sábado, 6 de setembro de 2025

Como se rir fosse o melhor remédio

O mundo que nos calhou em sorte é assim mesmo. Um repositório de calamidades. Sempre foi. Dilúvios no Cáucaso, revoluções em França, tiroteios em liceus americanos. Todos os dias, a todas as horas. E assim, falência a falência, massacre a massacre, por entre os desnexos incompreensíveis do mundo, vai prosperando uma peste moderna: a confusão entre conhecimento e informação. Cento e cinquenta canais de notícias a repetirem-se em permanência, um telefone sempre presente para sabermos tudo e mais alguma coisa, para ficarmos exactamente na mesma. O resultado é o contrário do saber: é o embrutecimento, essa infância do vazio.

Mas de repente a coisa acontece aqui. Às 18h08, hora oficial em que os bombeiros foram chamados ao local, o Elevador da Glória desceu desgovernado. Matou dezasseis, feriu outros tantos. Foi como se um brinquedo antigo se tivesse transformado num animal selvagem e depois num novelo de aço emaranhado. É impressionante. Fica-se em choque. Pelo menos durante um instante.

E, nem que seja nesse instante, vem-nos imediatamente à memória que não somos bem de Lisboa. Crescemos na província. Aí, “O Elevador da Glória” era o nome daquele disco dos Rádio Macau. O que abria com a canção com o mesmo nome. Aí, ainda não tínhamos subido aquela inclinação de 48 graus só para poupar uns trocos aos nossos porta-moedas indiferentes a esforços. Desde que se mantivesse disponível para discos, cinemas, ou outro bem essencial. O resto era secundário. Ainda que amarelo.

Mas o instante é a melancolia de tudo o que acabou antes de sequer começar. A cobertura é tanta, tão insistente, que a tragédia perde nitidez e sobra apenas uma placidez indecorosa. Ficamos brutos. E fazemos como fazem os brutos. Rimos do que não entendemos.

Refiro-me àquele mecanismo de defesa de nos refugiarmos na comédia perante as agruras da vida. Antigamente davam-se uns dias. Foi assim com as Torres Gémeas, foi assim com Tiananmen. A anedota, esse paliativo triste que Deus nos deu para lidar com o absurdo, precisava de uma certa distância para ser dita; e o sarcasmo vinha com código de conduta. Mas, a propósito do descarrilamento do funicular da Glória, percebi isto: a piada veio logo. Juro que veio. Não importa de quem, nem como. Mas veio de perto. Uma graçola desinspirada. Não interessa sequer contá-la.

O que se passa é que o excesso de informação e repetição não nos torna mais lúcidos, mas mais cínicos. Em vez de reverência pela morte, resta-nos fazer dela ocasião de zombaria. Como se ficássemos num estado tal de entupimento, que o espírito, obstruído, fosse incapaz de sentir ou reagir. A televisão, os jornais, a internet — o tudo-em-todo-o-lado-ao-mesmo-tempo — criam uma falsa sensação de abundância, repetindo o nada até ao infinito, num labirinto de fragmentos despejados sem propósito. Aqueles ecrãs repartidos em quadrados mais pequenos? É diabólico, literalmente diabólico: o nada segmentado em pequenos nadas, numa espiral de não-existência. E diante desse espelho estilhaçado sobra o riso. O riso blasfemo.

É este o paradoxo dos nossos dias: quanto mais se mostra, menos se vê. A imagem dividida, a exibição sem pausa, a abundância que se repete até ao infinito. Tudo isso cria a ilusão de clareza, mas é apenas outra forma de cegueira. Que não é mais do que outro nome para o vazio moral.

De resto, já se sabe. Dois ou três dias de directos, diagnósticos de especialistas em segurança ferroviária saídos sabe-se lá de que cave do Entroncamento, declarações solenes. Uma semana de autópsias mediáticas e depois, silêncio. O mesmo que engoliu Pedrógão, Entre-os-Rios, Camarate. O ciclo repete-se com a exactidão de um cerimonial pagão: primeiro a comoção, depois o cansaço, por fim o esquecimento.

Ao contrário dos ritos religiosos em que tudo fica nas mãos de quem sabe (e quem sabe é o Próprio), todo o ritual civil deixa-nos sem saber o que fazer. Ficamos com esta sensação de tontura, de vertigem. É como se não fôssemos capazes de encarar uma tragédia pelo que é verdadeiramente, apenas como um ruído de fundo. O zumbido mórbido de um ar condicionado ao qual respondemos com a humanidade que sobra: sorrindo quando devíamos estar calados.
Manuel Fúria

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