segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Pensamento do Dia

 


A tragédia Ianomâmi envergonha a nação

Em março de 2014, o fotógrafo Sebastião Salgado realizou uma expedição à Terra Indígena Ianomâmi. Em seus registros estão a tradicional festa fúnebre Reahu, realizada na aldeia Demini, morada do líder Davi Kopenawa, e a subida ao Pico da Neblina com um grupo de xamãs Ianomâmi, fotos publicadas na edição digital do Washington Post, naquela ocasião. Em preto e branco, são imagens fortes e fascinantes, como são todas que o consagraram o fotógrafo brasileiro. Como na exposição “Genesis”, aquele ensaio passa o mesmo sentimento de um lugar num tempo diferente do nosso. Salgado já havia percorrido a região nos anos 70 e 90 do século passado. Um poster dos Ianomâmi olhando para o Yaripo, o cume do Pico da Neblina, no site do Instituto Terra, custa R$ 250. São indígenas alegres, bonitos, robustos e saudáveis.

Ontem, quando me preparava para escrever mais uma coluna sobre as relações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com as Forças Armadas, o assunto da semana, cujo desfecho foi a troca de comando do Exército, recebi do meu amigo Jorge Venâncio, médico sanitarista que conheço desde os nossos tempos de estudante, uma série de 16 fotos coloridas de crianças, jovens, adultos e idosos Ianomâmi que parecem cenas de um campo de concentração nazista. Foram distribuídas pelos líderes Ianomâmi e são a realidade nua e crua de uma aldeia da Reserva Ianomâmi em Roraima, após a chegada dos garimpeiros à região. Situação tão grave que levou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a visitar o local, apesar da crise militar. A situação envergonha a nação e corrobora o acerto da criação do Ministério dos Povos Indígenas.


Somente neste ano, 99 crianças do povo Ianomâmi morreram devido ao avanço do garimpo ilegal na região. As vítimas foram crianças entre um e 4 anos. As causas da morte são, na maioria, por desnutrição, pneumonia e diarreia. Estima-se que 570 crianças foram mortas pela contaminação por mercúrio, desnutrição e fome. Além disso, em 2022 foram confirmados 11.530 casos de malária no Distrito Sanitário Especial Indígena Ianomâmi, distribuídos entre 37 Polos Base. As faixas etárias mais afetadas são as maiores de 50 anos, seguidas pela faixa etária de 18 a 49 e 5 a 11 anos. Devido ao caos sanitário, o Ministério da Saúde decretou emergência de saúde pública.

O ex-presidente Jair Bolsonaro é o grande responsável pelo que ocorreu. Não só sufocou os órgãos responsáveis pela assistência aos indígenas como liberou o garimpo ilegal no país. O que lhe falta de empatia em relação aos índios, sobra de apoio aos garimpeiros, talvez porque tenha sido um deles nos tempos em que serviu o Exército em Goiás. Bolsonaro não tem nenhum laço de ancestralidade com os indígenas brasileiros.

Como se sabe, esse é o fio da vida, da sabedoria, da identidade, do pertencimento e da criatividade, que tece o passado, o presente e o futuro, formando uma teia de relações que conecta a humanidade. É também a memória que transcende o espaço e o tempo para recriar futuros possíveis e saudáveis. Pensar em todas as pessoas que vieram antes de você é entender que há algo muito maior dentro de nós, um caminho que vem sendo traçado de várias formas, inclusive culturalmente. Os negros brasileiros buscam essa ancestralidade para combater o racismo estrutural; para preservar suas terras e sobreviver, os indígenas brasileiros também, principalmente depois Constituição de 1988.

Falamos muito da riqueza e da biodiversidade da Amazônia, mas pouco do tesouro cultural que ela abriga. A antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss (1908-2009), grande intelectual belgo-francês, não existiria sem nossos indígenas, nem ele seria um dos maiores pensadores do século passado. Convidado a lecionar na recém-criada Universidade de São Paulo, através de uma missão universitária francesa, de 1935 a 1939, Lévi-Strauss fez diversas expedições pelo interior brasileiro, onde estudou comunidades indígenas e teve a sua grande vocação para a etnologia desperta. O registro dessas viagens está presente em Tristes Trópicos (1955), um clássico da antropologia, que também fez dele um dos grandes intérpretes do Brasil.

Contrário à ideia de superioridade e privilégio da civilização ocidental, Lévi-Strauss acreditava e enfatizava que a mente selvagem e tribal é igual à mente civilizada. Seus estudos baseados na linguagem e linguística possibilitaram novas perspectivas também para a psicologia entender como a mente humana trabalha. “Meu único desejo é um pouco mais de respeito para o mundo, que começou sem o ser humano e vai terminar sem ele — isso é algo que sempre deveríamos ter presente”, disse em 2005. Não à toa, o imaginário Ianomâmi quer salvar o mundo.

Para eles, urihi, a terra-floresta, não é um mero espaço inerte de exploração econômica. Trata-se de uma entidade viva, inserida numa complexa dinâmica cosmológica de intercâmbios entre humanos e não-humanos, que hoje está ameaçada pela ação dos garimpeiros e outros predadores. O líder Ianomâmi Davi Kopenawa explica: “A terra-floresta só pode morrer se for destruída pelos brancos. Então, os riachos sumirão, a terra ficará friável, as árvores secarão e as pedras das montanhas racharão com o calor. Os espíritos xapiripë, que moram nas serras e ficam brincando na floresta, acabarão fugindo. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los para nos proteger. A terra-floresta se tornará seca e vazia. Os xamãs não poderão mais deter as fumaças-epidemias e os seres maléficos que nos adoecem. Assim, todos morrerão.”

Ninguém merece ser pobre

Não dá realmente para acreditar que uma pessoa pobre tenha votado no Bolsonaro. Mas teve. Alguma distorção ideológica, muita fake News, algum preconceito e as igrejas neo pentecostais. Eu pergunto: O que o governo Bolsonaro fez pelos pobres? Absolutamente nada e isso só considerando os pobres nas regiões urbanas. Se ampliamos nossa pergunta aos indígenas, nordestinos, negros e outros grupos segregados ai a resposta é zero pra menos. Além de não ter feito nada criou condições para que o extermínio dos povos originários, por exemplo, avançasse. O que vemos hoje nas terras Yanomamis fez com que o presidente Lula e Sonia Guajajara fossem até lá para uma intervenção de emergência.

Estão morrendo de fome e de doença. Povos abandonados e envenenados pelo mercúrio liberado ao garimpo pelo governo criminoso que foi derrotado nas urnas.


A pobreza vem acompanhada da desassistência, do abandono e da morte. Como os indígenas, as populações de rua que aumentam a cada noite que passa também morrerão. Aliás essa era a ideia. Além de não interessar a mínima ao governo que passou a existência dessa gente, morrer era o plano. Alías Guedes pregava esa política ao culpar os pobres pelos problemas. Realmente para eles os pobres, indígenas, negros e desempregados são os responsáveis pelo fracasso da política econômica neoliberal. E sse gente não morre, deviam pensar entre uma taça de vinho e outra. Na realidade todos morrem. O que nos resta é o tempo de vida aqui na terra que deveria ser vivido de modo mais justo.

Acabar com a pobreza não é mole, mas é possível e já vivemos isso. Saímos do grupo de miseráveis quando Lula foi eleito a primeira vez e agora, na terceira vez ele não pode deixar isso de lado. Tratar das feridas deixadas nesse povo sofrido não vai dar tréguas ao governo Lula. E as pessoas vão ficar de marcação. Não dá para considerar as oscilações do Mercado de capoitais quando tem um povo inteiro morrendo de fome e doença. Lula tem que salvar o povo brasileiro que tem fome e não a Bolsa de valores. A bolsa faz parte de todo o sistema de economia do capitalismo mas não é determinante como queria Guedes e sua turma. É atrativo para o capital estrangeiro como também é um povo que come, mora dignamente, estuda e trabalha. Um mercado que não leva isso em consideração é um mercado distorcido, feito para enriquecer aqueles poucos que ainda têm dinheiro. Ter dinheiro hoje deveria mudar de definição. Não deveria ser acumular nos investimentos e nos imóveis. Deveria ser ter o bastante para ser feliz, poder comer dignamente, conhecer novos lugares e novas culturas. Sei que é uma utopia. Já ganhei muito mais do que ganho duramente hoje mas acho que sou mais feliz assim. Claro que mais tranquilidade ajuda na busca pela felicidade. Mas isso nós vamos conseguir e o caminho para se chegar lá já ajuda. A exploração é um crime e a poreza uma punição que ninguém deveria sofrer. Viva os povos originários, os pobres e todos aqueles que lutam para sobreviver. Que a vida seja um prêmio.

Espoliação como vício

Tão logo solto, o ex-governador do Rio voltou à memória dos jornais a sua admissão pública de corrupção compulsiva, nos termos de vício em poder e dinheiro. É uma fala espantosa, porque sincera e confirmadora de um fenômeno que afeta, em escalas diferentes, a classe política no mundo inteiro. O que singulariza essa confissão é tanto o tamanho quanto a exibição pública da defraudação. "Taxa de oxigênio" era o nome debochado da propina.

Além da sofreguidão quadrilheira, mobiliza o espanto do senso comum o mecanismo do vício alegado, isto é, da insatisfação pessoal com a mera posse de milhões, donde o desejo compulsivo de ir adiante. "Eu exagerei", prosternou-se o político. Esse é, na verdade, um aspecto inerente à força corruptiva do dinheiro, mas que ressoa como amor em Mefistófeles numa obra notável da literatura russa: "É preciso tomar as pessoas como elas são...Elas amam o dinheiro, mas foi sempre assim... A humanidade ama o dinheiro, seja feito de qualquer coisa: de pergaminho, de papel, de bronze ou de ouro" ("O Mestre e Margarida", de Mikhail Bulgakov). Nisso, o economista suíço Hans Binswanger vê "uma força de atração tão imensa que pouco a pouco suga todas as áreas da vida para seu vórtice".


Dinheiro não é apenas valor de troca, mas incremento de fantasias de eternidade e poder que, não raro, beiram a loucura. Daí o vício. Mas o cerne social da questão consiste em saber como isso acontece na esfera pública, ou melhor, como é possível a continuidade da prática espoliativa, uma administração após outra. Sobre o Rio, explicações meramente políticas vinculam as linhas mestras do fenômeno a uma organização partidária dependente de fisiologismo secular. Uma chaga histórica próxima à de outras regiões nacionais.

Nada disso, entretanto, dá conta da facilidade com que administrações estaduais e municipais descambam para a corrupção, viciante como um jogo. Uma hipótese é a de que a privatização do Estado, macrofenômeno do patrimonialismo brasileiro, tenha inflexão acentuada na paisagem fluminense, onde sucessivas dinastias de famílias e clãs se ampliam por "sócios ocultos" em currais eleitorais.

Na deslavada promiscuidade territorial entre Estado e organizações criminosas floresce a violência social. Por outro lado, o mal que espreita nas sombras de toda esfera pública vive solto na buraqueira local, sob a forma de fraudes e peculato. A desenvoltura benfazeja à beira de praia é tenebrosa em sede de governo. Na encruzilhada do crime, entretanto, ainda se perfila institucionalmente o risco da penitenciária de Bangu que no verão, dizem, é quente como o inferno, com taxa de oxigênio sofrível.

O mal das pessoas de bem

Quando bolsonaristas foram presos pela tentativa de golpe de estado em 8 de janeiro, teve gente que comemorou quando começaram a pedir respeito aos direitos humanos e a falar em devido processo legal, como se tivessem “aprendido algo” com essa experiência. Mas quem comemorou não entendeu nada. Prisões nunca ensinaram nada a ninguém, e não seria agora que essa regra universal conheceria sua primeira exceção.

A prova de que a extrema-direita não havia aprendido nada com as prisões dos seus apareceu na mesma semana, quando as mesmas vozes que haviam acabado de denunciar as supostas condições “desumanas” dos prisioneiros golpistas — obrigados, coitados, a comerem macarrão com nuggets (oh, humanidade!) — passaram a denunciar um suposto aumento do auxílio-reclusão, chamado por esse povo de “bolsa bandido”.

A indignação demonstrada contra o benefício foi de chamar a atenção. E não ocorreu só porque os extremistas houvessem sido alimentadas com fake news a respeito dos valores do auxílio-reclusão. Era um ódio tão intenso e violento que deixava claro que essa gente simplesmente não conseguia suportar a mera ideia de que a família de uma pessoa aprisionada pudesse receber alguma remuneração do Estado, não importasse quanto, ou como, ou em que condições.

Tanta indignação soa surpreendente quando a gente pensa que as famílias dos presos só estão recebendo algo pelo qual elas pagaram — afinal, apenas detentos que tenham contribuído com o INSS podem receber o auxílio, que é destinado somente a seus dependentes — e como esse benefício é restrito. No ano passado, como mostrou a reportagem de Jeniffer Mendonça, a quantidade de auxílios-reclusão ativos de dependentes de presos era de apenas 35.616, um número minúsculo diante de uma população prisional de mais de 700 mil pessoas, que deixaram aqui fora milhões de dependentes.

Mas como assim?, alguém pode perguntar. Os conservadores não estavam até ontem falando em direitos humanos para prisioneiros e agora estão chamando auxílio-reclusão de “bolsa bandido”? Não é contraditório? Na verdade, não. Nunca foi. O que acontece é que há uma visão de mundo de parte significativa da elite brasileira, que se encontra disseminado entre largos setores dos operadores do sistema de justiça, dos empresários, do jornalismo e de praticamente todos os integrantes das Forças Armadas, que nunca aceitou a ideia de direitos humanos. O lema “direitos humanos para humanos direitos”, nesse sentido, é literal e expressa algo bem mais profundo do que uma mera palavra de ordem.

A indignação com as prisões dos golpistas ocorreu não pelas prisões em si, mas pelo fato de terem sido praticados contra pessoas iguais a elas, que naõ são as que merecem ser presas: “pessoas de bem”, “trabalhadores”, “pagadores de impostos”, gente que “não é bandido”. Rótulos, enfim, que servem para delimitar uma categoria diferente de seres, que não merece ser tratada como se tratam aqueles que chamam de “bandidos”, “baderneiros”, “vagabundos”.

É uma visão de mundo que tem muito pouca relação com os crimes que essas pessoas possam vir a praticar, mas que tem tudo a ver com classe social, cor da pele, valores, onde moram. Um morador de favela será sempre um “vagabundo” em potencial, tanto mais se for negro. Mesmo que seja uma criança morta a tiros, vão dizer que estava armada e portanto merecia ser abatida. Agora, se um “cidadão de bem”, branco, rico e conservador, como Roberto Jefferson, atira granadas contra a polícia, a situação muda totalmente de figura. Os conservadores, incluindo aí a polícia, vão continuar a enxerga-lo como um ser humano, alguém com direitos a serem respeitados, que deve ser preso com vida e ainda tratado com urbanidade e deferência.

Essa visão de mundo também se expressa na constante reclamação sobre a Constituição brasileira prever “muitos direitos e poucos deveres. Por trás dessa fala, está a ideia de que “direitos” não são algo inerentes a todos os humanos — porque, para começo de conversa, esse povo nem acredita que exista uma humanidade comum. “Direitos”, segundo essa visão de mundo, são como dádivas a serem concedidas a quem tem condições de cumprir determinados “deveres”.

A herança dos genocídios e da escravidão de negros e indígenas, claro, está na origem dessa visão de mundo tão profundamente aristocrática. Durante séculos os dirigentes do Brasil se acostumaram a ver escravos como não humanos, que só poderiam se transformar em pessoas com direitos mediante a concessão de cartas de alforria. Direitos vistos como graça, como merecimento, como presente, nunca como algo inerente à humanidade.

O mais louco é que, por mais aristocráticas e pré-modernas que possam soar, essas ideias não estão amontoadas em nossa sociedade como resíduos de um tempo antigo, como lixo da história destinado a ser varrido. Noções racistas e contrárias aos direitos humanos não envelhecem, ao contrário, dão um jeito de se metamorfosear e se combinar com as práticas e ideologias capitalistas de última ponta, passando a integrar as últimas novidades. É por isso que vamos encontrar reflexos dessa visão contrária aos direitos humanos e à ideia de que pessoas são iguais incorporadas no discurso liberal do Partido Novo ou de empresários do agronegócio, nas ideias de “tolerância zero” defendidas por governadores, procuradores e desembargadores.

Os bolsonaristas que atacaram os prédios dos Três Poderes, infelizmente, são apenas a face mais tosca de uma visão de mundo amplamente disseminada, inclusive por diversas classes sociais, que vamos precisar seguir combatendo. Por mais que pareça simples, ou trivial, não é. No Brasil do século 21, como nos anteriores, o maior desafio é lutar para que todos os humanos do país sejam vistos, simplesmente, como humanos.
Fausto Salvadori