terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Meu amigo bolsonarista

Lá se vão três anos. Ele, irredutível. Nem todo o ódio ao PT pode decifrar tal fidelidade ao sujeito que afundou o Brasil. Nesse dezembro, quase se foi minha esperança de que finalmente enxergasse o monstro criado para combater Lula.

Escabreado, já faz críticas ao governo. Pontuais. Mas … Ufa!

Não refutou condenação pública de Bolsonaro – aliados e oposição apontaram o desprezo do sujeito pelo povo baiano, nesse fim-de-ano. Enquanto dezenas de pessoas morriam, 500 mil pessoas perdiam suas casas, 72 cidades colocadas sob estado de emergência, o embusteiro andava de jetski pelas águas de Santa Catarina.

Fatos inquestionáveis. A imagem de Bolsonaro desfrutando o balneário, se esbaldando no parque de diversões Beto Carrero, foi um soco no estômago. Não só dos baianos. Dos brasileiros que se mobilizaram, ou não, para ajudar a Bahia.

Nesses três anos, meu amigo e eu tivemos embates civilizados. Não foi fácil. Como não rebater com sonoro palavrão qualquer defesa do escroque? Ou ataques a Lula? Seguramos a onda. A convivência é longa, décadas de amizade, daquelas que se conta nos dedos das mãos.

Medida do possível, nem ele nem eu deixamos que a política inquietasse nossa relação. A receita não é simples. Não segui-lo nas redes sociais, e jamais misturar Bolsonaro no grupo restrito da família – ele incluído, tal intimidade. Cinco lulistas declarados, dois bolsonaristas, e dois, terceira via, a que vier. Nenhum Moro, nenhum Dória, o que já é um avanço. Contra o inominável, votarão em Lula.

Meu amigo-irmão e eu resistimos ao ódio disseminado em 2018, quando Bolsonaro decretou guerra ao País. Resistimos a sua perversidade. E não será necessário apontar seus equívocos – do meu amigo. O tempo certamente mostrará que ele esteve do lado errado da história.

Estarão vivas na nossa memória – e nos livros que contarão a crônica mais feroz dos anos recentes – a crueldade e a leviandade de Bolsonaro contra direitos humanos, negros, gays, meio-ambiente, educação, saúde. Contra a democracia.

Estará para sempre na sua conta a morte de milhares de brasileiros, vítimas de doença evitável pela vacina que desprezou, adiou, tergiversou.

Meu amigo não é negacionista, tomou as três doses da vacina, não acha que a Covid é uma gripezinha. Opiniões coincidentes. Temos ojeriza a Moro e Doria. Por motivos diferentes, claro. Aversão a Olavo de Carvalho e Waldemar Costa Neto.

Nesse momento, meu amigo acompanha com certa preocupação o estado de saúde do temerário, internado nessa segunda, de novo, em São Paulo. Meu desassossego é diferente: até quando o embuste vai usar a suspeita facada na busca desesperada – inútil, talvez – dos votos que perdeu?

Por mais que se esforce, está cada vez mais claro que a derrota, em outubro, poderá ser retumbante. Quiçá no primeiro turno. Não se iluda, Capitão. Sua maldade terá repercussão nas urnas. Não terá facada este ano. Nem Moro para carimbar sua candidatura. Seu tempo pode estar acabando.

Brasil 2022

 


Otimismo

Entramos o Ano-Novo com muitos doentes num país doente. O Brasil está débil, infecção que antecede à peste. E há a peste. A peste insiste. Também há o vírus influenza. Como não testamos a população, ficamos todos sob uma massa disforme de perturbação, ameaçados, amassados, entre sintomas — ao mesmo tempo aquela vontade de nos lançarmos às ruas, aos beijos, aos suores de um verão em que talvez haja carnaval. Talvez. (Avante, Império Serrano!)

Estamos cansados. Queremos acreditar e ir, sem máscaras. Terá passado? Vai passar? O mal-estar, contudo. A esperança desafiada pelo medo. Ou haverá quem não saiba, agora, de ao menos um que vai contaminado? Não é bom.

É baixo o astral. Mas será o último ano de Bolsonaro — dizem. Será? Não tenho essa certeza, em que vejo algum salto alto. E ainda que sim: serão muitos os meses — e muitos os dispostos à forra — até esse fim. Muitos os ressentidos, a serem muitos os estragos.


Até esse fim, sendo esse o fim, teremos essa briga de rua — essa pegada miliciana nas relações sociais — concretizada, executada, com cidadãos se espancando por filiações político-partidárias?

É chão que deveria nos preocupar. A beligerância é instituição estabelecida. O nosso horizonte ainda é um queiroga. E o bolsonarismo veio para ficar, mesmo sem Bolsonaro. O bolsonarismo é a materialização do espírito do tempo violento que empurra ao conflito, ao confronto, mesmo os não bolsonaristas; que aguça a mentalidade autocrática mesmo nos democratas.

Episódio recente me ocorre. O de Gilberto Kassab, em entrevista a Nadedja Calado, da rádio CBN, reagindo com agressividade a perguntas — contraposições jornalísticas — tecnicamente perfeitas. Queria uma live para si, para falar — microfone aberto — o que quisesse; e indisposto, em termos autoritários, a responder sobre o presidenciável que forjara, Rodrigo Pacheco, cuja gestão do Congresso formalizou o orçamento secreto.

Kassab foi Bolsonaro. Quantos mais serão?

Nosso tecido social se liquidifica; como liquidificadas estiveram as cidades do sul baiano, transtornadas pelas chuvas — transtornadas, como transtornado o país, por um presidente cuja ausência é método. Bolsonaro não foi ver. Recorta-se um mundo. Ficou sobre o jet ski. O desprezo, a ofensa, é alimento ao sectarismo. Ele não foi ver, com o que o não visto existência não terá. Fabrica-se um universo apartado.

Não é boa a sensação de que pouco andamos — e andamos muito, no entanto. Como andaremos se, de súbito, é política de governo minar a vacinação de crianças? A impostura se desloca. Não faz muito, o presidente agia contra a vacinação de adultos. O mundo real se impôs. Vacinados, fazemos menos pressão sobre o sistema de saúde. Vacinados, morremos menos. São obviedades. Ainda assim, o Brasil definha. Vacinado e definhante — eis o país que virou para o novo ano. Definha porque a farsa — que alicerça a necessidade de conflito — reconfigura-se, uma vez derrubada pela realidade.

Vacinados os brasileiros, a depressão brasileira se aprofunda. Sobreviveremos num país só não morto porque países não morrem. Mas que precisará renascer. É o que expressa Janaína Paschoal ao desinformar sobre vacinas: “Vivemos um momento tão intrigante, que pessoas vacinadas, com todas as doses, pegam Covid e recomendam a vacinação! Parece piada. Ninguém acha, no mínimo, curioso?”. Não nos enganemos. É pessoa inteligente. Que distorce — barbariza — conscientemente. Que se lança a esse papel por haver identificado que seu futuro eleitoral depende de emular a radicalização bolsonarista. Não estará sozinha.

Tenho um mau pressentimento sobre este 22. Menos para a eleição. Menos relativamente à pandemia. Mais pela atmosfera. Pela linguagem. Por tudo que está contratado até outubro — independentemente do resultado das urnas. Sairemos moídos. Penso que se menospreza a capacidade competitiva de Bolsonaro. Seu Sete de Setembro, permanente, é ordem-unida. Investirá na instabilidade. Soprará o apito sem parar. Tem base social. Vai acioná-la como se para guerra. Fará o diabo. E é o presidente. Sentado na cadeira desde a qual, com seus sócios e Paulo Guedes, compôs um orçamento dedicado à reeleição. Fará o diabo.

Precisaremos de honestidade intelectual para que haja algum debate público. Ou Bolsonaro, ainda que derrotado, vencerá. Sergio Moro foi o líder num processo que fraudou o Estado de Direito. E a Petrobras foi pilhada, nos governos petistas, para financiar um projeto de poder. Uma premissa importante é que se possam criticar os adversários de Bolsonaro, o pior presidente da História do Brasil democrático, sem que isso seja tomado como manifestação de apoio a ele. Lula é extremamente criticável. Mas já se tornou necessário resistir à pressão canceladora — com pretensões de interditar — segundo a qual apontar-lhe as fraquezas será trabalhar por Bolsonaro.

Estamos no mesmo barco, turma, se a democracia liberal for o norte — e ainda não é segundo turno. Vamos conversar.

Desigualdade social, o maior problema do Brasil

Com um ano eleitoral pela frente, os mais graves problemas brasileiros precisam ser colocados em debate. Especialistas ouvidos pela DW Brasil apontaram a histórica desigualdade social, a volta ao mapa da fome e a educação precária como pilares fundamentais que precisam ser atacados com políticas públicas e propostas sérias.

"O maior problema do Brasil hoje é o aumento exponencial de pessoas passando fome e de pessoas em situação de insegurança alimentar", afirma a cientista política Camila Rocha, autora do livro Menos Marx, Mais Mises: O Liberalismo e a Nova Direita no Brasil. De acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, 55% da população brasileira vive em situação de insegurança alimentar.

"Isso ocorreu por uma combinação da retração econômica, permeada pelo aumento dos preços de alimentos básicos e gás de cozinha, com a inabilidade de combater a pandemia entre pessoas em situação de vulnerabilidade social", diz Rocha.

Ela defende que as soluções possíveis são a ampliação de programas de transferência de renda e aumento de benefícios. "Porém, isso necessariamente precisa ser acompanhado de uma retomada do crescimento econômico", enfatiza. "Do contrário, tais medidas podem ficar comprometidas a médio prazo.”


O historiador Marco Antonio Villa, professor da Universidade Federal de São Carlos e autor de Um País Chamado Brasil, concorda com o ponto de que a fome "voltou a ser um gravíssimo problema nacional". "Milhões estão literalmente passando fome", diz.

"Sucintamente, é a péssima distribuição de renda que aprofunda a desigualdade social", contextualiza ele, que entende como "tarefa primeira, para ontem" a necessidade de que o próximo governante eleito "coloque o dedo na péssima distribuição de renda que gera essa terrível desigualdade social e, por consequência, a fome".

"Este foi o Natal da fome, tristemente. Parece a comemoração, entre aspas, dos três anos do governo [do presidente Jair] Bolsonaro", comenta Villa.

Para o historiador Marcelo Cheche Galves, professor da Universidade Estadual do Maranhão, a desigualdade social brasileira sempre foi imoral "e se tornou mais imoral ainda em um ambiente de pandemia sob um governo de extrema direita". "[O problema] é a base de outras questões", explica.

"A pobreza é um componente de qualquer país capitalista. A questão são os níveis de pobreza minimamente aceitáveis", argumenta. "De que maneira governos que se sucedem assumem ou não compromissos mínimos no combate a essa desigualdade?"

Galves afirma que tal esforço depende de "políticas públicas permanentes" e estas foram "brutalmente interrompidas" pela atual gestão. Como a fome não espera, ele cobra uma "retomada imediata e a ampliação dessas políticas públicas de redistribuição de renda". "Sem malabarismos financeiros para turbinar orçamento em ano eleitoral. Precisamos de política social séria e permanente", enfatiza.

O jornalista, economista e cientista político Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), vê a "questão social de pobreza e crescimento da fome" dentro de um contexto de "crise política e descrença nas instituições".

"Isso dá margem a uma série de violências e também a discursos populistas", comenta. "E 2022 vai ser decisivo porque veremos como vamos lidar com isso. A população vai votar com todos esses riscos institucionais que Bolsonaro representa. Vamos ver se a escolha será pela civilidade ou pela barbárie."

O sociólogo e cientista político Rodrigo Prando, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie contextualiza as mazelas brasileiras a partir da própria formação histórica do país. "Economicamente, [o país foi construído por] essa estrutura social de grandes propriedades de terra, escravidão e monocultura voltada para a exportação", enumera. "Em termos econômicos, isso fez com que o Brasil se tornasse um país pobre, extremamente desigual."

Além disso, por conta do passado colonial e pré-republicano, o país teve um capitalismo tardio, industrializando-se no século 20. "Assim, a sociedade brasileira se desenvolveu ao longo do século 20. E não houve distribuição de renda: a concentração continuou nas mão de uma elite", pontua.

"Resultado: o Brasil ainda apresenta extrema pobreza em algumas regiões e uma desigualdade enorme. Em uma pista de corrida, a esfera econômica avançou, mas a cultura e a educação não se desenvolveram na mesma velocidade", diz ele.

Nesse sentido, a educação precária perpetua um sistema deficitário. "A pandemia não mostrou nada de novo, apenas agudizou a situação, os problemas que temos ao longo do tempo", comenta Prando. "As crianças pobres das escolas públicas foram mais prejudicadas do que as crianças ricas das particulares, as regiões Norte e Nordeste tiveram crescimento menor do que o Sudeste, os negros foram mais atingidos pela covid e morreram mais. Isso explicitou uma estrutura social bastante desigual."

Para o pesquisador David Nemer, professor da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, e autor do livro Tecnologia do Oprimido: Desigualdade e o Mundano Digital nas Favelas do Brasil, os problemas do Brasil atual têm como base o acesso à educação.

"Infelizmente, temos uma educação, a pública e até mesmo a particular, muito precarizada", diz ele. "E hoje as soluções apresentadas pelo governo para resolver esse problema são péssimas. O governo [federal] pensa em militarizar a educação, o que é inconcebível. Outra agenda que os bolsonaristas e parte do Congresso tentam o tempo todo passar é a do homeschooling [ensino domiciliar]."

Nemer avalia que isso é uma maneira "de o governo retirar verba das escolas públicas", delegando às famílias a responsabilidade financeira do ensino. "E isso é obrigação do Estado, não adianta", acrescenta.

Um terceiro movimento que ele vê é o da "evangelização da educação" — nesse sentido, vale ressaltar que o atual ministro da Educação, Milton Ribeiro, é pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil. "A educação tem de ser para pensamento livre, crítico o tempo todo, não imposto", defende Nemer. "Mas são essas as soluções que este governo pensa", diz o pesquisador.

E ao trazer a educação para o centro do debate, ele frisa que o acesso ao ensino é a ponta de um iceberg. "A maioria que estuda em escola pública não tem segurança alimentar, não tem segurança física, vive em área de risco e o Estado o tempo todo negligencia essas pessoas", afirma. "A educação precária sustenta o círculo vicioso da desigualdade social."

O filósofo Luiz Felipe Pondé, diretor do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor da Fundação Armando Álvares Penteado, prefere escolher a própria "política brasileira" como o maior problema do país — citando "as duas mais prováveis opções que teremos para 2022".

"Uma é Bolsonaro, que se revelou uma catástrofe. Outra é o retorno do PT [Partido dos Trabalhadores, do ex-presidente Lula da Silva], que é muito responsável pelo buraco em que a gente está, uma verdadeira gangue que provavelmente vai voltar ao poder porque a outra opção se revelou pior do que ela."

Pondé classifica essa situação como "um problema agudo” e diz que a corrupção "é sistêmica e envolve todos os Poderes". "Solução para isso? Talvez daqui a mil anos", afirma.

Bolsonaro é um presidente da República em estado terminal

Estão dadas as condições para que Bolsonaro desista de candidatar-se à reeleição caso se convença que a derrota será certa e humilhante. Seu estado de saúde inspira cuidados, e não é de hoje. É um paciente que desrespeita as recomendações médicas.

Depois da facada que levou em Juiz de Fora, ele já foi operado 4 vezes. A última foi em setembro de 2019 para corrigir uma hérnia que emergiu pela cicatriz da operação anterior. Sua mais recente internação foi em julho passado também com obstrução intestinal.

Somem-se a isso outros dois procedimentos cirúrgicos sem relação com a facada, mas que o obrigaram a ser hospitalizado: a retirada de um cálculo na bexiga e uma vasectomia. Está internado desde ontem, e outra vez por problemas no intestino.

É a sexta vez que ele baixa a um hospital desde que tomou posse como presidente. Ou seja: a cada seis meses, Bolsonaro precisa de socorro médico. E nem por isso abre mão de se fartar com toda sorte de alimentos que lhe dão prazer e que lhe fazem mal.

Ao seu conhecido e turbulento prontuário médico, usado por ele e sua família para extrair vantagem política, acrescente-se dois episódios descobertos pelo jornalista Joaquim de Carvalho, ex-repórter da Veja e ex-editor da Rede Globo de Televisão.


No dia 7 de fevereiro de 2018, 7 meses antes da facada, Bolsonaro foi levado para uma clínica particular de Cascavel, no Paraná, onde participava de atos de pré-campanha, com problemas gastrointestinais, segundo o divulgado à época por sua assessoria.

No dia 13 de abril daquele ano, Bolsonaro passou mal no aeroporto de Boa Vista, Roraima, e foi levado para o Hospital Central do Exército, no Rio. No dia 29 do mesmo mês, Bolsonaro participou de um evento religioso em Blumenau, Santa Catarina.

Imagens de um vídeo mostram que ele se levantou quando o pastor pediu oração de cura para as pessoas com doenças no abdômen. Na ocasião, Michelle, sua mulher, e um homem que estava ao seu lado, colocaram a mão sobre a barriga de Bolsonaro.

Agora, o mais provável é que ele tenha alta do hospital em São Paulo sem passar por uma nova cirurgia. A área lesionada pela facada já foi muito mexida. Seria uma operação de elevado risco de morte para ele e para a reputação do médico cirurgião.

Literalmente, Bolsonaro é um homem-bomba, acumulador de porcarias, que de tempos em tempos terá de ser esvaziado para que não exploda. Seu desempenho como presidente da República está à altura de sua folha corrida como paciente.