sábado, 6 de setembro de 2025

Pensamento do Dia

 


O 'patriota'


O patriotismo é o último refúgio do patife

Samuel Johnson

Anistia deve dar com os burros n'água

Nossa Câmara assinará atestado de burrice se pautar e aprovar a anistia a Bolsonaro e outros mandantes do golpe de Estado antes que o Supremo termine o julgamento. Julgar anistia antes de julgar crime é confissão precoce de culpa.

Esses deputados da direita agem atabalhoadamente, como vândalos. A Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ) já disse que não vai pautar essa discussão por ser inconstitucional. Ou seja, a tal anistia ampla, geral e irrestrita para os golpistas não teria como chegar a ser votada no Senado. O adulto no parquinho acabará sendo Alcolumbre.

Além de agir contra os interesses da população – o que já se tornou um hábito –, a Câmara também seria desmoralizada pelo Supremo se aprovasse essa anistia, por atentar contra a Constituição. Não temos como exigir do Centrão um compromisso com a democracia, só com a blindagem e o fisiologismo.

Nem se pode exigir coerência do governador de SP, Tarcísio de Freitas, que joga todas as fichas e seu futuro político numa lealdade oportunista a Bolsonaro. O tal “Punhal verde e amarelo” pode virar bumerangue. Um haraquiri. Tarcísio buscava o disfarce da moderação, mas acabou rasgando as vestes.

Se existe um mérito na cruzada de Tarcísio, é revelar ao Brasil quem é quem. Ao deixar São Paulo para trás e correr a Brasília, alardeando que seu primeiro ato como eventual presidente da República seria perdoar o atual réu, o governador compra o apoio da família Bolsonaro. E se coloca como cúmplice de uma tentativa de golpe. Quem votar nele em 2026 já sabe o que pode esperar. Não tem isentão aí.

Procuro encarar o alvoroço por esse ângulo positivo. Hugo Motta ganhou um presentão. Está nas suas mãos colocar o Poder Legislativo no lado certo da História. Caso ceda à pressão, recue de sua posição anterior e coloque em votação a anistia, simultaneamente ao julgamento no Supremo, a Câmara se arrisca a afundar junto.

Porque até as defesas dos generais confirmam a tentativa de golpe. A estratégia dos advogados dos réus é culpar o mensageiro Cid, anular a delação e se desvencilhar de Bolsonaro. O ex-presidente se tornou uma companhia tóxica para militares e ministros.

Ninguém tem nada a ver com medidas de exceção nem minutas golpistas nem planos para assassinar Lula e Moraes. Tudo não teria passado de desejos íntimos expressos em mensagens entre camaradas. Foram só conjecturas, pensamentos, estudos. E Bolsonaro foi “dragado” para a trama, segundo seu advogado.

A turba acampada em Brasília estava ali só para desfrutar de churrascos gratuitos e do ar seco da Capital. Os extremistas aproveitaram as viagens aos EUA, de Bolsonaro e do ministro da Justiça, para fazer uma farra na Praça dos Três Poderes. Depredaram os Palácios do Planalto, do Supremo e do Congresso.

Quem diz que “tentativa de golpe não é crime” ignora deliberadamente um fato. Se o golpe de estado tivesse acontecido, não estaríamos aqui falando nada, escrevendo nada, julgando nada. Os golpes bem sucedidos instalam ditaduras que censuram, silenciam, torturam, matam, exilam.

O Poder Legislativo não legisla nada em ditaduras. Motta e Alcolumbre não vão querer essa mancha na biografia. A tentativa de aprovar em regime de urgência uma anistia ampla e irrestrita na Câmara, confrontando o Judiciário antes do fim do julgamento no STF, vai dar com os burros n’água. E saberemos quem são os burros.

Ruth de Aquino


A nossa bela língua bastarda

O linguista português Marco Neves tornou-se conhecido ao publicar nas redes sociais vídeos sobre a origem das palavras, e outros temas ligados aos mistérios da nossa língua comum. Marco publicou um número impressionante de ensaios sobre os mesmos temas, entre os quais “Queria, já não quer? — Mitos e disparates da língua portuguesa”. Na quarta-feira passada conversei com ele, em Lisboa, durante um evento organizado pela Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, APEL, para refletir sobre o “futuro da leitura”.

O crescimento da extrema direita portuguesa trouxe para as ruas uma guerra cultural que não poupa nada nem ninguém. Também a língua se transformou num confuso campo de batalha. Os ultranacionalistas portugueses mostram-se muito irritados com a suposta “colonização” do seu país pelo português brasileiro. Ficam desorientados, e ainda mais enraivecidos, sempre que alguém lhes chama a atenção para as inúmeras contradições — como podem orgulhar-se da força global da língua, e, ao mesmo tempo, desprezar as variedades brasileiras, sabendo-se que há hoje 212 milhões de brasileiros e apenas dez milhões de portugueses?

Quem quer que ame e se interesse pela língua portuguesa tem de se interessar por todas as suas variedades e por todos os seus sotaques.


Sempre que, num dos seus vídeos, Marco Neves chama a atenção para a etimologia árabe de uma determinada palavra — na nossa língua há largos milhares de palavras originárias do árabe — surgem logo dezenas de pessoas tentando negar essa evidência, ou acusando-o de “ser obcecado” pelos arabismos.

Existem mesmo extremistas defendendo que se “depure” a língua portuguesa de arabismos, brasileirismos e africanismos. Gostaria de escutar essas pessoas tentando falar português sem recorrer a todas essas palavras. Deve ser algo parecido com jogar tênis sem utilizar raquetes — e nem as mãos.

Cada palavra da nossa língua tem uma história para contar. Histórias de encontros, de viagens, de violências, de paixões, de amores e desamores. Cada uma dessas histórias constitui um capítulo de um vasto romance, no qual estão representados todos os povos do vasto mundo onde se vem inventando a língua portuguesa — além dos crioulos de matriz portuguesa. Esses crioulos guardam verdadeiras joias linguísticas, arcaísmos, palavras que se extinguiram no português do Brasil e de Portugal, mas que ali se mantêm vivas, vibrantes e luminosas.

Num episódio recente, uma deputada do partido de extrema direita Chega, Rita Cid Matias, queixou-se no Parlamento de que nas escolas portuguesas há cada vez mais crianças com nomes árabes.

— O seu nome também é árabe — lembrou-lhe uma outra deputada. — Cid vem do árabe Said. Significa chefe.

Rita negou, horrorizada. O episódio diz muito sobre a pobreza intelectual da extrema direita. Seria até bom se estes extremistas concretizassem o propósito de expurgar do seu português todos os arabismos, africanismos e brasileirismos — ficariam mudos!

Oportunidade única

Jair Bolsonaro é um veterano frequentador de tribunais superiores na figura de réu. Ele está acostumado ao fugaz estrelato, seguido de acusações e julgamentos. Ainda militar, jovem, impetuoso, ameaçou jogar bombas na escola militar que frequentava por causa de baixos salários. Criou muita confusão, fez discursos em porta de quartel, tentou sublevar seus colegas de farda e acabou punido pela instituição com prisão e, posteriormente, julgamento, que deveria conduzi-lo à expulsão do Exército. Fez acordo com oficiais graduados e conseguiu ser colocado na reserva remunerada com a patente de capitão. Essa vida militar, rápida e tumultuada, o levou a descobrir as delícias da política.


Ele percebeu que, apesar de sua loucura, era ouvido por militares e civis desgostosos com os rumos do país. Há malucos de todos os calibres soltos na sociedade brasileira. Uns até juram receber o espírito do saudoso Ulysses Guimarães. E há quem acredite. Mas Bolsonaro ficou no plano terreno. Ele disse que os militares deveriam ter matado mais de 30 mil brasileiros para restabelecer a ordem dentro do país. Fez reiterados elogios à tortura e aos torturadores. Pleiteou o retorno do país aos tempos de AI-5 e da censura da imprensa. E foi um presidente da República singular: não defendeu seu povo na pandemia. Dizia que a covid era uma "gripezinha", que não o afetaria porque tinha perfil de atleta. E, além disso, não tinha nada a ver com a morte de milhares de brasileiros porque "não era coveiro".

Como um cometa da política, atravessou o cenário brasileiro e desapareceu no horizonte das medidas judiciais. Um dia as provocações contra os poderes institucionais deixaram de assumir o caráter irresponsável para se transformar em pesadelo. Conheceu os limites. Disse que não mais cumpriria decisões judiciais. Mas terminou sentado no banco dos réus. Naquele instante, o Brasil deixou de pertencer ao reino do realismo fantástico da América Latina para emergir como sociedade razoavelmente organizada sob o controle das leis. Bolsonaro é um veterano frequentador de tribunais. Para ele, é apenas mais um degrau no caminho do esquecimento. A Ação Penal 2.668 abre uma nova página na história do país. Tempo novo, desconhecido e ainda por ser explorado. As reações serão fortes, a começar pela obtusidade do atual governo norte-americano.

Ele está inelegível, preso em casa e com tornozeleira eletrônica à espera da condenação. Haverá esforço contrário, de forças políticas que se sentem prejudicadas pelo simples fato de que, no Brasil, existem leis que devem ser aplicadas a qualquer cidadão. Há uma antiga tentativa de votar algum tipo de anistia para os que participaram do movimento de 8 de janeiro de 2023. Quem esteve por perto viu que não foi um passeio no parque, nem uma brincadeira de bêbados no domingo. Foi algo profissional, como o arrombamento do teto do Congresso, que dá acesso ao Salão Verde e foi alcançado graças a uma escada de cordas. Coisa de profissional. Antes ocorreu o episódio da bomba no Aeroporto de Brasília. Os fatos foram largamente expostos. Fugir deles é covardia. Eles são de uma clareza capaz de afetar até olhos menos sensíveis.

O fato é que a República brasileira é, desde seu primeiro dia, uma cascata de crises institucionais, que sempre opuseram civis a militares. Há uma sucessão incrível de golpes, tentativas de golpes e contragolpes ao longo dos anos republicanos no Brasil. O sistema presidencialista é uma fábrica de crises. A Ação Penal 2.668 abre a perspectiva única de que haja uma inflexão na história política do Brasil e o país se encontre com suas realidades. A presença de generais de alta patente no banco dos réus é mais relevante que o eventual destino de Jair Bolsonaro. O país, afinal, coloca-se diante de seu verdadeiro problema institucional. Militares e civis precisam aprender a conviver no mesmo ambiente político.

O inimigo brasileiro é externo. Não está dentro do país, embora sempre existam traidores de todos os matizes. A moderna questão nacional é o tráfico internacional de drogas, armas e de dinheiros suspeitos que frequentam altas rodas da sociedade. O acordo entre União Europeia e Mercosul, que está na véspera da aprovação, terá força para modificar e modernizar a economia dos países do continente. Nele há uma cláusula democrática. O Brasil precisa se livrar do passado autoritário e se preparar para o novo tempo, que exige do governante decisões rápidas e precisas. A missão da geração que realizou a Constituinte de 1988 se concluiu no julgamento da Ação Penal 2.668. A partir de agora, há um mundo inexplorado à frente dos políticos brasileiros. Compete a eles aproveitar ou não essa oportunidade única.

Fim da impunidade

O julgamento de Jair Bolsonaro e seus comparsas sinaliza para o fim da impunidade ao golpismo no Brasil. Entre as décadas de 1960 e 1980, a América do Sul foi marcada por ditaduras, várias delas patrocinadas pelos EUA no contexto da Guerra Fria. No Paraguai, Brasil, Bolívia, Chile, Uruguai e Argentina, os militares implantaram regimes autoritários que demonstravam uma articulação regional em torno de um modelo comum: repressão interna, violência política, eliminação de opositores e o combate a movimentos ligados aos interesses populares e à justiça social.


As ditaduras do Cone Sul se notabilizaram pela extrema violência. No Chile, mais de 3 mil opositores políticos foram assassinados, cerca de 40 mil sofreram medidas repressivas e, aproximadamente, 200 mil foram forçados ao exílio. Na Argentina, a repressão foi ainda mais brutal: os militares assassinaram cerca de 30 mil indivíduos. No Brasil, a Comissão Nacional da Verdade reconheceu 434 mortos e desaparecidos, além de estimar que ao menos 50 mil cidadãos foram vítimas de algum tipo de perseguição política. Há, porém, quem considere que esses números estejam subestimados.

Nos períodos pós-ditadura, os países sul-americanos seguiram caminhos distintos na responsabilização dos agentes do Estado que cometeram graves violações aos direitos humanos. Na Argentina, mais de 1,2 mil militares e civis foram condenados, muitos deles à prisão perpétua, incluindo integrantes da ­cúpula dos regimes ditatoriais. No Brasil, os condenados não chegam a cinco. Considerando os recursos judiciais, não há, a rigor, nenhum com sentença de prisão definitiva. A Lei da Anistia impediu que os responsáveis fossem punidos – um erro histórico, pois anistia não é pacificação, é estímulo ao crime. A impunidade mantém vivas as ameaças golpistas, como ficou evidente na conspiração liderada por Bolsonaro.

O julgamento do chamado “núcleo crucial” da intentona bolsonarista – a incluir o ex-presidente, generais e ministros – representa uma oportunidade histórica para o Brasil fechar as portas ao golpismo e estabelecer uma nova doutrina militar: apartada da política, orientada pelo profissionalismo e subordinada ao poder civil. Até porque, em uma República, é o povo que escolhe seus representantes nas urnas. A atividade militar deve ser compreendida como um serviço à nação e à sociedade. Os fardados não devem ser nem desprezados nem agraciados com privilégios, muito menos protegidos por mecanismos de impunidade.

Há provas robustas de que houve o planejamento de um golpe militar com o objetivo de manter Jair Bolsonaro no poder e impedir a posse dos eleitos, Lula e Alckmin. O plano também tinha, como um dos seus principais alvos, o Judiciário – especialmente o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral –, pois a ­anulação de seu funcionamento independente removeria os mecanismos de contenção institucional ao golpe.

No contexto do julgamento, o que está demonstrado é que o golpismo continua em andamento. Os bolsonaristas não aceitam submeter-se às instituições democráticas. Agem para coagir o STF ao poder arbitrário do governo Trump. Há poucos dias, tomaram de assalto a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, visando impedir o funcionamento da democracia. Foi uma continuidade do 8 de Janeiro. Querem impor uma anistia a qualquer custo, evadindo-se das responsabilidades pelos crimes que cometeram.

Com esse cenário de pressões e tensões, os julgadores do STF precisam ter o equilíbrio, a responsabilidade e a serenidade para produzir um resultado justo. Em caso de condenação, as penas não podem ser tão escassas que pareçam impunidade. E não podem ser tão excessivas que pareçam vingança. Precisam ser justas, pois só assim criarão as condições para conduzir o País, as opiniões e os grupos políticos à aceitação dos resultados.

O Brasil precisa aprender que o conflito é inerente à democracia, mas deve ocorrer dentro de critérios e limites compatíveis com o regime democrático. Os deputados precisam compreender que um Judiciário independente – guardião da Constituição e garantidor da constitucionalidade dos atos do Legislativo e do Executivo – é condição fundamental para a existência de uma república democrática. Essa é uma ordem política inegociável para aqueles que reconhecem que o processo civilizatório das sociedades caminha no ­sentido­ do universalismo dos direitos, da liberdade, da igualdade, da justiça e da preservação das condições de vida no planeta.

Alucinação neofascista e determinação algorítmica

Haveria uma relação entre alucinação, levante neofascista e determinação algorítmica? Costuma-se afirmar que já não existe separação entre vida offline e online. Os gestos, antes transformadores do espaço e do tempo, hoje tendem a se reduzir a enquadramentos destinados à cena digital. As ações, em grande parte, voltam-se para a viralização. Algumas, de fato, alcançam ampla circulação. Outras se espalham justamente por dizerem o contrário do que se pretendia, funcionando como um ato falho. Foi o que ocorreu, por exemplo, com apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro ao lançarem a hashtag #BolsonaroFree, que em inglês significa “Livre de Bolsonaro”.

A trama golpista em julgamento expões o deserto do nosso real – a simulação de um Brasil paralelo, cujos signos não se ancoram nos fatos. Enquanto a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) começava a julgar Bolsonaro, em 2 de setembro, o Senado armou um julgamento paralelo para sabotar STF, como revelou o portal Intercept Brasil. Esse deslocamento entre representação e a realidade dos fatos, tipifica o estágio alucinatório da política. Na mesma toada temos o tarifaço do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, contra o Brasil articulado pelo deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP). Quando a alucinação falha, a realidade dos fatos se afirma: “Livre de Bolsonaro” é o exemplo maior.

Na tentativa do golpe parlamentar no 5 de agosto, a deputada catarinense, Júlia Zanatta (PL), usou seu bebê como escudo humano, em nome da família e da pátria. Em outra cena, a mesma deputada apresentou o Projeto de Lei (PL) 4329/2025 para acabar com o Imposto de Renda (IR); desta vez para proteger o capital dos mais ricos, já que não se passa de uma cortina de fumaça para conjurar contra o Projeto de Lei que isenta do IR quem ganha até R$ 5 mil. Para justificar seu deslocamento da realidade dos fatos, usou um argumento, no mínimo, bizarro: “A existência e manutenção do imposto de renda também foi defendida por Karl Marx e Friedrich Engels”. Seria um erro questionar se as ações visam simular (alucinar) uma cena para alimentar os seguidores deste Brasil paralelo.

Em âmbito municipal, um vereador de Joinville/SC, Mateus Batista (União Brasil), defendeu em sessão da Câmara, em 25 de agosto, um projeto de lei para restringir e segregar pessoas vindas do Norte e do Nordeste. Entre outras afirmações, declarou que o “Estado do Pará é um lixo”. Na base dessas ideias supremacistas está a alucinação de pureza, a mesma que alimentou movimentos políticos como o nazismo e o fascismo, com práticas segregacionistas, xenofóbicas e racistas.

Agora, na semana do julgamento da trama golpista, apoiadores de Jair Bolsonaro rezam próximos à residência do ex-presidente, enrolados na bandeira de Israel. Em episódios anteriores, seus seguidores acreditavam manter contato com extraterrestres e chegaram a rezar para pneus.

A produção social da alucinação é uma forma de política. Daí também o uso do termo alucinação na Inteligência Artificial (IA), empregado como metáfora para um fenômeno técnico. Podemos, contudo, deduzir que nem as alucinações técnicas – quando modelos de IA geram informações factualmente incorretas – nem os grandes delírios registrados na história, como em Memórias de um doente dos nervos, em que o juiz alemão Daniel Paul Schreber, no século XIX, acreditava que se transformaria em mulher para ser fecundado por raios divinos e, assim, recriar a humanidade, impressionam tanto quanto aquilo a que assistimos na atualidade.

Quando as imagens que brotam dessas mentes sem referente (isto é, que mentem) se tornam explícitas – pornográficas – já não há mais o que revelar: tudo está exposto. O explícito não se decifra. A hashtag #BolsonaroFree é a expressão literal do desejo de políticos da extrema direita que já descartam o ex-presidente da disputa eleitoral. Não há o que decifrar: é o que é, o que está dito. 

A tragédia Édipo Rei, de Sófocles, teria algo ainda a revelar para a nossa época? Na peça, foi o saber que elevou Édipo ao trono de Tebas. Ao decifrar o enigma da Esfinge, ele desposa a rainha Jocasta, com quem terá quatro filhos: Antígona, Ismênia, Etéocles e Polinice.

Na leitura de Sigmund Freud, a tragédia revela a ambivalência entre amor e ódio: o desejo pela mãe e a hostilidade dirigida ao pai. O complexo de Édipo exemplifica um conflito inconsciente, universal e atemporal. As paixões situam-se no campo do não saber (como motivadoras do parricídio e do incesto), enquanto o saber – entendido como aprendizado pela experiência – integra o princípio da realidade.

Outra leitura é a de Michel Foucault, que enfatiza o conhecimento como desejo de poder: “conhecemos para dominar”. A tragédia de Sófocles – Édipo Rei – chamava-se, no princípio, Édipo Tirano. O sentido de tirano, naquele contexto, referia-se àquele cujo poder não foi herdado, mas conquistado por alguma qualidade, seja de guerreiro, de protetor ou de sábio.

Édipo conquistou o trono pela qualidade de sábio, ao decifrar o enigma e livrar Tebas da peste. O saber edipiano foi construído pelo desejo de ver com seus próprios olhos. Mas esse saber ver realizou seu destino. Quando Tirésias, o adivinho cego, revelou a Édipo que ele havia assassinado o pai, Laio, e desposado a mãe, Jocasta, o herói acabou usando os broches da esposa/mãe, já morta, para furar os próprios olhos – preferindo a cegueira à verdade.

Qual seria o enigma a ser decifrado que poderia livrar a humanidade de uma distopia que bate à porta: epidemias, guerras, precarização das relações de trabalho, crise climática? Nenhuma dessas é propriamente nova. O que há de novo são as formas de dominação.

O saber em Édipo decorria do desejo de ver, o que lhe conferiu domínio pelo conhecimento; na Idade Média, o saber dependia da revelação no confessionário, do ato de espiar a intimidade do pecador; já na modernidade, o saber assume um caráter disciplinar, operando sobre os corpos e as almas por meio de práticas normativas que transformam, por exemplo, o louco em desrazão, retirando-lhe a autonomia.

Hoje, não se trata mais do desejo de ver, nem de expiar a intimidade no confessionário, tampouco do saber disciplinar que conjurava o poder/saber sobre os corpos e as almas como matriz das formas de dominação. A decifração dependeria, agora, de uma nova racionalidade – a algorítmica? Decifrar não significa livrar a humanidade de uma maldição; ao contrário, é pelas vias do não saber que a realização da desgraça (ausência de dom divino) se efetiva.

Nossas decisões, escolhas e formas de conhecer são determinadas, ao menos em parte, por algoritmos e IAs generativas, que permitem às máquinas processarem e extrair dados, produzindo novos conteúdos. As plataformas digitais constituem o palco onde o espetáculo acontece, e o fluxo ininterrupto de conteúdo é produzido tanto por atores (internautas) quanto por bots (passando-se por internautas).

Se antes podia-se chamar o buscador Google de Deus, agora as IAs generativas são ainda mais potentes. Deus é a potência infinita. Nesse lugar, não existiria mais enigma a ser decifrado, já que na potência máxima não há falta.

Não há mais o que decifrar. Entramos na era da codificação total. Quando ouvimos repetidamente que não há mais separação entre o off e o online, é porque nossa vida se desdobra da decodificação. Com isso, os algoritmos codificam nossa vida online (extraindo nossos dados) e nós agimos (decodificamos) a partir dos conteúdos sugestionados.

Há uma inversão da tragédia em relação ao contexto da Grécia antiga. Lá, esperava-se que alguém decifrasse o enigma; hoje, espera-se que a racionalidade algorítmica decifre e resolva nossos problemas. A questão que se levanta é que talvez a racionalidade algorítmica, dispositivo das big techs, possa ser compreendida como a própria Esfinge, cujo domínio se fortalece a cada momento pela dataficação de nossas vidas.

A cena atual apenas intensifica uma observação do sociólogo Jean Baudrillard, em Simulacros e Simulações, de 1981, quando afirmou que “o deserto é o nosso próprio real”. Ou, dito de outra forma: o real está totalmente coberto por signos sem referentes – a alucinação é o nosso deserto.

Quando não há mais o que decifrar, não há mais o que ver. Estamos todos cegos em uma alucinação projetada pela Esfinge.
José Isaías Venera

Como se rir fosse o melhor remédio

O mundo que nos calhou em sorte é assim mesmo. Um repositório de calamidades. Sempre foi. Dilúvios no Cáucaso, revoluções em França, tiroteios em liceus americanos. Todos os dias, a todas as horas. E assim, falência a falência, massacre a massacre, por entre os desnexos incompreensíveis do mundo, vai prosperando uma peste moderna: a confusão entre conhecimento e informação. Cento e cinquenta canais de notícias a repetirem-se em permanência, um telefone sempre presente para sabermos tudo e mais alguma coisa, para ficarmos exactamente na mesma. O resultado é o contrário do saber: é o embrutecimento, essa infância do vazio.

Mas de repente a coisa acontece aqui. Às 18h08, hora oficial em que os bombeiros foram chamados ao local, o Elevador da Glória desceu desgovernado. Matou dezasseis, feriu outros tantos. Foi como se um brinquedo antigo se tivesse transformado num animal selvagem e depois num novelo de aço emaranhado. É impressionante. Fica-se em choque. Pelo menos durante um instante.

E, nem que seja nesse instante, vem-nos imediatamente à memória que não somos bem de Lisboa. Crescemos na província. Aí, “O Elevador da Glória” era o nome daquele disco dos Rádio Macau. O que abria com a canção com o mesmo nome. Aí, ainda não tínhamos subido aquela inclinação de 48 graus só para poupar uns trocos aos nossos porta-moedas indiferentes a esforços. Desde que se mantivesse disponível para discos, cinemas, ou outro bem essencial. O resto era secundário. Ainda que amarelo.

Mas o instante é a melancolia de tudo o que acabou antes de sequer começar. A cobertura é tanta, tão insistente, que a tragédia perde nitidez e sobra apenas uma placidez indecorosa. Ficamos brutos. E fazemos como fazem os brutos. Rimos do que não entendemos.

Refiro-me àquele mecanismo de defesa de nos refugiarmos na comédia perante as agruras da vida. Antigamente davam-se uns dias. Foi assim com as Torres Gémeas, foi assim com Tiananmen. A anedota, esse paliativo triste que Deus nos deu para lidar com o absurdo, precisava de uma certa distância para ser dita; e o sarcasmo vinha com código de conduta. Mas, a propósito do descarrilamento do funicular da Glória, percebi isto: a piada veio logo. Juro que veio. Não importa de quem, nem como. Mas veio de perto. Uma graçola desinspirada. Não interessa sequer contá-la.

O que se passa é que o excesso de informação e repetição não nos torna mais lúcidos, mas mais cínicos. Em vez de reverência pela morte, resta-nos fazer dela ocasião de zombaria. Como se ficássemos num estado tal de entupimento, que o espírito, obstruído, fosse incapaz de sentir ou reagir. A televisão, os jornais, a internet — o tudo-em-todo-o-lado-ao-mesmo-tempo — criam uma falsa sensação de abundância, repetindo o nada até ao infinito, num labirinto de fragmentos despejados sem propósito. Aqueles ecrãs repartidos em quadrados mais pequenos? É diabólico, literalmente diabólico: o nada segmentado em pequenos nadas, numa espiral de não-existência. E diante desse espelho estilhaçado sobra o riso. O riso blasfemo.

É este o paradoxo dos nossos dias: quanto mais se mostra, menos se vê. A imagem dividida, a exibição sem pausa, a abundância que se repete até ao infinito. Tudo isso cria a ilusão de clareza, mas é apenas outra forma de cegueira. Que não é mais do que outro nome para o vazio moral.

De resto, já se sabe. Dois ou três dias de directos, diagnósticos de especialistas em segurança ferroviária saídos sabe-se lá de que cave do Entroncamento, declarações solenes. Uma semana de autópsias mediáticas e depois, silêncio. O mesmo que engoliu Pedrógão, Entre-os-Rios, Camarate. O ciclo repete-se com a exactidão de um cerimonial pagão: primeiro a comoção, depois o cansaço, por fim o esquecimento.

Ao contrário dos ritos religiosos em que tudo fica nas mãos de quem sabe (e quem sabe é o Próprio), todo o ritual civil deixa-nos sem saber o que fazer. Ficamos com esta sensação de tontura, de vertigem. É como se não fôssemos capazes de encarar uma tragédia pelo que é verdadeiramente, apenas como um ruído de fundo. O zumbido mórbido de um ar condicionado ao qual respondemos com a humanidade que sobra: sorrindo quando devíamos estar calados.
Manuel Fúria