Ontem, quando me preparava para escrever mais uma coluna sobre as relações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com as Forças Armadas, o assunto da semana, cujo desfecho foi a troca de comando do Exército, recebi do meu amigo Jorge Venâncio, médico sanitarista que conheço desde os nossos tempos de estudante, uma série de 16 fotos coloridas de crianças, jovens, adultos e idosos Ianomâmi que parecem cenas de um campo de concentração nazista. Foram distribuídas pelos líderes Ianomâmi e são a realidade nua e crua de uma aldeia da Reserva Ianomâmi em Roraima, após a chegada dos garimpeiros à região. Situação tão grave que levou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a visitar o local, apesar da crise militar. A situação envergonha a nação e corrobora o acerto da criação do Ministério dos Povos Indígenas.
Somente neste ano, 99 crianças do povo Ianomâmi morreram devido ao avanço do garimpo ilegal na região. As vítimas foram crianças entre um e 4 anos. As causas da morte são, na maioria, por desnutrição, pneumonia e diarreia. Estima-se que 570 crianças foram mortas pela contaminação por mercúrio, desnutrição e fome. Além disso, em 2022 foram confirmados 11.530 casos de malária no Distrito Sanitário Especial Indígena Ianomâmi, distribuídos entre 37 Polos Base. As faixas etárias mais afetadas são as maiores de 50 anos, seguidas pela faixa etária de 18 a 49 e 5 a 11 anos. Devido ao caos sanitário, o Ministério da Saúde decretou emergência de saúde pública.
O ex-presidente Jair Bolsonaro é o grande responsável pelo que ocorreu. Não só sufocou os órgãos responsáveis pela assistência aos indígenas como liberou o garimpo ilegal no país. O que lhe falta de empatia em relação aos índios, sobra de apoio aos garimpeiros, talvez porque tenha sido um deles nos tempos em que serviu o Exército em Goiás. Bolsonaro não tem nenhum laço de ancestralidade com os indígenas brasileiros.
Como se sabe, esse é o fio da vida, da sabedoria, da identidade, do pertencimento e da criatividade, que tece o passado, o presente e o futuro, formando uma teia de relações que conecta a humanidade. É também a memória que transcende o espaço e o tempo para recriar futuros possíveis e saudáveis. Pensar em todas as pessoas que vieram antes de você é entender que há algo muito maior dentro de nós, um caminho que vem sendo traçado de várias formas, inclusive culturalmente. Os negros brasileiros buscam essa ancestralidade para combater o racismo estrutural; para preservar suas terras e sobreviver, os indígenas brasileiros também, principalmente depois Constituição de 1988.
Falamos muito da riqueza e da biodiversidade da Amazônia, mas pouco do tesouro cultural que ela abriga. A antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss (1908-2009), grande intelectual belgo-francês, não existiria sem nossos indígenas, nem ele seria um dos maiores pensadores do século passado. Convidado a lecionar na recém-criada Universidade de São Paulo, através de uma missão universitária francesa, de 1935 a 1939, Lévi-Strauss fez diversas expedições pelo interior brasileiro, onde estudou comunidades indígenas e teve a sua grande vocação para a etnologia desperta. O registro dessas viagens está presente em Tristes Trópicos (1955), um clássico da antropologia, que também fez dele um dos grandes intérpretes do Brasil.
Contrário à ideia de superioridade e privilégio da civilização ocidental, Lévi-Strauss acreditava e enfatizava que a mente selvagem e tribal é igual à mente civilizada. Seus estudos baseados na linguagem e linguística possibilitaram novas perspectivas também para a psicologia entender como a mente humana trabalha. “Meu único desejo é um pouco mais de respeito para o mundo, que começou sem o ser humano e vai terminar sem ele — isso é algo que sempre deveríamos ter presente”, disse em 2005. Não à toa, o imaginário Ianomâmi quer salvar o mundo.
Para eles, urihi, a terra-floresta, não é um mero espaço inerte de exploração econômica. Trata-se de uma entidade viva, inserida numa complexa dinâmica cosmológica de intercâmbios entre humanos e não-humanos, que hoje está ameaçada pela ação dos garimpeiros e outros predadores. O líder Ianomâmi Davi Kopenawa explica: “A terra-floresta só pode morrer se for destruída pelos brancos. Então, os riachos sumirão, a terra ficará friável, as árvores secarão e as pedras das montanhas racharão com o calor. Os espíritos xapiripë, que moram nas serras e ficam brincando na floresta, acabarão fugindo. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los para nos proteger. A terra-floresta se tornará seca e vazia. Os xamãs não poderão mais deter as fumaças-epidemias e os seres maléficos que nos adoecem. Assim, todos morrerão.”
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