segunda-feira, 2 de novembro de 2020

A pandemia e o luto

Uma das singularidades da pandemia do novo coronavírus no Brasil — que chega aos 160 mil mortos e 5,5 milhões de infectados — é a sua naturalização pelo presidente Jair Bolsonaro, que sempre combateu as medidas de isolamento social adotadas por prefeitos e governadores e tratou-a como uma “gripezinha”. A aposta do presidente da República era de que ambos arcariam com as consequências negativas do impacto econômico da crise sanitária e ele, desafiando o vírus mortífero, se beneficiaria do auxilio emergencial aprovado pelo Congresso — cinco parcelas de R$ 600, de abril a agosto, e quatro de R$ 300, de setembro até dezembro e que o governo distribuiu à mais de 60 milhões de pessoa. O governo gastou até setembro R$ 411 bilhões com a pandemia, dos quais R$ 213 bilhões com o auxílio.


Acontece que essas despesas foram feitas como quem faz uma grande compra de consumo imediato com cartão de crédito. Ou seja, a conta um dia vai chegar. E está chegando com a dívida pública já equivalente a 90% do PIB e uma taxa de desemprego de 14,4 %, que deve aumentar, porque a procura por emprego, com a redução do auxílio emergencial, também aumentará. Os reflexos políticos do agravamento da crise social são imediatos. Da mesma forma como a popularidade de Bolsonaro subiu com o auxílio emergencial, agora ameaça declinar nos grandes centros, com impacto eleitoral nos candidatos que o presidente da República apoia em São Paulo, onde Celso Russomano (Republicanos) está derretendo, e no Rio de Janeiro, cujo prefeito, Marcelo Crivela (Republicanos), candidato à reeleição, é amplamente rejeitado pelos eleitores. Bolsonaro já começa a se distanciar de ambos.

Nosso presidente da República é um personagem complexo da política brasileira — embora adote soluções simples e erradas para problemas complicados —, foge aos paradigmas do politicamente correto e desenvolve vínculos com parcelas da população que somente a antropologia explica. Mas não tem como fugir de uma realidade social impactada pelos efeitos psicológicos da pandemia na vida das pessoas, em particular o luto dos amigos e familiares das vítimas de COVID-19, que não tem nenhum paralelo com o de outras causas mortis, inclusive porque o rito de passagem de seus funerais foi profundamente afetado pela ausência de velórios e os caixões fechados.

Após naturalizar a pandemia, em algum momento, Bolsonaro haverá de pedir desculpas por esse comportamento, quiça na campanha leitoral de 2022, mas até agora não manifestou um sincero pesar pela escalada de mortes na pandemia. Seus lamentos foram sempre preâmbulos de alguma afirmação que estabelecia como prioridade manter as atividades econômicas a qualquer preço. Acontece que essa prioridade é apenas retórica, na verdade, há um cada um por si, porque o governo abandonou as reformas, não tem prioridades, se digladia internamente e está prisioneiro das corporações e grupos econômicos que o apoiam. São inúmeros exemplos, os mais recente são os cancelamentos do projeto da BR do Mar — nova Lei da navegação de cabotagem —, por exigência dos caminhoneiros, e o decreto para privatização de 4 mil postos de atendimento básico do SUS, uma proposta inopinada e marota, que transforma a rede pública num grande negócio privado de tecnologia para empresas do setor de saúde.

Entretanto, Bolsonaro está subestimando o luto das pessoas que perderam seus entes queridos. Não são apenas os impactos econômico, social e cultural, em termos de perdas de força de trabalho, conhecimento e liderança social, que devem ser considerados; existe um lado afetivo e psicológico na crise sanitária, que se manifesta de forma duradoura, por etapas, difícil de ser mensurada. Amanhã, no Dia de Finados, todos os mortos serão lembrados, mas as vítimas da pandemia são como corpos insepultos ou enterrados em cova rasa, cujo luto é diferenciado.

O luto ocorre porque a perda física do ente querido não elimina o afeto. É uma ausência de difícil aceitação no tempo em que ocorre, porque o amor sobrevive. Isso gera uma negação, que se manifesta de forma silenciosa, muitas vezes, como fuga da realidade; num segundo momento, vem a revolta, muitas vezes inconsciente e inexplicável. Leva tempo para que as pessoas superem a depressão subsequentemente e aceitem a perda, para que a vida plena se restabeleça. Mas não existe esquecimento. Aceitar não é deixar de sentir. O luto se torna essencial, um marco na vida pessoal. A resiliência diante da morte também gera simpatia ou engajamento em movimentos que sejam antítese da sua causa. É o caso dos familiares de vítimas de balas perdidas ou violência 

Calote internacional

O desapreço do governo brasileiro por organizações internacionais vai além da retórica antimultilateral adotada pelo presidente Jair Bolsonaro e por seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Faltando apenas dois meses para o fim do ano, dificilmente o Brasil honrará os R$ 4,216 bilhões em compromissos assumidos em 2020 com a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre outras instituições. Desse montante, apenas R$ 15,4 milhões foram pagos até agora, segundo o Ministério da Economia. A pasta respondeu a pedido de informação feito pelo jornal Valor.

Em nota para lá de otimista, o Ministério da Economia ressaltou que “o exercício orçamentário de 2020 ainda está em andamento” e que, portanto, “ajustes à peça orçamentária estão sendo estudados e pagamentos serão realizados, caso haja espaço orçamentário no restante do ano”. A ressalva não está ali à toa. Como São Tomé, é ver para crer.

A dívida brasileira com a ONU neste ano é de R$ 458,45 milhões. Com a OMS, de R$ 84,44 milhões. À Unesco, o País deve R$ 28,77 milhões. À OIT, são R$ 90,32 milhões. Além desses compromissos, o Brasil não pagou sua participação em 13 missões de paz, 8 bancos multilaterais, em fundos internacionais e em outras 106 organizações intergovernamentais.


O governo alega que a pandemia de covid-19 deteriorou as contas públicas neste ano e dificultou o pagamento dos compromissos do Brasil com esses órgãos. De fato. Mas convém lembrar que em 2019, quando o mundo ainda não era assombrado pela ameaça do novo coronavírus, o País por pouco não perdeu direito a voto na Assembleia-Geral da ONU, pagando às pressas uma parte da dívida com a instituição. Ou seja, a pandemia só acentuou a reiterada falta de compromisso do País com as entidades multilaterais das quais faz parte.

Não é de hoje que a ordem internacional baseada no multilateralismo está abalada. Em parte, pelas próprias deficiências de organizações internacionais concebidas no pós-guerra e que demandam algumas reformas urgentes para continuarem a ter relevância no século 21. Mas é a hostilidade do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, contra a ordem liberal e democrática representada por instituições como a ONU, a OMS, a Organização Mundial do Comércio (OMC), entre outras, a principal causa do abalo que elas têm sofrido nos anos recentes. E não só os de natureza política, mas também econômica. Afinal, a constrição financeira é uma das formas mais eficazes de minar a atuação de uma organização multilateral, sobretudo quando um grande contribuinte como os Estados Unidos é governado por alguém tão hostil quanto Donald Trump.

Sob a inspiração do presidente americano, outros líderes mundiais, como o presidente Jair Bolsonaro, passaram a se sentir confortáveis em ficar inadimplentes com organismos que representam a ordem internacional vigente que, aliada a outros fatores, contribuiu para o progresso da humanidade sem precedentes no século passado e muito ainda tem a contribuir nos anos vindouros.

É claro que a dívida do Brasil com as organizações internacionais não tem o caráter de retaliação que têm os substanciais cortes de recursos praticados pelos Estados Unidos. O Brasil não tem poder para tanto. Mas o desdém de Bolsonaro por essas instituições, calcado em uma espécie de respaldo da contraparte norte-americana, tampouco o anima a quitar os débitos.

Amanhã os americanos decidirão quem presidirá o país nos próximos quatro anos. A depender da escolha, o multilateralismo pode recuperar boa parte da força perdida. O Brasil pleiteia assentos na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e no Conselho de Segurança da ONU, entre outros objetivos internacionais que dependem de uma boa atuação no concerto das nações. Convém estar em dia com suas obrigações.

Pensamento do Dia

 


Retrato de um presidente desatado

“Eu trouxe uma coisa que nunca mostrei a ninguém. Vou mostrá-la a você”, Trump me disse em 5 de dezembro de 2019. “Vou lhe dar algo que é bem bacana.” Apanhou o telefone na Resolute Desk do Salão Oval. “Traga-me algumas fotos de mim e Kim Jong-un, atravessando a fronteira. Aquelas be­las fotos coloridas que acabei de ver.”

A entrevista de 74 minutos daquela tarde aconteceu três meses antes de a pandemia do coronavírus corroer os Estados Unidos e o mundo. Seria a primeira de minhas dezessete entrevistas com ele para este livro.

“Isso está sendo registrado para o livro”, disse eu. “Estou aqui de fato para escutar sua posição. E quero saber de diretrizes de Governo. Porque, tendo coberto nove presidentes, a diretriz é o que importa. É a espinha dorsal e a definição.”

“Concordo”, disse Trump. “Concordo. A diretriz pode mudar também, você não acha? Eu gosto de flexibilidade. Algumas pessoas dizem que eu mudo. Mudo mesmo. Gosto de flexibilidade, não de alguém que tem uma diretriz e chega a ponto de atravessar um muro de tijolos por essa diretriz quando pode mudá-la muito facilmente e não ter que bater contra o muro.”

Enquanto esperávamos que um funcionário lhe trouxesse as fotos, men­cionei que a CIA concluíra que Kim é “astuto, manhoso, mas em última análise estúpido”.

“Espero que você escreva isso”, disse Trump. “E espero que escreva mi­nha resposta. Eu discordo. Ele é astuto. É manhoso. E é muito inteligente. E é duro na queda. Você sabe…”

“Por que então a CIA diz isso?”

“Porque eles não sabem”, disse Trump. “O.k.? Porque eles não sabem. Não fazem ideia. Sou o único que sabe. Sou o único que lida com ele. Ele não trata com mais ninguém.”

Maurizio Boscaro (Itália)


Mais tarde, baseado em relatórios mais detalhados, descobri que o prin­cipal especialista da CIA em Coreia do Norte concordava com o presidente na avaliação de que Kim era astuto, manipulador, mas também bastante inteligente.

Um assistente trouxe fotos que mostram Trump e Kim. Todas aquelas imagens eram fotos que já haviam sido divulgadas e circularam amplamente na época do evento.

“Aqui estou eu e aqui está ele”, disse Trump. “Aqui é a linha, certo? En­tão eu cruzei a linha a pé. Muito legal. Quer saber? Muito legal. Certo? Essa é a linha entre a Coreia do Norte e a do Sul. É a fronteira. Essa linha é uma grande coisa. Ninguém jamais atravessou essa linha. Jamais.” Muitos ou­tros haviam cruzado a fronteira para a Coreia do Norte, mas Trump foi o primeiro presidente dos Estados Unidos no exercício do cargo a fazer isso.

Trump continuou: “Eu disse: quer que eu vá até aí? Ele disse: sim, gos­taria que viesse. Ninguém jamais tinha feito aquilo. Quero dizer, são fotos muito bacanas quando você… você sabe, quando se fala de imagens icôni­cas, que tal?”.

“Mas ainda é um relacionamento perigoso”, disse eu. “O senhor concorda?”

“Sim”, disse Trump, “mas é menos perigoso do que era antes. Porque ele gosta de mim. Eu gosto dele. Nós nos damos bem. Isso não significa que eu seja ingênuo. Isso não significa que eu pense ‘oh, vai ser maravilhoso’. Ele é um osso duro de roer. E é inteligente, muito inteligente.”

“Está convencido de que ele é inteligente?”

“Mais do que inteligente. Veja, ele assumiu o cargo quando tinha 27 anos, um lugar explosivo onde as pessoas são muito espertas. O mesmo vale para a Coreia do Sul. São a mesma coisa, o.k.? O mesmo povo. Muito inteligente.”

Trump não contestava que Kim fosse também violento e malévolo. Disse que Kim “me conta tudo. Me contou tudo. Sei tudo sobre ele. Ele matou o tio e dispôs o corpo bem nos degraus da escada por onde os senadores saíam. E a cabeça estava decepada, pousada sobre o peito. Você acha isso brutal? Você sabe, eles acham que a política aqui neste país é brutal”.

O presidente continuou: “Nancy Pelosi disse ‘oh, vamos fazer o impea­chment dele’. Você acha que aquilo é brutal? Brutal é isso. Estas são fotos formidáveis”. Apontou para uma delas. “Você o viu sorrir alguma vez? Você o viu sorrir alguma vez antes?”

A mídia estatal norte-coreana divulga regularmente fotos de Kim sor­rindo em vários eventos. O presidente disse que podia me dar cópias de al­gumas das fotos.

“O chefe do Comando Norte, em Colorado Springs, foi instruído pela presidência a derrubar qualquer míssil que pudesse atingir o território norte-americano partindo da Coreia do Norte”, eu disse. Isso só acontece­ria se o secretário da Defesa não estivesse acessível.

“Está correto”, disse o presidente. “Sim, estamos preparados. Porque é preciso estar preparado.”

“Então o senhor está confortável com essa delegação de autoridade ao Comando Norte?”

“Sem dúvida. Bem, é preciso estar preparado. Não espero por coisa al­guma. Não espero por coisa alguma. Nada me perturba. Não espero por coisa alguma. Se esperasse, eu não estaria aqui um ano atrás. Faz três anos que eles tentam me destituir. Não, mais do que isso. Eles vêm tentando me afastar desde o dia em que desci a escada rolante,* se você quer saber a verdade”, disse ele, referindo-se ao lançamento de sua campanha. “Estão tentando me pegar desde aquela época.”

Ele me mostrou uma foto. “Olhe, bela imagem. Mas… não, o relacio­namento é bom.”

“Agora uma questão difícil, presidente Trump”, eu disse. “Pelo que en­tendo, chegamos muito perto de uma guerra com a Coreia do Norte.”

“Certo. Muito mais perto do que qualquer pessoa soubesse. Muito mais perto. Você sabe. Ele sabe melhor do que ninguém”, disse, referindo-se a Kim.

“O senhor contou a ele?”

“Não é o que eu quero dizer. Mas ele sabe. Eu tenho um ótimo relacio­namento, vamos dizer assim. Mas vamos ver o que acontece.” Ele obser­vou que por dois anos a Coreia do Norte não efetuara testes nucleares ou de ICBMs. O último teste desses mísseis pela Coreia do Norte havia sido em novembro de 2017.

“Não posso lhe dizer qual será o desfecho ainda, como isso vai acabar”, disse Trump. “Ele testou mísseis de curto alcance. Aliás, diga-se de passa­gem, todo país tem mísseis de curto alcance. Não existe país que não te­nha. O.k.? Não é grande coisa. Isso não quer dizer que depois de janeiro ele não vá fazer algumas coisas. Vamos ver o que será. Mas eu tenho um ótimo relacionamento.”

Muitas figuras da política externa haviam dito que Trump concedia de­mais a Kim ao concordar em se encontrar sem condições prévias formais, escritas. “Então o senhor deu poder demais a Kim?”, perguntei. Kim havia dito que não iria disparar mais ICBMs. “Porque, se ele resolver desafiar, se ele disparar um daqueles ICBMs, o que o senhor vai fazer?”

“Se ele disparar, disparou”, disse Trump. “E aí ele terá grandes proble­mas, vamos dizer assim. Problemas grandes mesmo. Maiores do que qual­quer um jamais teve antes.”

Em seguida, Trump fez uma digressão para revelar algo extraordinário — um sistema secreto de novas armas. “Eu construí um sistema nuclear… um sistema de armas que ninguém jamais teve neste país. Temos coisas que você nunca viu nem ouviu falar. Temos coisas de que Putin e Xi nunca ou­viram falar antes. Ninguém — o que temos é incrível.”

Mais tarde, encontrei fontes que confirmaram que o Exército tinha um sistema secreto de novas armas, mas ninguém quis fornecer detalhes e to­dos ficaram surpresos por Trump tê-lo revelado. Desde que tomara posse, Trump solicitara e recebera enormes aumentos de verbas para a Adminis­tração Nacional de Segurança Nuclear (NNSN, na sigla em inglês), que man­tém o arsenal de armas nucleares.

Trump me disse que a única coisa que deu a Kim foi um encontro. “Olhe, veja esta bela foto. Ele está se divertindo. Sabe? Ninguém jamais o viu sor­rir. Olhe. Veja-o sorrindo. Está feliz. Sente-se feliz.”

“O senhor achava que era como Nixon com a China?”, perguntei, refe­rindo-me à abertura de Nixon à China em 1972.

“Não, não quero nem falar sobre Nixon e a China. Acho que Nixon na China… acho que a China tem sido uma coisa horrível para este país. Hor­rível porque permitimos que eles” se tornassem uma potência econômica.

O Exército sempre lhe diz que as alianças com a OTAN e a Coreia do Sul são os melhores negócios que os Estados Unidos fazem, observei, um grande investimento em defesa conjunta.

“O pessoal do Exército está errado”, disse Trump. “Eu não diria que são estúpidos, porque nunca diria isso do nosso pessoal militar. Mas se eles disseram isso, eles… quem quer que tenha dito isso foi estúpido. É um negócio horrível. Estamos protegendo a Coreia do Sul da Coreia do Norte, e eles estão fazendo uma fortuna com televisores e barcos e tudo mais. Certo? Eles ganham um dinheirão. E nos custam 10 bilhões de dó­lares. Somos otários.”

Custa aos Estados Unidos aproximadamente 4,5 bilhões de dólares por ano manter tropas estacionadas na Coreia do Sul, dos quais 920 milhões de dólares são pagos pelo Governo sul-coreano.

“Tem muita raiva lá fora” no país, disse eu. “E a questão é: o senhor está sen­tado aqui no Salão Oval. Por quê? Por que toda essa raiva?”

“O.k.”, disse o presidente, “penso que por uma porção de razões. Mas antes mesmo de concordar em responder a essa pergunta, o.k.?, eu tenho que dizer o seguinte: há também muitos democratas que vão votar em se­gredo em mim. E isso aconteceu na última vez. Os democratas de Obama que saíam da votação — eu ia dizer Barack Hussein, mas achei que não di­ria isso hoje, porque quero manter a gentileza. Os democratas de Obama que saíam votaram em mim, e foi uma porcentagem tremenda. E os demo­cratas de Bernie Sanders, eles votaram em mim.”

Pesquisas de boca de urna mostraram que cerca de 9% dos que se iden­tificavam como democratas votaram em Trump em 2016, e cerca de 7% dos que se identificavam como republicanos votaram em Hillary Clinton.

Evoquei o ex-presidente Obama e disse que muitos o julgavam inteligente.

“Não sei, não. Não acho que Obama seja inteligente”, disse Trump. “Quer saber? Acho que ele é muito superestimado. E não o considero um grande orador. Oh, ele é tão… veja só. Eu frequentei as melhores escolas. Me saí muito bem. Tive um tio que foi professor no Instituto de Tecnologia de Mas­sachusetts (MIT, na sigla em inglês) por quarenta anos, um dos mais respei­táveis da história da escola. Por quarenta anos. Irmão do meu pai. E meu pai era mais inteligente do que ele. É uma linhagem boa. Você sabe, falam da elite. Ora, a elite. Ah, eles têm belas casas. Não. Eu tenho casas muito melho­res do que as deles. Eu tenho tudo melhor do que eles, incluindo o estudo.”

“Este é um momento importante na história”, eu disse, “em que vão acusá­-lo, o Congresso vai instaurar o impeachment.”

“Sim.”

“E estamos sentados aqui no Salão Oval. E o senhor está contente, fe­liz, orgulhoso.”

“Sim.”

“Não está apreensivo?”

“Não.”

O secretário adjunto de imprensa nos interrompeu, dizendo: “Temos só mais cinco minutos, senhores”. O secretário do Tesouro estava esperando.

“Oh, tudo bem”, disse Trump. “Continue. Estou achando interessante. Adoro esse cara. Mesmo que ele escreva merda a meu respeito. Tudo bem.”

“Qual é a estratégia Trump-Pence para conquistar, nos próximos onze meses, o eleitor convencível?”, perguntei.

“Não sei”, disse Trump. “Quer saber de uma coisa? Vou lhe dizer qual é a estratégia Trump-Pence: fazer um bom trabalho. Só isso. É muito sim­ples. Não é uma… eu não tenho uma estratégia. Eu faço um bom trabalho.”

“Por que o senhor não me dá sua declaração de impostos?”, perguntei. “Não, estou falando sério.”

Ele citou seu argumento-padrão de que suas restituições de imposto estavam sendo auditadas pelo serviço de receita do Governo (IRS, na sigla em inglês), embora eu soubesse que isso não o impedia de revelar seus im­postos, se quisesse.

“Sabe quanto eu faturei no último ano?”, perguntou Trump. “Quatro­centos e oitenta e oito milhões ou algo parecido. Ganhei 488 milhões — e isso porque não estou lá [nos negócios]. Quero dizer que eu teria faturado muito mais. Quatrocentos e oitenta e oito.”

Trump informou pelo menos 434 milhões de dólares em rendimentos em 2018, de acordo com sua declaração financeira arquivada no Gabinete de Ética Governamental em maio de 2019.

Notei o efeito de “tela dividida” do debate do impeachment na Câmara e aquela nossa discussão no Salão Oval. Eu sabia que era um grande show. Ele dispunha de todos os seus adereços na Resolute Desk: os papéis oficiais de indicação dos juízes empilhados no meio da mesa, as grandes cartelas de fo­tos dele e de Kim e uma pasta com as cartas de Kim. Eu havia entrevistado os presidentes Carter, Clinton, George W. Bush e Obama no Salão Oval. Todos se sentavam na poltrona presidencial junto à lareira e não exibiam acessórios.

“É como se o senhor tivesse ganhado na maior loteria de todos os tem­pos”, disse eu.

“Ganhei mesmo. Eu ganho todos os dias. Nancy Pelosi elevou meus nú­meros até as nuvens. E ela vem com ‘Eu rezo pelo nosso presidente’. Ela nunca rezou por mim na vida.”

“Tudo bem. Numa frase, qual é o trabalho do presidente? Qual é seu tra­balho, no seu modo de ver?”

“Tenho muitos trabalhos.”

Forneci minha definição-padrão. “Eu penso que é imaginar qual é o pró­ximo estágio de bem-estar para a maioria da população do país…”

“Isso é bom”, disse Trump.

“… e então dizer”, continuei, “é nessa direção que eu vou, e este é o plano para chegar lá.”

“Correto”, disse Trump. “Mas às vezes a estrada muda. Você sabe, uma porção de gente é flexível. Às vezes uma estrada tem que mudar, entende? Você tem um muro à sua frente e tem que dar a volta em vez de tentar pas­sar por dentro — é muito mais fácil. Mas, de verdade, o trabalho de um pre­sidente é manter nosso país seguro, mantê-lo próspero. O.k.? Prosperidade é uma coisa importante. Mas às vezes você tem tanta prosperidade que as pessoas querem usá-la de um jeito ruim, e você precisa ter cuidado com ela.”

Enquanto ouvia, eu me chocava com a natureza vaga, sem direção, dos comentários de Trump. Ele era presidente havia praticamente três anos, mas parecia incapaz de articular uma estratégia ou plano para o país. Era surpreendente que ele fosse entrar em 2020, ano em que esperava conquis­tar a reeleição, sem uma maior clareza em sua mensagem.

“A propósito, posso lhe fazer uma pergunta?”, indagou Trump. Ele queria saber quem eu achava que ganharia a indicação democrata para presidente.

Eu tinha um retrospecto terrível em relação a previsões desse tipo e pre­feri me abster. “Quem o senhor acha que será o adversário?”, perguntei.

“Para ser honesto com você, acho que é um grupo horrível de candida­tos”, disse Trump. “É constrangedor. Estou constrangido pelos candida­tos democratas. Eu posso ter que enfrentar um deles, e quem sabe? É uma eleição. E ao que parece estou muito bem agora.
Bob Woodward, autor de "Raiva", lançado no dia 30 de outubro em versão digital, e que chega às livrarias em formato impresso em janeiro de 2021

Combo do terror


O Terror está tão vivo como sempre. Talvez esteja mais escondido, mais latente, mas continua muito presente na angústia que toma conta da sociedade ocidental
Gertrud von le Fort, "A última no cadafalso"

A praga bolsonarista

Suspenso antes de completar 24 horas de vigência, o decreto do presidente Jair Bolsonaro autorizando estudos sobre a inclusão das unidades básicas de saúde no Programa de Parcerias de Investimentos continua causando estranheza. Não só por mexer na estrutura do SUS no curso da pandemia que já infectou 5,5 milhões e matou quase 160 mil brasileiros, mas pelo ato em si. Até porque não é necessário decreto algum para proceder estudos quanto mais em governo que nada planeja ou estuda. Nem por decreto.

Incluir a iniciativa privada na prestação de serviços públicos é prática comprovadamente salutar, desde que devidamente regrada e fiscalizada por agências independentes. Há dezenas de exemplos disso, dentro e fora do Brasil. Por aqui, deve-se a esse capital a expansão e popularização da telefonia móvel, e a agora controversa produção de vacinas, desde sempre desenvolvida em parceria com laboratórios privados e globalizados. Portanto, não fariam mal algum estudos para incluir o SUS nessa corrente virtuosa.

Mas não se trata disso. É só uma polêmica a mais das várias que Bolsonaro semeia e rega. Não à toa, anunciou que vai reeditar o decreto. Assim, como birra.

O cultivo de conflitos e o método de apará-los estão longe de ser práticas incomuns ou exóticas. São pragas conhecidas que crescem estercadas pelo que há de mais batido: a rivalidade extrema para se eleger e o compadrio para governar.

O ex Lula usou e reusou desse mesmo mecanismo. Colheu frutos, é verdade, mas apodreceu antes de deixar sementes.

No primeiro terço do governo, Bolsonaro dedicou-se a adubar exclusivamente os seus fiéis, com embates contra tudo e todos. Ameaçado pelo próprio veneno e com dois de sua prole enrolados em investigações criminais, ele cedeu ao conforto ofertado pelo Centrão, turma que aloja muitos de seus antigos companheiros do baixo clero da Câmara.

Um estrume caro de fertilização duvidosa. Mas Bolsonaro está disposto a pagar o preço, incluindo nele generosos lotes da reforma ministerial prevista para o início do próximo ano.

A proteção dos filhos, em especial de Flávio, cujo processo das “rachadinhas” avança mesmo depois de quase duas dezenas de tentativas de anulação e do envolvimento inconstitucional, ilegal e imoral de organizações de Estado na sua defesa, fez com que Bolsonaro passasse a adular outras tribos. Enturmou-se com a trupe dos jantares brasilienses, carinhou o ex-presidente do STF Dias Toffoli e o ministro Gilmar Mendes.

Muitos dos seus taparam os narizes e engoliram as náuseas ao ver os novos arranjos. Outros, até mesmo aliados de primeira hora, como o general Rêgo Barros, vomitaram o que já não conseguiam mais segurar.

Impávido, Bolsonaro continuou a fomentar cizânia: sua única virtude.

Entre “brincadeiras” de péssimo gosto, como a de virar “boiola igual maranhense” ao tomar o guaraná cor-de-rosa Jesus, outras tantas frases irresponsáveis e sorrisos aos tolos que o veneram, Bolsonaro fomenta seus guerreiros a atacar em várias frentes. Os temas da hora são a vacina chinesa do Doria, o não à vacinação compulsória, uma extemporânea proposta de nova Constituição e, esticando a corda, a balela da privatização do SUS. Nada por acaso.

Bolsonaro sempre viveu do caos. Alimenta-se das confusões que cria. Com elas fica em voga, se mantém na crista da onda.

Quando precisa, passa a mão na cabeça dos descontentes úteis e transforma o dito em narrativa inversa. No caso do Maranhão, pediu tímidas desculpas, ao mesmo tempo que, do nada, vários de seus seguidores começaram a condenar o código do “politicamente correto”. Sobre a vacina do Butantan, tem dito que o governador paulista quer usar o povo como cobaia, como se possível fosse aplicar qualquer vacina sem o aval da Anvisa. Mente, reincide na mentira, provoca.

A Bolsonaro só a discórdia interessa. É nesse pântano que a praga bolsonarista viceja.

Como os milicianos tomaram a República

Depois de "A República das Milícias", de Bruno Paes Manso, fica difícil acreditar que será possível mudar o Brasil em 2022 sem desalojar os justiceiros de seu berço político a partir das urnas de 15 de novembro

Bruno Paes Manso já estava na reta final de “A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil” (Todavia, 2018), livro que escreveu com Camila Nunes Dias, quando a vereadora carioca Marielle Franco foi morta, em março de 2018.

O livro, construído partir de entrevistas com autoridades penitenciárias e policiais, além de lideranças do PCC e de associações comunitárias, pretendia ser um alerta para os pressupostos da política de segurança pública que, na previsão dos autores, daria as cartas em Brasília com a estreia do ex-governador Geraldo Alckmin no Palácio do Planalto.

O livro se tornaria uma referência incontornável nos estudos sobre o crime organizado no Brasil. Mostrou como a política de encarceramento em massa de São Paulo, aliada aos arranjos que preservavam a capacidade de gerência da cúpula da organização criminosa, embasavam a prolongada trégua nos índices paulistas de homicídio.

Um mês depois de seu lançamento, porém, Bruno Paes Manso sentiu-se atropelado pela história. Vítima de um atentado em Juiz de Fora, o candidato do PSL, Jair Bolsonaro, acabaria catapultado à Presidência da República. Com a eleição de Bolsonaro, o autor concluíra que precisava começar a pensar em outro livro. Desta vez, para contar como a cultura da violência miliciana, travestida em apelo da lei e da ordem, havia se transformado na expectativa majoritária de redenção do eleitorado nacional.

O resultado, “A República das Milícias: dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro” (Todavia, 2020), repete a fórmula de “A Guerra”, com entrevistas em profundidade com chefes da milícia e do tráfico, autoridades policiais, lideranças comunitárias, estudiosos de segurança pública e uma sensibilidade aguçada para distinguir a evolução que moldara as comunidades do Rio em contraposição àquelas da periferia de São Paulo, que percorre há mais de duas décadas como jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.



Até então, sua incursão de mais fôlego no Rio havia sido durante a cobertura que fizera, para “O Estado de S. Paulo”, da intervenção policial no Morro do Alemão durante o governo Sérgio Cabral, em 2007. Nas pesquisas para o livro foi descobrindo um clientelismo que, ao contrário daquele que observara em São Paulo, não havia enfrentado a concorrência do sindicalismo industrial ou das comunidades eclesiais de base da Igreja Católica. É ao entrar em Rio das Pedras, na zona Oeste do Rio, que o autor encontra a chave para entender o fenômeno exportado para o resto do Brasil com a eleição de 2018.

Fora da caixinha dos estereótipos, encontra uma comunidade em tudo diferente da Copacabana decadente em que costumava se hospedar. Vê uma comunidade barulhenta, jovem, com letreiros chamativos a anunciar de médicos a lojas de lingerie e restaurantes de sushi. A pujança mostrava o dinheiro posto em circulação pelas milícias, que, em parceria com a polícia, se tornara donas de parte dos negócios despojando receita do poder público e das grandes empresas de gás, luz, transporte e internet sem precisar desperdiçar com armamentos como nas favelas comandadas pelo tráfico.

A comunidade é parte da jurisdição do 18º Batalhão da Polícia Militar do Rio, o mesmo em que o sargento Fabrício Queiroz e o capitão Adriano da Nóbrega se conheceram. O livro reconstitui a ficha criminal que construíram juntos sob a proteção da família Bolsonaro e do Tribunal de Justiça do Rio.

Bruno Paes Manso descreve uma Rio das Pedras marcada pelo coronelismo dos imigrantes nordestinos, apesar de o primeiro chefe local se chamar Octacílio Bianchi e o maior beneficiário político da propagação de seu modelo de empreendedorismo ser um paulista de Eldorado que levou seus modos bandeirantes para a Presidência da República.

Foi 1964 que deu às comunidades milicianas seu DNA. Com o golpe, a violência e a tortura policial se aproximaram dos porões da ditadura e, juntos, enterraram a utopia de nação que o Rio encarnava, com a sofisticação da bossa nova e a genialidade do samba de morro. O livro escolhe o capitão do Exército Aílton Guimarães Jorge, cadete da Academia Militar das Agulhas Negras em 1962, como símbolo da aliança entre bicheiros e policiais endossada pelo regime.

Guimarães era protegido de oficiais envolvidos com o terrorismo de Estado que marcaria a derrocada do regime. Com o planejamento de explosões em Agulhas Negras e numa adutora da capital fluminense, o capitão Jair Bolsonaro se filiaria a esta linhagem. Com a abertura, a entrada do insubordinado capitão na política se daria pela legitimação dos crimes da polícia. “Em vez de lutar pela defesa da pátria, a polícia passou a matar além do limite em nome do ‘cidadão de bem’”, diz Bruno.

As milícias, porém, não se beneficiaram apenas da proteção e das condecorações dos Bolsonaro, mas da vista grossa que lhe fizeram todos os governantes do Rio, de Leonel Brizola a Moreira Franco, passando pelo ex-prefeito Cesar Maia, que fez de Rio das Pedras um curral de votos para a eleição do seu filho, Rodrigo, hoje presidente da Câmara dos Deputados.

Com as Unidades de Polícia Pacificadora, instaladas pelo ex-governador Sérgio Cabral, o tráfico foi expulso da zona sul, para limpar o cenário da Copa e da Olimpíada. Nesse período, também se espraiaram as associações entre traficantes e milicianos. Esta sociedade prosperou com o propósito de combater o Comando Vermelho, organização nascida no presídio de Ilha Grande do convívio entre presos comuns e políticos na década de 1970.

A explosão da violência causada por esses conflitos e a busca do governo Michel Temer por uma marca positiva levou à intervenção militar no Rio, marcada, logo no seu primeiro trimestre, pelo assassinato de Marielle Franco. Bruno Paes Manso levanta as hipóteses para o crime sem cravar em nenhuma delas - provocação aos militares para mostrar quem manda no Rio, reação às denúncias da vereadora contra a violência policial e retaliação ao então deputado estadual, hoje na Câmara dos Deputados, Marcelo Freixo. O deputado teve uma atuação desabrida na Assembleia Legislativa, da CPI das Milícias aos esquemas, comandados pelos caciques locais do MDB, de distribuição de propinas de empresários de transportes.

A única aposta do autor é no poder do jogo de dissimulações envolvidas, que passa até mesmo por telefonemas forjados entre suspeitos que se sabiam grampeados para incriminar inimigos. Foi a reação de um deles, Orlando Curicica, miliciano preso por homicídio e associação criminosa, que levou à prisão de Élcio Queiroz e Ronnie Lessa. A partir dos relatórios a que teve acesso, Bruno Paes Manso descreve as manobras contra a elucidação do crime que ruma para mil dias sem a prisão de seus mandantes.

A chegada ao Palácio da Guanabara de Wilson Witzel, outro paulista emigrado para o Rio pelo sonho de uma carreira nas Forças Armadas, reincorpora à polícia civil e militar, com status de secretarias, personagens afastados desde os governos Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão.

A queda de Witzel, que, de aliado, virara desafeto da família Bolsonaro, e a posse do vice, Claudio Castro, promove alguns desses personagens. Alan Turnowski, por exemplo, passa de braço direito a secretário de Polícia Civil, com o apoio da família do presidente da República. Em outro depoimento de Curicica ao qual o repórter Allan de Abreu, da revista “Piauí”, teve acesso, Turnowski e o atual secretário da Polícia Militar, Rogério Figueredo, são detalhadamente acusados de ligação com as tiranias paramilitares que ocupam a cidade. Ambos negaram as imputações à revista.

O pacote de rearranjos acordados entre o novo governador do Rio e os Bolsonaro ainda passa pela substituição do procurador-geral do Ministério Público do Rio, José Eduardo Gussem, cujo mandato acaba em dezembro. É Gussem quem tem, em grande parte, garantido a autonomia da investigação do esquema de rachadinhas no antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio. A negociação que está em jogo na substituição de Gussem por um nome de interesse da família presidencial passa pelo atendimento das demandas do governador em relação à Superintendência da Receita Federal e à Polícia Federal.

A presença de Castro no governo do Estado é a blindagem com a qual a família Bolsonaro conta como anteparo à ascensão do ex-prefeito Eduardo Paes (Democratas) ou da delegada Marta Rocha (PDT), que substituiu Turnowski na chefia da Polícia Civil, em 2011. Paes e Marta aparecem nas pesquisas como os mais cotados para o lugar do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), aliado do presidente. É cedo para dizer se a ascensão de um ou outro à Prefeitura levará o DEM ou o PDT, dois anos depois, ao Palácio da Guanabara. Os grupos políticos de ambos pagaram pedágio às milícias quando estiveram no poder, mas não exerceram o poder em nome delas.

Como mostrou o Mapa dos Grupos Armados do Rio, 57% da área da cidade está hoje sob domínio das milícias. Esse avanço se deu ao longo de um governo federal que flexibilizou o porte e afrouxou o controle de comercialização e sob administrações locais que lhes franquearam espaços.

A República das Milícias, retratada por Bruno Paes Manso, chegou ao poder com Bolsonaro, mas o extrapola. Está entranhada no dia a dia das comunidades, dos serviços de transporte público às licenças de construção, cujos despachantes, nas Câmaras de Vereadores e nas prefeituras, serão definidos pelas urnas em 15 de novembro. Depois de ler o livro, fica difícil acreditar que seja possível mudar o país em 2022 sem desalojar os justiceiros de seu berço político.

O perigoso esporte de humilhar general

Com a redemocratização, conheci alguns generais. Um deles visitava nossa casa para alegria das crianças. Era o bisavô das meninas, já nos últimos anos de vida. Serviu no Brasil profundo, tinha memórias de índios e do mato.

Um dia ele me contou que o médico íntimo dele, antes de operá-lo, aplicou a anestesia e perguntou: “Quer dizer que o senhor é o general da banda?” Ele tentou responder, mas dormiu com um sorriso nos lábios.

“General da banda” é uma canção antiga, regravada por Astrud Gilberto, que dizia: “Chegou o general da banda, eh eh/ Chegou o general da banda eh ah”. Era possível brincar com um velho general. Mas seria impensável desrespeitá-lo.

Quando leio nos jornais que há um plano para humilhar generais, minha reação inicial é esta: um general não se deixa humilhar.

Mas, ao longo destes anos compreendi também que, assim como nos outros ofícios, há diferenças entre as pessoas. Nem todas se comportam da mesma maneira. Há generais que entraram no governo pensando num trabalho sério. Santos Cruz foi golpeado por intrigas. Saiu e hoje é um crítico sensato dos descaminhos de Bolsonaro.

Rêgo Barros foi um dos generais que conheci, como jornalista. Era a interface com o Exército, coordenava a comunicação. Fui visitá-lo algumas vezes no Forte Apache, na tarefa de preparar programas de TV sobre algumas ações militares que me interessavam.



Ele se tornou porta-voz de Bolsonaro, foi destituído e vejo que estava certo ao manter meu interesse por ele. Percebeu a vulgaridade e o delírio de poder de Bolsonaro e segue seu caminho.

Infelizmente, nem todos se comportam assim. Tive poucos contatos com o general Heleno. O primeiro foi no Haiti, quando ele comandava a força da ONU. O segundo, na Amazônia; chegamos a viajar juntos para as terras ianomâmi. Heleno teve uma curta passagem como comentarista de TV, na Band, analisava segurança pública.

Sua trajetória é de adesão total ao projeto Bolsonaro. Ao colocar Abin e GSI na busca de uma defesa para as trapalhadas de Flávio, ele se revelou um samurai da família Bolsonaro.

Mergulhou tão rancorosamente no passado que manda espiões para encontros internacionais que tratam do tema essencial para o futuro do Brasil: o meio ambiente.

Trajetória estranha também é a do general Pazuello, a quem não conheci pessoalmente, apesar de ter visitado as instalações da Operação Acolhida em Roraima. Pazuello foi desautorizado publicamente por Bolsonaro, em seguida posou ao lado do presidente e disse simplesmente: “Um manda, e o outro obedece”.

Espontaneamente, ele igualou suas funções à de um varredor da porta do quartel. E nos deu uma antevisão da situação calamitosa da saúde no Brasil: ele simplesmente obedece a Bolsonaro, uma das pessoas mais obtusas nesse campo, para não falar de vários outros.

Como se não bastasse tudo isso, o ministro Ricardo Salles chama o general Ramos de Maria Fofoca nas redes sociais, e nada acontece com ele.

Alguns analistas acham que Bolsonaro tem prazer em humilhar generais, para compensar seu fracasso no Exército. Não me interessa tanto o lado psicológico. O mais importante para mim é lembrar que a humilhação de generais repercute no respeito ou desprezo que as pessoas têm pelas Forças Armadas.

O desprezo pelas Forças Armadas, por sua vez, repercute na política de segurança nacional. Não é possível que, por um dinheirinho a mais os militares, ocupem um governo destruidor e incapaz e ameacem com isso sua função constitucional específica.

Não precisamos de Forças Armadas para derrubar essas aberrações momentâneas. Nos Estados Unidos, Trump pode ir para o espaço com as eleições. Derrotaremos Bolsonaro e quantos militares estiveram ao seu lado. Não é esse o problema.

O que faremos com a vitória se o sentimento elementar de honra abandonar nossas Forças Armadas?

Uma das consequências mais nefastas do governo Bolsonaro foi ter comprometido as Forças Armadas. Todo o trabalho de recomposição no período democrático pode estar se perdendo, de alguma forma.

Não há presos políticos nem tortura, é verdade. Mas os problemas são de outra natureza, as consciências despertas para novas realidades. Um pobre general abraçado à cloroquina, espionando encontros internacionais, sendo chamado de Maria Fofoca — tudo isso é demonstração de que a insanidade sentou praça.