sábado, 6 de setembro de 2025

Alucinação neofascista e determinação algorítmica

Haveria uma relação entre alucinação, levante neofascista e determinação algorítmica? Costuma-se afirmar que já não existe separação entre vida offline e online. Os gestos, antes transformadores do espaço e do tempo, hoje tendem a se reduzir a enquadramentos destinados à cena digital. As ações, em grande parte, voltam-se para a viralização. Algumas, de fato, alcançam ampla circulação. Outras se espalham justamente por dizerem o contrário do que se pretendia, funcionando como um ato falho. Foi o que ocorreu, por exemplo, com apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro ao lançarem a hashtag #BolsonaroFree, que em inglês significa “Livre de Bolsonaro”.

A trama golpista em julgamento expões o deserto do nosso real – a simulação de um Brasil paralelo, cujos signos não se ancoram nos fatos. Enquanto a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) começava a julgar Bolsonaro, em 2 de setembro, o Senado armou um julgamento paralelo para sabotar STF, como revelou o portal Intercept Brasil. Esse deslocamento entre representação e a realidade dos fatos, tipifica o estágio alucinatório da política. Na mesma toada temos o tarifaço do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, contra o Brasil articulado pelo deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP). Quando a alucinação falha, a realidade dos fatos se afirma: “Livre de Bolsonaro” é o exemplo maior.

Na tentativa do golpe parlamentar no 5 de agosto, a deputada catarinense, Júlia Zanatta (PL), usou seu bebê como escudo humano, em nome da família e da pátria. Em outra cena, a mesma deputada apresentou o Projeto de Lei (PL) 4329/2025 para acabar com o Imposto de Renda (IR); desta vez para proteger o capital dos mais ricos, já que não se passa de uma cortina de fumaça para conjurar contra o Projeto de Lei que isenta do IR quem ganha até R$ 5 mil. Para justificar seu deslocamento da realidade dos fatos, usou um argumento, no mínimo, bizarro: “A existência e manutenção do imposto de renda também foi defendida por Karl Marx e Friedrich Engels”. Seria um erro questionar se as ações visam simular (alucinar) uma cena para alimentar os seguidores deste Brasil paralelo.

Em âmbito municipal, um vereador de Joinville/SC, Mateus Batista (União Brasil), defendeu em sessão da Câmara, em 25 de agosto, um projeto de lei para restringir e segregar pessoas vindas do Norte e do Nordeste. Entre outras afirmações, declarou que o “Estado do Pará é um lixo”. Na base dessas ideias supremacistas está a alucinação de pureza, a mesma que alimentou movimentos políticos como o nazismo e o fascismo, com práticas segregacionistas, xenofóbicas e racistas.

Agora, na semana do julgamento da trama golpista, apoiadores de Jair Bolsonaro rezam próximos à residência do ex-presidente, enrolados na bandeira de Israel. Em episódios anteriores, seus seguidores acreditavam manter contato com extraterrestres e chegaram a rezar para pneus.

A produção social da alucinação é uma forma de política. Daí também o uso do termo alucinação na Inteligência Artificial (IA), empregado como metáfora para um fenômeno técnico. Podemos, contudo, deduzir que nem as alucinações técnicas – quando modelos de IA geram informações factualmente incorretas – nem os grandes delírios registrados na história, como em Memórias de um doente dos nervos, em que o juiz alemão Daniel Paul Schreber, no século XIX, acreditava que se transformaria em mulher para ser fecundado por raios divinos e, assim, recriar a humanidade, impressionam tanto quanto aquilo a que assistimos na atualidade.

Quando as imagens que brotam dessas mentes sem referente (isto é, que mentem) se tornam explícitas – pornográficas – já não há mais o que revelar: tudo está exposto. O explícito não se decifra. A hashtag #BolsonaroFree é a expressão literal do desejo de políticos da extrema direita que já descartam o ex-presidente da disputa eleitoral. Não há o que decifrar: é o que é, o que está dito. 

A tragédia Édipo Rei, de Sófocles, teria algo ainda a revelar para a nossa época? Na peça, foi o saber que elevou Édipo ao trono de Tebas. Ao decifrar o enigma da Esfinge, ele desposa a rainha Jocasta, com quem terá quatro filhos: Antígona, Ismênia, Etéocles e Polinice.

Na leitura de Sigmund Freud, a tragédia revela a ambivalência entre amor e ódio: o desejo pela mãe e a hostilidade dirigida ao pai. O complexo de Édipo exemplifica um conflito inconsciente, universal e atemporal. As paixões situam-se no campo do não saber (como motivadoras do parricídio e do incesto), enquanto o saber – entendido como aprendizado pela experiência – integra o princípio da realidade.

Outra leitura é a de Michel Foucault, que enfatiza o conhecimento como desejo de poder: “conhecemos para dominar”. A tragédia de Sófocles – Édipo Rei – chamava-se, no princípio, Édipo Tirano. O sentido de tirano, naquele contexto, referia-se àquele cujo poder não foi herdado, mas conquistado por alguma qualidade, seja de guerreiro, de protetor ou de sábio.

Édipo conquistou o trono pela qualidade de sábio, ao decifrar o enigma e livrar Tebas da peste. O saber edipiano foi construído pelo desejo de ver com seus próprios olhos. Mas esse saber ver realizou seu destino. Quando Tirésias, o adivinho cego, revelou a Édipo que ele havia assassinado o pai, Laio, e desposado a mãe, Jocasta, o herói acabou usando os broches da esposa/mãe, já morta, para furar os próprios olhos – preferindo a cegueira à verdade.

Qual seria o enigma a ser decifrado que poderia livrar a humanidade de uma distopia que bate à porta: epidemias, guerras, precarização das relações de trabalho, crise climática? Nenhuma dessas é propriamente nova. O que há de novo são as formas de dominação.

O saber em Édipo decorria do desejo de ver, o que lhe conferiu domínio pelo conhecimento; na Idade Média, o saber dependia da revelação no confessionário, do ato de espiar a intimidade do pecador; já na modernidade, o saber assume um caráter disciplinar, operando sobre os corpos e as almas por meio de práticas normativas que transformam, por exemplo, o louco em desrazão, retirando-lhe a autonomia.

Hoje, não se trata mais do desejo de ver, nem de expiar a intimidade no confessionário, tampouco do saber disciplinar que conjurava o poder/saber sobre os corpos e as almas como matriz das formas de dominação. A decifração dependeria, agora, de uma nova racionalidade – a algorítmica? Decifrar não significa livrar a humanidade de uma maldição; ao contrário, é pelas vias do não saber que a realização da desgraça (ausência de dom divino) se efetiva.

Nossas decisões, escolhas e formas de conhecer são determinadas, ao menos em parte, por algoritmos e IAs generativas, que permitem às máquinas processarem e extrair dados, produzindo novos conteúdos. As plataformas digitais constituem o palco onde o espetáculo acontece, e o fluxo ininterrupto de conteúdo é produzido tanto por atores (internautas) quanto por bots (passando-se por internautas).

Se antes podia-se chamar o buscador Google de Deus, agora as IAs generativas são ainda mais potentes. Deus é a potência infinita. Nesse lugar, não existiria mais enigma a ser decifrado, já que na potência máxima não há falta.

Não há mais o que decifrar. Entramos na era da codificação total. Quando ouvimos repetidamente que não há mais separação entre o off e o online, é porque nossa vida se desdobra da decodificação. Com isso, os algoritmos codificam nossa vida online (extraindo nossos dados) e nós agimos (decodificamos) a partir dos conteúdos sugestionados.

Há uma inversão da tragédia em relação ao contexto da Grécia antiga. Lá, esperava-se que alguém decifrasse o enigma; hoje, espera-se que a racionalidade algorítmica decifre e resolva nossos problemas. A questão que se levanta é que talvez a racionalidade algorítmica, dispositivo das big techs, possa ser compreendida como a própria Esfinge, cujo domínio se fortalece a cada momento pela dataficação de nossas vidas.

A cena atual apenas intensifica uma observação do sociólogo Jean Baudrillard, em Simulacros e Simulações, de 1981, quando afirmou que “o deserto é o nosso próprio real”. Ou, dito de outra forma: o real está totalmente coberto por signos sem referentes – a alucinação é o nosso deserto.

Quando não há mais o que decifrar, não há mais o que ver. Estamos todos cegos em uma alucinação projetada pela Esfinge.
José Isaías Venera

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