais nos dias de hoje. A multidão aplaudiu. Não aplaudiu a sátira — notem. Aplaudiu o projeto, acreditando ser real. Diversos participantes chegaram mesmo a elogiá-lo.
Releio as notícias sobre a intervenção dos The Yes Man sem saber se rio ou se choro. A sátira exagera uma determinada realidade — ridicularizando-a. Quando o público leva a sátira a sério, ou seja, quando se mostra disponível a aceitar como realidade a ficção mais fantasiosa, é porque a realidade caiu doente.
Talvez até já tenha morrido: a realidade.
A morte da realidade explicaria muita coisa que vem sucedendo neste nosso planeta nos últimos meses. Explicaria, por exemplo, a eleição do senhor Javier Milei, na Argentina.
Javier Milei parece, ele todo, incluindo o cachorro defunto a quem pede conselhos, uma invenção maravilhosa dos The Yes Man. A gente vê aquele sujeito desgrenhado a quebrar, à martelada, uma maquete do Banco Central, e pensa logo nos The Yes Man. Veja-o de motosserra na mão, gritando que vai cortar relações com a China, e que o Brasil é um país comunista, e pensa nos The Yes Man. Milei é a sátira do ultraliberalismo, na sua versão mais grosseira e mais anedótica.
Admitindo que a realidade tenha falecido, e que já estejamos todos vivendo na sátira delirante dos The Yes Man, como Alice do outro lado do espelho, a grande questão é a de saber se pode existir ainda outra ficção dentro da ficção — um espelho no interior do espelho. Se alguém souber onde fica esse segundo espelho digam-me, porque eu estou disposto a saltar.
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