sexta-feira, 7 de abril de 2023

Ele nos ensinou a odiar

Em minha última coluna, escrevi que Bolsonaro corrompeu, estuprou e prostituiu instituições civis e militares. Faltou espaço para acrescentar o que já me passava pela cabeça e que, poucas horas depois, a tragédia de Blumenau —crianças assassinadas a machadadas numa creche— viria confirmar: o embrutecimento e a desumanidade que ele nos legou. Bolsonaro conseguiu acrescentar um fator novo à violência a que já estávamos habituados. Acrescentou o ódio.

Nossa violência até então tinha cenários, personagens e motivações previsíveis: latrocínio, tiroteios em comunidades, balas perdidas, chacinas em prisões, ajuste de contas, queima de arquivo, crimes passionais, disputa de terras, extermínio de indígenas, assassinato de missionários e ecologistas —quase sempre, coisa de profissionais. O povo fazia parte desse horror, mas, basicamente, como vítima. Não mais. Bolsonaro ensinou os amadores a odiar.

Em quatro anos, o Brasil se reduziu a um puxadinho da Taurus. As pessoas se armaram. Trabucos saltam dos cintos nos ambientes mais inesperados. Pistolas, fuzis e metralhadoras abarrotam o porão de políticos, ex-policiais e cafajestes comuns, alguns, bem a propósito, vizinhos de condomínio de Bolsonaro. A banalização desses arsenais passou uma mensagem para o brasileiro comum: a bala é um meio de expressão. À falta dela, o porrete, o punhal, a picareta, a machadinha, alguns, aliás, usados no 8 de janeiro.

Daí a escalada de crimes contra mulheres, pretos e trans, apenas porque são "diferentes". E, não por acaso, várias escolas têm sido cenário desses surtos de ódio. É o ódio à educação, à razão —que Bolsonaro, também não por acaso, levou quatro anos tentando destruir.

E é disso que nasce o ódio mais perigoso: aquele que não se sabe contra quem ou por quê, nem precisa saber —mas que, como Bolsonaro ensinou, agora temos o direito de expressar com uma arma.
Ruy Castro

A resistência à barbárie na Amazônia

Em janeiro de 2020, dois cidadãos americanos, Frank Giannuzzi e Steven Bellino, além de um brasileiro, Brubeyk Nascimento, apresentaram-se na alfândega do aeroporto de Manaus para registrar a documentação de carga a ser embarcada por eles, dias depois, com destino aos Estados Unidos.

Declararam que transportariam, em mãos, 35 quilos de ouro em barras avaliadas em R$ 10 milhões. A Receita liberou a carga, mas, ao voltarem para o embarque, as barras foram apreendidas e os três, detidos. Entre a declaração de transporte e o embarque, o funcionário da Receita acionou a Polícia Federal.

Nada batia. A história juntava dois agentes financeiros que atuavam em Wall Street e um brasileiro com endereço em Manaus, telefone com DDD de Goiânia e carga adquirida em São Paulo. Só o embarque por Manaus fazia sentido. Era por ali que se escoava o ouro adquirido no garimpo ilegal.


Naquela semana, a Superintendência da PF em Manaus havia recebido um equipamento importado da Alemanha capaz de fazer a análise instantânea da composição química de materiais. Se as barras se originassem da reciclagem de joias, o percentual de ouro não ultrapassaria 75%, mas o detector alemão cravou outro resultado: 98% de pureza.

Os policiais não tiveram dúvida de que tinham em mãos um produto do garimpo ilegal. Apesar da comoção internacional despertada pelo crime, aqueles contrabandistas eram a prova de que o ouro brasileiro continuava a fazer fortunas também no exterior.

A história está contada em “Selva - madeireiros, garimpeiros e corruptos na Amazônia sem lei” (Intrínseca, 2023), do delegado da PF Alexandre Saraiva. O autor ainda desafiou a justiça, que, além de mandar soltar os contrabandistas, liberou, por decisão do ministro do Superior Tribunal de Justiça Ney Bello, as barras de ouro.

Saraiva mandou uma equipe tirar as barras dos cofres da Caixa Econômica Federal, onde supôs que o gerente não resistiria a um oficial de justiça, e conseguiu que a Agência Nacional de Mineração ordenasse uma apreensão administrativa que não estaria ao alcance da decisão judicial. As barras estão no cofre da Superintendência da PF no Amazonas, mas a disputa por sua posse continua nos tribunais. “Literalmente iríamos entregar o ouro ao bandido”, lembra Saraiva.

A experiência deu ao delegado a certeza de que a investida anunciada pelo Banco Central sobre a comercialização do ouro não vai dar em nada. O BC foi intimado a prestar informações ao Supremo, em ação proposta pelo PV e relatada pelo ministro Gilmar Mendes, sobre a aquisição de ouro pelas distribuidoras de títulos e valores mobiliários.

Na resposta enviada ao STF, o BC diz que está em busca de tecnologia adequada para que as informações relativas à origem do ouro fornecidas às DTVMs não seja feita apenas com base na boa-fé dos declarantes. Saraiva demonstra que a tecnologia já existe.

Antes mesmo que a tecnologia da composição química estreasse em Manaus, há três anos, já era possível cruzar as autorizações da Agência Nacional de Mineração e as imagens de satélite do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). Se houver autorização sem lavra é indício de “lavagem” de ouro ilegal. Sobram meios para conferir a documentação de origem por rastreamento científico.

Saraiva ainda ganhou proeminência, ao longo do governo Jair Bolsonaro, por ter liderado a maior apreensão de madeira ilegal do país, avaliada em R$ 130 milhões. Suficiente para carregar 7,5 mil caminhões, a apreensão resultaria na demissão de Ricardo Salles do Ministério do Meio Ambiente.

A operação é um dos capítulos mais ricos sobre o faroeste amazônico sob Bolsonaro. Nascido em São Gonçalo (RJ), em 1970, e tendo trabalhado os oito primeiros anos de sua carreira como policial federal no Rio, Saraiva viu o Estado chegar a um ponto hoje considerado de não retorno em relação ao crime organizado. Foi nesta rota que o governo Bolsonaro deixou a Amazônia, diz Saraiva.

O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, num território disputado por facções que se valem do garimpo ilegal nas terras indígenas para a compra de cocaína no outro lado da fronteira, é apenas a última das evidências de que o Brasil está a um passo de perder a Amazônia para o crime organizado.

A investigação conduzida por Saraiva demonstrou como Salles integrava um grupo que fornecia documentos fraudulentos à PF, dificultava a fiscalização ambiental e obstruía a investigação policial. Os relatórios da PF apontavam o uso da própria mãe, de quem Salles, hoje deputado federal pelo PL de São Paulo, é sócio, num escritório de advocacia, como “laranja” de atividades ilegais.

O relato dá conta, ainda, da mudança na postura do Comando Militar do Norte. Depois de auxiliar a PF na guarda das toras apreendidas, comunicou, repentinamente, que não poderia fazer a remoção da madeira.

Saraiva conduziu a operação sob o temor de que poderia ser afastado da Superintendência da PF no Amazonas a qualquer momento. Ciente de que poderia ser barrado pelo diretor-geral da PF, Paulo Maiurino, comunicou-lhe a denúncia contra o ministro 20 minutos depois de dar entrada no sistema eletrônico do STF. No dia seguinte, foi exonerado.

A superintendência no Amazonas foi o terceiro último cargo na região ocupado por Saraiva ao longo de uma temporada de dez anos iniciada em Roraima e com uma passagem ainda pelo Maranhão. Ao longo do período na região, deu-se conta das limitações do trabalho da PF. Em Manaus apreendeu toras registradas em nomes de empresas que, anos antes, havia autuado em Roraima.

Foi lá que entendeu como a distribuição de títulos de terras faz com que na Amazônia as propriedades rurais tenham que ser “empilhadas” para caberem nos limites territoriais dos Estados. A burla no registro fundiário é o primeiro passo na cadeia de fraudes que resultava na emissão indiscriminada de Documentos de Origem Florestal (DOFs) pelo Ibama. Isso se ampliou num momento em que, das 27 superintendências estaduais do Ibama, 24 foram parar nas mãos de coronéis da PM e uma nas de um coronel do Exército.

De posse desse documento, os proprietários obtêm uma autorização de desmate alegadamente para agricultura, mas, de fato, apenas para a extração da madeira. A atuação na região e o doutorado na Universidade Federal do Amazonas deram a Saraiva a certeza de que a agropecuária é apenas uma fachada para a indústria ilegal de extração de madeira.

O delegado vê o Brasil a caminho de repetir o desastre do Sudeste Asiático, que derrubou suas florestas para abastecer primeiro o Japão, depois o resto do mundo de madeira barata. Foi o esgotamento das reservas naquela região que levou à elevação do preço da madeira brasileira. Por isso, defende a moratória da extração de madeiras nativas. E espera que, um dia, um piso de mogno seja tão reprovável quanto hoje o é usar um casaco de peles.

Essa indústria não vicejaria sem a vista grossa da comunidade internacional que cobra a proteção das florestas mas importa madeira sem se ocupar de sua origem. Vide a Biblioteca Nacional em Paris. Templo de uma cultura enraizada do ambientalismo, o prédio, obra de François Mitterrand, usou 60 mil m2 de ipê.

Não se trata de uma infração do passado. Saraiva esmiuçou a regulamentação europeia e concluiu que as regras de importação de madeira na União Europeia são muito mais lenientes do que aquelas de produtos agropecuários brasileiros que enfrentam concorrência local.

Do embate com Salles lhe sobrou uma sindicância interna pelas entrevistas concedidas. Saraiva é tão confiante em decisão do Supremo que lhe garante o direito de se manifestar que escreveu “Selva”. Além da sindicância, o embate lhe rendeu também um convite do PSB do Rio para que disputasse a Câmara dos Deputados. Rejeitou fundo eleitoral ou partidário. Gastou R$ 5 mil do próprio bolso - R$ 1,5 mil com advogado, R$ 1,5 mil com o contador e R$ 2 mil com adesivos. Teve 16 mil votos.

Concluiu não ter vocação para a política. Chegou a participar da transição, quando sugeriu uma operação urgente na reserva dos Yanomâmis, que só acabaria acontecendo por causa da denúncia do site Sumaúma, em 20 de janeiro, e operações em portos e aeroportos para barrar o embarque de madeira ilegal.

Na montagem do governo, porém, não foi convidado a voltar à Amazônia ou a cargo de confiança. Permanece em Volta Redonda. Não deixa de ser verdade que o delegado queira ficar perto de sua família, depois de 10 anos na Amazônia, como se alega na PF, mas o fato é que nenhum convite foi feito.

A ação destemida calou os críticos que exploravam sua proximidade com Alexandre Ramagem, delegado que foi chefiado por Saraiva em Roraima. Chefe da Abin sob Bolsonaro, foi ele quem levou o colega até o ex-presidente quando estava em pauta um nome para o Meio Ambiente.

Saraiva, superintendente da PF no Amazonas à época, foi até a casa de Bolsonaro na Barra da Tijuca. Não concordaram em nada. O delegado saiu de lá sem convite e o cargo acabaria sendo oferecido a Salles.

Muitos dos que Saraiva enfrentou na Amazônia hoje integram a base do governo - e o ministério. Quando foi exonerado, desmatavam-se 1,5 mil km2 por ano na Amazônia Legal. Em 2021, ano em que deixou a região, pulou para 2,3 mil. No ano seguinte chegou a 2,6 mil. Mais do que uma cidade de São Paulo abaixo por ano.

O compromisso eleitoral deste governo impõe uma reversão em 2023, mas há pressões em curso. O ipê, a exemplo do pau brasil e do mogno, integrava a lista de árvores ameaçadas até ser dela retirada por Bolsonaro. Ao fazê-lo, previu que as madeiras do gênero Handroantus, nas quais estão incluídos todos os ipês, voltassem ao index em julho. Portaria do atual governo prorrogou sua exclusão do index até novembro de 2024. Segundo o Ibama, para se ajustar à convenção internacional. Handroantus foi o nome da operação da PF que derrubou Ricardo Salles.

À imagem do Brasil

 


Quando o criminoso vai além do crime

Os crimes aberrantes devem ser recordados para que jamais se repitam. Evitar a repetição, porém, leva a investigar as origens, ir às causas, em especial as difusas e, por isso, diretas ou permanentes, pois, ao serem profundas, não são visíveis.

Refiro-me a dois crimes aberrantes perpetrados em São Paulo dias atrás, que permanecem atuais pela estarrecedora brutalidade em si.

Primeiro, em plena sala de aula, um menino de 13 anos assassinou a facadas uma professora de 71 anos e feriu outras três. Logo, como na sequência de um filme de terror, um juiz acorrentava a própria esposa para, a socos e bofetadas, obrigá-la ao ato sexual, num sadismo aberrante substituindo a beleza do erotismo amoroso.

Ambas as situações disputam a primazia do horror. No primeiro caso, os escabrosos detalhes levam a uma pergunta: em que sociedade vivemos para que um menino imberbe, ainda pré-adolescente, se transforme em requintado criminoso?

Sim, pois a morte a facadas é requintada em si, exigindo presteza manual e longos segundos para insistir na morte. Não é como um tiro, em que se aperta o gatilho e a bala faz o resto. A facada exige repetição contínua até chegar à morte.

Mais ainda: como um menino de apenas 13 anos pode ter acumulado desgostos e incertezas em condições de gerar ódio e despertar a maldade de Caim que levamos dentro de nós?

Trata-se de um caso patológico, de um surto psicótico, dirão todos. A patologia assassina, porém, não nasce ao acaso. Tem raízes profundas no dia a dia, crescendo nas invencionices e mentiras das chamadas redes sociais e naquilo que mais ocupa nosso interesse, que é a televisão. Após o trabalho diário, é a TV que nos dá lazer e descanso, mas nela somos levados a um mundo de violência. As séries televisivas (ou até as novelas com excelente dramaturgia) exibem traições e tiros, e, mesmo com o triunfo do bem, o desenrolar violento passa a habitar nosso inconsciente.


Nada, no entanto, supera a bala de prata para matar lobisomens e monstros do tipo. A carga tributária no Brasil está em 33,9%. Usando as palavras de Tebet, “para agradar a todos”, em níveis federal, estadual e municipal, será preciso aumentá-la para mais perto de 40%. Ela tem razão, será uma bala de prata no coração do cidadão brasileiro. E, como dizia Bilac: “Criança! não verás país nenhum como este”. Nenhum país do mundo tem uma carga tributária tão pesada, porque ninguém é capaz de suportála. A ministra do Planejamento pode planejar um belo discurso fúnebre para a nossa economia. Jorge Alberto Nurkin jorge.nurkin@gmail.com

São Paulo maldade dos vídeo jogos (que chamamos de video games, em inglês, numa violência verbal ao nosso idioma) em que ganha quem mata mais na tela do celular. A partir da tenra infância, isso se transforma num convite para matar de verdade na vida adulta, pois basta apertar o gatilho...

Trata-se da banalização da vida em forma contínua, por uma parte, e, por outra, de entronizar o assassinato como normalidade.

O caso do juiz sádico mostra, além de tudo, outra aberração que espalha seus requintes perversos sobre a sociedade. Pergunto: como pode um magistrado, que vai julgar os demais (definindo o certo e o errado), portar-se de forma aberrante na vida pessoal?

A exigência de vida “ilibada” não é privativa para a escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal, mas recai logicamente na totalidade dos magistrados. Só assim o Poder Judiciário atenderá à sua verdadeira função.

Seria insólito que a sociedade tivesse de julgar o comportamento dos magistrados, mas é impossível deixar de aplaudir a decisão do Tribunal de Justiça de suspender das funções o juiz sádico.

A aberração não pode guiar a intimidade daqueles cuja função seja decidir sobre o comportamento da sociedade. Não se deve exigir que um juiz chegue à perfeição absoluta ou, menos ainda, que se transforme em pequena divindade. Não se pode, porém, admitir o oposto. A aberração é o crime dos crimes, ou a própria perversão da perversidade.

Existe, no entanto, um componente histórico na formação da violência na vida social e que, de fato, principia na infância da vida familiar. Pergunto: o que são, em verdade e no mais profundo de si, aquelas histórias infantis repetidas ao longo dos anos (ou até dos séculos...) que contam dos perigos do lobo mau que acaba comendo a indefesa vovozinha para quem a netinha levava deliciosos docinhos?

Não seremos nós mesmos que cultivamos a violência, até sem a perceber?

As histórias infantis estão abarrotadas (ou infestadas) de medo ou até de horror. Mesmo assim, são transmitidas de geração em geração. A transmissão do horror não pode ser encarada tal qual uma vacina que, ao ser aplicada, nos torna resistentes ao mal e, assim, nos livra da enfermidade que provoca.

A verbalização do horror acaba nos familiarizando com o próprio horror e, assim, o incorpora ao nosso cotidiano, como se fizesse parte da vida. No caso concreto do juiz sádico, as cenas filmadas com câmeras ocultas mostraram (na televisão) a repetição contínua da brutalidade, com a mulher submetida ao suplício.

Direta ou indiretamente, tratava-se da antessala do feminicídio, em que a mulher recebia o tratamento de coisa, não de gente, pelo fato único de ser mulher...

Nada, porém, supera em vileza e terror a tragédia de Blumenau (SC), onde um homem adulto, com uma machadinha, assassinou quatro crianças numa creche, num ato abjeto e inominável em que o criminoso vai além do crime em si.

Como seria a vida de Cristo no Brasil atual?

Estamos na Semana Santa, tradição cristã que, atualmente, representa a ressurreição de Cristo no domingo de Páscoa (embora seja, originalmente, uma festividade de religiões consideradas “pagãs”).

A festividade também nos faz refletir sobre como seria se o protagonista da história vivesse nos dias de hoje. E se, em vez de Israel e Palestina, ele tivesse nascido no Brasil atual?


Provavelmente, Maria, sua mãe, anunciaria sua gravidez a José. Mesmo se aparecesse um anjo dizendo tratar-se do filho de Deus, o marido responderia: “Eu sou lá homem de criar filho dos outros?”. E sairia para comprar um cigarro e nunca mais voltar.

Sem casa, Maria pariria seu bebê em uma manjedoura, mas seria acusada de ser uma invasora de terra do MST e expulsa pelo proprietário.

Os três reis magos seriam enviados para dar presentes ao menino Jesus, mas questionariam: “Se a gente der presentes, esse bebê vai virar um vagabundo que não sabe ir atrás do seu sustento. Ele precisa trabalhar duro para ganhar a mirra, o incenso e o ouro”. E o menino ficaria sem presentes.

Já adulto, Jesus seria batizado em um rio pelo primo, João, mas contrairia uma diarreia violenta causada pela poluição do local.

Após se recuperar, começaria suas pregações em uma praça. “Bem-aventurados os humildes, pois eles receberão a terra por herança”, diria. De longe, ouviria um cidadão de bem gritar: “Vai para Cuba, comunista!”.

Jesus pregaria: “Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, pois deles é o Reino dos céus”. Na praça, um expectador refutaria: “Ah, virou babá de bandido? Se tá com dó, leva pra casa”.

“É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus”, diria Jesus. Mas um transeunte gritaria: “Ah, agora virou crime ser rico no Brasil?”.

Quando o filho de Deus dissesse: “Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra”, alguém responderia: “Tem é que encher o inimigo de bala! Por isso que tem que armar a população”.

No fim, quando Jesus fosse preso, torturado e crucificado, um homem chamado Jair gritaria: “Eu sou favorável à cruz mesmo. Funciona! Eu sou favorável à tortura, com cruz, tu sabe disso. E o povo é favorável a isso também!”. E completaria: “Tá com dó do bandido? Leva pra casa!”

Levantem-se contra a banalização do mal que nos ameaça

Apela-se à filósofa alemã Hannah Arendt sempre que um ato maligno choca a todos por sua brutalidade e carece de explicação para ser entendido, o que não significa normalizado.

Foi ao escrever sobre o julgamento do oficial nazista Otto Adolf Eichmann”, um dos organizadores do Holocausto, que ela cunhou uma expressão que ficaria famosa – a “banalização do mal”.

Arendt concluiu que o mal praticado por ele não era demoníaco, mas um mal constante, parte da rotina dos oficiais nazistas como instrumento de trabalho. Ele cumpria ordens.

Durante o julgamento que o condenaria a morrer enforcado, Eichmann dizia, e de fato acreditava, que seguia o certo, o governo e as leis do Estado, e que por isso era inocente.


O homem de 25 anos que assassinou à machadinha e a facadas 4 crianças numa creche de Blumenau, em Santa Catarina, e feriu 5 disse à polícia que cumpriu ordens de outro que o ameaçou.

Parece mais razoável que tenha agido sob o estímulo do discurso do ódio, da intolerância e do preconceito que a extrema-direita propaga abertamente nas redes sociais, e não só no esgoto delas.

Mentes doentes não racionalizam. Confundem violência com coragem. Os que se sentem marginalizados e injustiçados pela vida que levam são presas fáceis do desejo de vingança.

É previsível que haja novos ataques a creches e escolas pelo país. O efeito imitação é poderoso. É tão certo como esperar que nos Estados Unidos, a essa hora, um atirador esteja matando a esmo.

Levantamento da Universidade de São Paulo registra que 22 ações violentas contra unidades de ensino aconteceram no Brasil desde 2002 – metade delas de 2022 para cá. Total de mortos: 40.

O celular já foi um artefato inocente. A internet, um meio que daria voz aos que não tinham voz, aproximando as pessoas e as incentivando a se entenderem; um ideal do paraíso.

Enquanto as redes sociais não forem reguladas, e se dependerem dos seus donos jamais serão, elas continuarão servindo de pasto viçoso para alimentar os instintos humanos mais viscerais.

Não basta regulá-las. Nem apenas cobrar dos governos medidas de reforço à segurança pública. É preciso que caia a ficha da sociedade e que nos mobilizemos para enfrentar a banalização do mal.

Mais educação. Mais saúde. Mais renda para quem tem pouca, o que quer dizer menos desigualdade. Mais rigor na venda de armas. Mais mão pesada da justiça no julgamento de crimes bárbaros.

E fé. Sim, acreditar que ainda é possível a construção de um mundo melhor. Sem esperança, só andaremos para trás.

Uma sociedade doentia

O clima de ódio e violência que estamos vivenciando nos últimos tempos, oriundos do período em que o bolsonarismo começou a implantar suas raízes, é filho do despertar dos instintos primitivos de indivíduos antissociais que viviam contidos pelos ditames e valores majoritários numa sociedade democrática e sentiram-se liberados para falar, e fazer, qualquer coisa. Como agia seu líder político, saído dos círculos morais mais baixos da sociedade para influenciar seguidores que identificaram por meio de metodologias tecnológicas que se mostraram tristemente eficazes.

São cidadãos que se sentiam rechaçados, esquecidos, até mesmo rejeitados pela onda, que parecia francamente majoritária, do politicamente correto, do identitarismo, do globalismo, instrumentos da esquerda para se impor. Quando Lula tinha 80% de aprovação, no segundo mandato, os petistas desdenhavam esses 20%, perguntando em que mundo viviam. Pois viviam nas sombras, remoendo suas feridas, buscando um sentimento de pertencimento que Bolsonaro lhes deu.

Em vez de ser incluídos na maioria, foram sendo apartados até transformarem-se, eles mesmos, em maioria, levando o capitão a um poder para o qual não estava preparado. Contra o establishment a que pertencia marginalmente, Bolsonaro atraiu não apenas o lumpesinato sempre em busca de um salvador da pátria, mas também uma elite predadora que se aproveitou do pretenso liberalismo de Bolsonaro, que enganou quem queria se enganar.


Uma das principais teses “liberais” de Bolsonaro é a permissão descontrolada de armamento e munições pelos cidadãos, como sinônimo de liberdade, de segurança, de emancipação cidadã. Nada mais falacioso, uma cópia mambembe da trágica tradição histórica dos Estados Unidos, que não tem nada a ver com nossa História. Nos Estados Unidos, cada vez que acontece um massacre de inocentes por atirador(es) aleatório(s), aumenta a discussão sobre a necessidade de controlar venda e porte de armas, ligadas a uma sensação de liberdade, de proteção da individualidade, que vem do tempo em que o território americano era ocupado, depois da independência da Inglaterra.

A origem desse direito considerado inalienável foram as milícias, grupos que se reuniam para proteger propriedades e combater os que não aceitavam a independência recém-conquistada. A Declaração de Direitos fundamentais dos cidadãos do novo país foi colocada na Constituição, incluindo no mesmo status de proteção à individualidade a posse de armas, assim como o direito à reunião, à religião, à liberdade de imprensa. O mesmo que Bolsonaro conseguiu implantar, algumas vezes na lei, outras na cabeça dos seguidores, quando eleito em 2018, dando conotação distorcida aos direitos dos cidadãos.

Tanto em 1791, nos Estados Unidos, quanto hoje no Brasil, as milícias fora da lei são a base da expansão da ideia armamentista. Só que os americanos, centenas de anos depois, tentam desvencilhar-se dessa linha do tempo que hoje já não faz sentido, enquanto no Brasil vivemos o ápice do crime organizado, com milícias formadas por policiais e facções criminosas em busca do domínio do território que deveria ser regido pela lei.

Abrir a compra por cidadãos de armamentos praticamente sem controle é uma oferta de fortalecimento a esses grupos fora da lei. Está provado que a criação de CACs (colecionadores, atiradores desportivos e caçadores) proliferou justamente para legalizar armas do crime organizado, e os ataques frívolos com armas em disputas banais e discussões de bar estão à nossa vista. Alimentar a violência com esse tipo de atitude irresponsável só pode criar uma sociedade patológica, onde tudo é possível, até assassinatos a machadadas de crianças.