quinta-feira, 30 de junho de 2022

Uma BIC na sala de tortura

Sou o poeta dos torturados/ dos desaparecidos/ dos atirados ao mar/ Sou os olhos atentos/sobre o crime
Pedro Tierra

Uma caneta BIC esquecida pelo torturador fez o preso torturado se animar no meio das maiores dores que sofrera em seus 24 anos de vida. Lentamente chegou até a BIC que brilhava na sala meio escura onde se sentia cheiro de suor e sangue, e logo escondeu-a, pois os torturadores voltariam. Quando foi levado a sua cela, dolorido com hematomas e sangrando aqui e ali, se sentia vitorioso com a caneta, era sua taça, seu troféu, e dias depois catava papel de cigarro, papel higiênico, para escrever. Foi assim que começou a nascer o poeta Pedro Tierra, que viveu cinco anos em várias prisões sendo interrogado, torturado, convivendo com mortes de companheiros. Decidiu viver para escrever poesias e homenagear tanto os amigos como os desconhecidos presos e torturados que não tiveram sua sorte de viver. Entrou no cárcere como Hamilton Pereira da Silva e ao sair era Pedro Tierra, o poeta que nasceu na prisão graças a uma BIC esquecida pelo torturador.

Nas poesias estão presentes os choques elétricos, cadeira do dragão, espancamentos e mais e muito mais poesias sobre suplícios, sangue, gritos, coragem, povo, liberdade. É um espanto tudo isso se transformar em poesia. Essa poesia silenciada mais aqui que no exterior começa a ser mais conhecida através de muitos, mas especialmente do professor e poeta Alberto Pucheu. Aliás, agradeço a ele a primazia de ler seu impactante ensaio que será publicado em livro, Pedro Tierra: esta obstinada vontade de resistir. As poesias de Pedro Tierra começaram a ser publicadas no exterior traduzidas primeiro ao espanhol por Dom Pedro Casaldáliga. Vencedor de muitos prêmios, Pedro Tierra se integrou nas lutas sociais ao sair da prisão, tendo sido um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Ocupou cargos no Ministério da Cultura, em Secretaria de Cultura, integrou o MST, teve a coragem de seguir sua vida na política mesmo após cinco anos de tortura e prisão. Nunca esqueceu seus amigos que morreram, e dedicou suas poesias aos que conheceu e aos que não conheceu. Nome e sobrenomes que precisam ser recordados e que Pucheu nomeia um a um no seu emocionante ensaio com quase oitenta laudas.

Impactante foi o encontro de Pedro Tierra com o imigrante judeu Mayer Kucinski que buscava Ana Rosa, sua filha desaparecida e integrante da ALN como o poeta. “Desejava, para seguir vivendo, ver o rosto de Ana Rosa. Varava meus olhos com o cravo dos seus e me pedia, patético – a mim, que àquela altura cumpria já o terceiro ano de prisão –, uma palavra, ainda que fosse a notícia de sua morte. Eu não tinha nenhuma palavra para lhe dar.” Não tinha palavras para dizer ao velho pai Mayer, pai também do escritor Bernardo Kucinski, que escreveu o romance “K” sobre a busca do pai pela sua irmã Ana Rosa. Minha irmã mais velha, a Bluma, conheceu a adolescente Ana Rosa num Movimento Juvenil Judaico na década de 50 do século passado, e isso me aproximou dessa tragédia.

Escolhi parte do “Poema-Prólogo”, no qual Pedro Tierra sintetiza sua missão:

Fui assassinado.
Morri cem vezes
e cem vezes renasci
sob os golpes do açoite.
Meus olhos em sangue
testemunharam
a dança dos algozes
em torno do meu cadáver.
Tornei-me a mineral
memória da dor.
Para sobreviver,
recolhi das chagas do corpo
a lua vermelha de minha crença,
no meu sangue amanhecendo.
Em cinco séculos
reconstruí minha esperança.
A faca do verso feriu-me a boca
e com ela entreguei-me à tarefa de renascer.
Fui poeta
do povo da noite.

Se tivesse a capacidade de fazer um filme sobre Pedro Tierra, começaria filmando a sala de interrogatório, os torturadores e a BIC que o torturador esqueceu. Esse foi o momento em que começou a nascer Pedro Tierra, que precisamos conhecer mais, como conhecer nosso Brasil invadido. Invadido por enlouquecidos em busca de lucros. Nesses dias traumáticos que o País vive, será preciso passar o inverno, muitos invernos num só, sabendo que a primavera vai chegar.

Brasil ocupa último lugar em educação, entre 63 países

Desde 1989 o International Institute for Management Development (IMD), sediado na Suíça, publica um ranking anual de competitividade. Para tal, o IMD World Competitiveness Center entrevista empresária/os, investidora/es e gerentes de 63 países sobre diversos critérios.

No relatório mais recente, a América Latina se saiu especialmente mal. Excetuado o Chile, todos os demais seis grandes Estados ocupam os últimos postos entre as economias examinadas. O Brasil está em 59º lugar; numa das rubricas – relativa à educação de crianças e adolescentes e à formação profissional – aparece até mesmo na última posição.

Isso é uma catástrofe que não se limita à miséria educacional sob Jair Bolsonaro. O governo do populista de direita não está interessado em melhorar o nível dos escolares e universitários brasileiros. Os sucessivos ministros da Educação – até agora quatro – são notórios principalmente por suas excentricidades e seu óbvio desconhecimento da área.


O ex-ministro Milton Ribeiro chegou a ser preso preventivamente por corrupção – e acabou solto no dia seguinte. Abraham Weintraub só se salvou do mesmo destino graças à transferência para o exterior, a serviço do Banco Mundial. Um ministro nomeado não pôde assumir por ter alegado ter um título de doutor que não possuía. O atual ministro, ninguém conhece.
Futuro sem capital humano

No entanto, as consequências da miséria educacional, que o IMD provou tão claramente agora, vão muito além da política insuficiente do governo no ensino: elas estão profundamente enraizadas na sociedade brasileira. Sejam ricos ou pobres, em todas as camadas do Brasil a educação é considerada secundária, algo mais ou menos supérfluo, que é nice to have.

Muitos pobres não entendem que a educação possa ser uma possibilidade de ascensão social, pois praticamente não conhecem ninguém que tenha conseguido. As escolas públicas são tão ruins que até mesmo os mais pobres, se podem, enviam seus filhos para as particulares. Mas os diplomas só valem no papel.

"No Brasil, a educação se resume a uma situação em que uns fingem que ensinam, outros fingem que aprendem, e tudo termina em diploma", disse recentemente o filósofo Eduardo Giannetti em entrevista ao jornal Valor Econômico.

Grande parte dos jovens de classe média não possui a qualificação em matemática e português atestada em seu certificado de ensino médio, como têm mostrado repetidamente os estudos Pisa da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne os países industrializados desenvolvidos. Muitos são lançados como analfabetos funcionais e sem domínio das operações aritméticas básicas no mundo do trabalho, onde são proporcionalmente mal pagos.

Contudo, muitos brasileiros de classe média a alta também pensam que, ao colocar seus filhos em escolas caras, já fizeram o suficiente por sua formação. Não se ensina a pensar, mas a aprender de cor. Um indício é que no Brasil não se leem nem presenteiam livros. Também nas casas dos que poderiam comprá-los, livros são artigo raro. Onde há aula de música na escola? Que crianças ou adolescentes já foram a um museu ou exposição?

Para o Brasil, esse último lugar em relação ao nível educacional da população é um mau presságio, pois compromete seu futuro. Giannetti explica: "Porque a formação de capital humano é o que define a vida de um país. Nenhum local prospera, encontra o seu melhor, se não der a cada cidadão a capacidade de desenvolver o seu potencial humano. E o Brasil está muito longe de alcançar essa realidade."

A isso, não há nada mais a acrescentar.

Bolsonaro aguou o Bicentenário

O repórter Lauro Jardim deu uma pequena notícia ruim que reflete o tamanho do atraso em que o Brasil está metido. Os presidentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) estão tomando providências para proteger os dois prédios no dia 7 de setembro. O ministro Luiz Fux coordenou a formação de três anéis de proteção e, no dia do Bicentenário da Independência, isolará uma área de 1,5 quilômetro de raio. Ele teme a repetição das provocações do ano passado, quando caminhoneiros furaram o bloqueio da Esplanada dos Ministérios. Caravanas de ônibus levaram manifestantes que criticavam o tribunal e defendiam a cloroquina.

Na manhã do dia 7, Jair Bolsonaro discursou na Esplanada e ameaçou:

— Ou o chefe desse Poder enquadra o seu (ministro do STF) ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos.

À tarde, na Avenida Paulista, foi adiante:

— Tem tempo ainda de arquivar seus inquéritos. (...) Sai, Alexandre de Moraes! Deixa de ser canalha, deixa de oprimir o povo brasileiro.

Há 200 anos, o 7 de Setembro é uma festa de todos. Não tem o clima festivo do 14 de Julho francês nem do 4 de Julho americano, mas nenhum governo fez do 7 de Setembro um dia de vulgar mobilização partidária e divisiva.

As ditaduras promoviam patriotas, sempre com algum conteúdo cívico. Há um século, o presidente Epitácio Pessoa trabalhou e comemorou o Centenário com uma grande exposição internacional, congressos e visitas ilustres. Em São Paulo, inaugurou-se o monumental Museu do Ipiranga, com seus jardins. Cinquenta anos depois, o presidente Emílio Médici passeou pelo país os restos mortais de Dom Pedro I e promoveu uma dezena de louváveis iniciativas culturais.

Em plena ditadura, Médici fez do 7 de Setembro um dia de congraçamento. Segundo o Ibope, 84% dos brasileiros diziam-se satisfeitos com a situação do país. O presidente cavalgava a própria popularidade, mas cortou as manobras que lhe permitiriam uma reeleição. No dia 6, proibiu-se a transcrição do decreto de Dom Pedro abolindo a censura.

(Durante o mês de setembro de 1972, no Araguaia, a ditadura matou pelo menos nove militantes do PCdoB, e os guerrilheiros mataram um sargento e um camponês. No Rio, foi morto um bancário durante um assalto a banco na Penha.)

A essência do 7 de Setembro divisivo de 2022 partiu do Planalto. Pena que este mesmo governo não tenha feito da data um momento de reflexão histórica. Salvo uns poucos eventos de abnegados, o Bicentenário da Independência será lembrado pela reinauguração do Museu do Ipiranga, obra de governos paulistas, com a ajuda de empresários, valorizada por João Doria.

Pelo menos nesse evento, os brasileiros estarão juntos, tendo o que festejar, pois o museu foi reerguido depois de décadas de decadência. Bolsonaro, seus ministros da Educação e secretários de Cultura reclamam da influência esquerdista nos currículos. A celebração de personagens e datas é uma das joias do pensamento conservador, e no Centenário a República Velha deu ao país o Museu do Ipiranga. Felizmente o museu será devolvido ao público.

Como ensinava Sérgio Buarque de Holanda, conservador é uma coisa, atrasado é outra.

Amazônia, uma colônia do Brasil

É curioso que na Amazônia (e outras florestas) se mantenha o modelo de governança colonial espoliativo que inaugurou o Novo Mundo no século XV. Ao que parece, a descolonização nessas áreas não se completou.

Há uns vinte anos vi algo parecido no México. Fui conhecer um projeto indígena que exportava café gourmet para consumidores solidários europeus. A região, infestada por grileiros, latifúndios e criminosos, lembrou a nossa Amazônia.

Subimos a selva montanhosa durante muitas horas em estrada intransitável, entre as regiões de Chiapas e Oaxaca. O clima na vila era tenso. O tráfego de jipes militares com suas Browning .50 era ostensivo.

Assim como no México, o enredo amazônico é secular. A degradação gradual do tecido legal e social segue uma ‘crônica de uma morte anunciada’.


Na Amazônia, como em outras florestas, o interesse privado juntou-se ao desinteresse público, para lucrar com a pobreza humana e a riqueza natural (nesses lugares, o abandono tornou-se a principal política pública).

Pude ver o mesmo na Colômbia, transbordando a violência da guerrilha e do tráfico nas florestas para cidades, como Medellín. A solução exigiu investimento vultoso e planejamento inovador.

Outro exemplo é o das selvas africanas, onde novos colonizadores estimulam o desvio de minerais valiosos, para produção de celulares e artefatos nucleares da China e Coreia do Norte (novas tecnologias, antigos métodos).

Por sua vez, o Brasil insiste no eufemismo do bandeirante herói, romantizado, que agia nos sertões sem lei até o século XVIII, subjugando índios, tomando terras, traficando ouro, diamantes e escravos, sob a leniência de Lisboa.

Ainda no século XVIII, o Marquês de Pombal oficializou a dilapidação da Amazônia, criando a Companhia Geral de Comércio do Grão Pará e Maranhão (também para vender escravos e raspar o tacho das riquezas locais).

Nessa toada, a floresta amazônica vive, ainda hoje, um prolongamento daquela ocupação, ora ilegal, ora ‘legalizada’, que fincava os marcos da soberania portuguesa, enquanto o governo não chegasse.

Porém, na Amazônia atual, não se justifica que permaneça a tolerância com os bandeirantes de hoje (grileiros, garimpeiros, madeireiros e outros). As fronteiras estão consolidadas e, bem ou mal, o Estado brasileiro em suas diferentes formas já está na Amazônia, apoiado pela Segurança Pública e a Defesa. Resta governá-la.

A esse cenário, adicione-se os agravantes da mudança climática em curso. É inadiável deixarmos de tratar a Amazônia como colônia do Brasil e integrá-la a um projeto de país, antes que a soberania escorra rio abaixo, como em outras florestas pelo mundo.

quarta-feira, 29 de junho de 2022

Brasil do Sem

 


Domingo a gente não tinha nada para comer

Assim dona Janete Evaristo expôs sua fome na TV. Moradora de Andaraí, no Rio de Janeiro – viúva, desempregada, responsável por cinco pessoas – era mais um na fila de um dos programas que distribuem refeições aos muitos que, hoje, têm fome e não têm o que comer. Fez chorar a repórter que a entrevistava. E fez chorar quem soube ou viu a cena na TV.

Deveríamos falar mais, falar muito sobre a fome. Ela é visível. Tem cara e corpo, magro e triste. É parte do cotidiano de todos que se movimentam por ruas, praças, parques, estradas, becos, favelas.

O pintor de paredes traz na marmita arroz, um pouco de feijão, ovo. Às vezes, só arroz e feijão – pouco.

A diarista, agradece o prato bem servido. Olha e faz o pedido. Posso levar um pouco pra janta da minha filha?

Cabeça baixa, explica. Tô quase sem nada em casa. O da mão pra boca ta cada vez mais curto, menor. Há humilhação na confissão da carência.

Como não sentir essa dor tão perto?

São trabalhadores que, ainda que tenham serviço remunerado, por ele não recebem mais o suficiente para ter a certeza da comida do dia seguinte.

Como dona Janete do Andaraí, país afora, 33 milhões de brasileiros sofrem a dor, a angústia da fome. Quase 7% desses vivem no estado Rio de Janeiro. O que significa, ali, hoje, há 1,2 milhão de famintos.

Há gente por trás dos números e dos percentuais. São pessoas, com a diária necessidade básica e fundamental de comer. Muita gente. Pouca comoção com a tragédia desses tantos sem comida no país que produz e exporta muito alimentos.

O Brasil, desanda no quesito responsabilidade social.

Não há decreto de sigilo que esconda a fome no Brasil de agora. Anos e anos para reduzir essa vergonha. Pouco tempo para tirar prato cheio da mesa de 1/5 dos brasileiros.

Há fome no mundo. A pandemia agravou. Sim. Mas, no Brasil, antes da pandemia, a fome já ganhava fôlego.

Nos derradeiros 10 anos, a insegurança alimentar galopou na direção de 58% da população brasileira. Gente de carne e osso que, em algum grau, convive com falta de alimentos. Leve, moderada ou grave, de novo, a fome retornou ao cotidiano da população brasileira.

A fome é uma indignidade. Permitir seu avanço é desumano.

O Brasil oficial de 2022 não tem envergonha pela fome de milhares. Não tem piedade.

O Brasil oficial, com apoio de 20% da população, prega o retorno do Deus, Pátria e Família – aí só cabendo o seu modelo de Deus, de pátria e de família.

Na arrogância de suas certezas, além de promover e embalar a fome, insistem em tomar direitos expressos na Constituição.

Loura, bela e arrogante, a juíza nega direito ao aborto a uma criança estuprada.

Na mesma semana, desumana inconsequência de muitos, expõe a vida e a dor de outra mulher estuprada – jovem atriz, de 21 anos, que, em silêncio, carregou o drama da gravidez advinda do abuso.

E Klara Castanho, a atriz, foi mais uma vez estuprada. Agora em praça pública e por duas mulheres – uma enfermeira, uma youtuber. Zero sororidade. Compaixão nenhuma. Máxima e inconsequente invasão de privacidade.

Dali pra frente, Klara, exposta em postas, foi mais notícia do que a fome. Sem direito a decreto oficial de sigilo – esse que costuma oferecer esconderijo de largo tempo aos mal-feitos de pequenas e grandes autoridades da República atual.

O Brasil real tem fome de comida, de respeito humano. De luz e lucidez. O Brasil oficial carece de vergonha moral.

Lira jantando

Não é normal que presidente da Câmara — ou do Senado — ofereça jantar em honra a ministros do Supremo. Qualquer que seja o ministro; qualquer, a razão. Não é normal que político — de alto ou baixo clero — convide juiz para convescote em casa; qualquer que seja o tempo. A razão para recusar sem ser deselegante é a prudência que oferece: não existe refeição grátis em Brasília.

Fulanizemos: o que pretenderá alguém como Arthur Lira ao promover celebração a ministro do STF, no caso Gilmar Mendes, senão demonstrar Poder? Seria gesto para comprometer miudamente, não fosse sobretudo um comprometimento ao exercício impessoal do poder na República. Com todas as vênias: não pode um juiz aceitar afago daquele cujo foro tem lugar no tribunal que compõe.

Se os ministros do Supremo erram nos convites oficiais que fazem, vide a infiltração militar golpista no TSE, quanto errarão nos informais que aceitam?

Não é normal — não se for a República — que juiz de tribunal superior transite naturalmente entre políticos. Não é normal que ministro de Corte constitucional seja articulador-formulador de soluções para impasses políticos.

Sacrifica-se a percepção de Estado de Direito quando os mais poderosos, inclusive os guardiões da Constituição, concertam-se em confrarias.


É a percepção de ministros da Corte constitucional como agentes políticos — negociadores junto aos Poderes, ao mesmo tempo que tomadores de prerrogativas do Parlamento e do Executivo — que faz ascender figuras como Kassio Nunes Marques e André Mendonça; porque ao presidente de turno, tanto mais um para quem a República é empecilho, sempre será tentador ter os seus homens num tribunal onipresente, que se lança a agir de ofício, a interferir, não raro provocador, em vez de responder a provocações.

Por que não ter o meu ministro, os meus? — projetará. Quão atraente será possuir — sob a vara de um togado de confiança — os instrumentos com que se concebeu, em nome da virtude, o inquérito das fake news, que já censurou uma revista?

A gente sabe como o arreganho começa, e até avalia que virá para o bem, mas nunca sabe aonde vai. Acabada a Lava-Jato, resta o lavajatismo como Zeitgeist.

O Supremo que se admite como engenheiro constrói arapuca contra si. O tribunal que se põe a andar — mesmo a legislar — em nome de causas virtuosas é o mesmo cuja atividade expansiva cria as condições para o contra-ataque reacionário quando mudada sua composição. Aquele que não se equilibra se oferece aos ventos. Última palavra, o STF deveria zelar por não abusar desse apanágio, especialmente no momento em que não faltam candidatos a Poder Moderador.

Lira mesmo, ou não será um dos patrocinadores da PEC que pretende transformar o Congresso em instância revisora de decisões do STF? O presidente da Câmara é senhor do Orçamento cuja gestão secreta e arbitrária — para a qual o Supremo faz vista grossa — consiste na própria ainda existência competitiva do governo do autocrata Jair Bolsonaro. Não dá para fazer discurso pela democracia e depois ir beber o vinho na casa do sócio-investidor do projeto bolsonarista.

Lira, com seus modos autoritários, é fiador legislativo — associado também nos costumes — de um presidente cujo populismo se exerce numa geração permanente de conflitos artificiais que erodem a República. O presidente da Câmara está muito à vontade nisso, conjugando a aplicação patrimonialista para o que seja harmonia entre Poderes. Estão — estavam — à vontade os ministros do Supremo?

Fico aqui pensando em como reage o cidadão brasileiro cada vez que escuta ou lê a pregação sobre balanço republicano e separação entre Poderes.

Ministros do Supremo — cujas canetas podem distribuir decisões monocráticas que, afinal, beneficiam um ou outro — precisam evitar que o tipo de vida social que têm os coloque sob desconfiança; coloque as decisões que tomam sob suspeita. A descrença é grande e vai profissionalmente explorada. E não importa que Bolsonaro também estivesse no jantar. O bolsonarismo explorará a promiscuidade caracterizada na ideia de um sistema — aquele (de que faz parte) que não o deixaria governar — que se resolve na mesa, à noite, sem os freios da impessoalidade de uma agenda pública.

Mas, sim, Bolsonaro estava lá, o herói que só quer mesmo salvar a própria pele e a dos filhos. Há relatos de que esteve a portas fechadas com Alexandre de Moraes. Gostaria de entender a validade — em junho de 2022, depois de tudo quanto já barbarizado — de conversas secretas com o capitão, senão ofertar as circunstâncias-armadilhas para que ele, sem deixar de atacar o Supremo, fale em acordos de alcova não cumpridos por ministro da Corte. Foi o que ocorreu após o 7 de Setembro. E já vem outro aí.

É hora de menos papinho e de mais plenário.

Fome dos que comem

Há duas fomes no Brasil de hoje: a fome de comida, que maltrata e mata, e a fome da moral, dos que assistem à tragédia sem indignação com o sofrimento dos outros, nem inteligência para perceber o custo social e econômico para todo o país.

Assistimos constrangidos aos 33,1 milhões de brasileiros dormindo, acordando e sobrevivendo sem se ter o que comer, ao mesmo tempo que sabemos que essa fome não decorre da escassez de alimentos no país. Nosso território não é desértico, não estamos vivendo uma guerra, não fomos invadidos. É vergonhoso que a fome ocorra num país que está entre os maiores exportadores do mundo, onde o agronegócio produz safras recordes sucessivas, em que os supermercados estão sempre abastecidos, e a televisão divulga dezenas de publicidades para vender comida e apresenta horas por dia de programas realities com concursos, lições e turismo de gastronomia.

Alguns países, mais populosos, também têm contingentes de famintos, mas nenhum deles tem tanta comida disponível, tanta propaganda de alimento, nem tanta apologia à gastronomia ao lado dos noticiários da fome na televisão. A fome de alguns não vem, também, da disputa pela comida que é suficiente para alimentar muitos brasis; a falta de educação também não decorre da necessidade de negar a educação a alguns para oferecer a outros. Ambas as fomes, de comida e de educação, são resultado da maldade, da insensibilidade e da estupidez.


A fome africana ocorre por falta de comida no país, a fome brasileira é por falta de acesso dos famintos à comida que existe disponível ao redor. Nossa vergonha vem da falta de solidariedade com os que passam fome e de competência para levar a comida de onde sobra para onde falta. A fome é causada pela insensibilidade social e por prioridades equivocadas na política. Nossa vergonha vem da banalidade de como vivemos em um mesmo país com falta para alguns e com excesso de comida para outros. Há um constrangimento pelas notícias da fome e vergonha por não termos justificativa para que ela ocorra. A única explicação está na indiferença diante dela e na incompetência para evitá-la.

Se o faminto contaminasse as pessoas alimentadas, como o vírus faz ao passar de um indivíduo doente para um saudável, certamente já teríamos aplicado a vacina disponível: garantindo acesso de todos à comida que sobra, construindo uma economia dinâmica para gerar emprego, assegurando renda suficiente ou simplesmente distribuindo comida diretamente a quem precisa. O mesmo acontece com o analfabetismo: se os cerca de 13 milhões de adultos analfabetos contaminassem aqueles que já aprenderam a ler, rapidamente surgiria a vacina: escola para todos desde a primeira infância e programas para a erradicação entre os adultos.

As fomes brasileiras, de comida e de educação, são resultado da insensibilidade daqueles que comem em relação aos que não comem e dos educados diante dos que não sabem ler. Insensibilidade e estupidez, porque o Brasil seria muito mais rico, mais belo e melhor para viver se não houvesse fome e se todos fossem satisfatoriamente educados. Alimentar os 33 milhões que passam fome não apenas reduziria o sofrimento dessas pessoas e suas famílias, mas melhoraria imediatamente a vida de todos nós, sem a vergonha que sentimos, e beneficiaria a todos com o trabalho produtivo dessas pessoas.

Da mesma forma, a educação de todos não apenas daria nova vida a esses analfabetos, mas também elevaria a produtividade do trabalhador brasileiro, a renda social, a riqueza de todos. A fome e o analfabetismo são prova de insensibilidade, mas também de estupidez nacional, porque atingem diretamente os que não comem e não sabem ler, mas também indiretamente os que comem e os instruídos. A fome está no estômago de quem não tem comida, mas também no coração e na mente dos que comem, especialmente aqueles que têm poder para mudar a realidade, criar mecanismos para que o excesso chegue aos que têm escassez de comida. Mas para que isso ocorra é preciso matar a fome dos que comem: fome de indignação e de inteligência.

terça-feira, 28 de junho de 2022

Brasil no prato

 


O drama da fome

Temos hoje 125,2 milhões de brasileiros em situação de insuficiência alimentar. O problema não se resolverá com providências tópicas e emergenciais.

Entre o acúmulo de dramas que se tornaram visíveis na sociedade brasileira nos últimos dias, está o não pequeno drama da fome. O país do futuro está sendo devorado pelo presente.

Os dados mais recentes sobre a fome, divulgados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar, colhidos em entrevistas realizadas em 12.745 domicílios, dão um retrato objetivo da situação em todas as regiões do país, na zona urbana e na zona rural. Constituem indicadores de uma parte do que é a nossa pobreza, pois se referem apenas à situação alimentar. Haveria que levar em conta o restante do que é a pobreza entre nós quanto à moradia, ao consumo não alimentar, à saúde, à educação.

A porcentagem dos que em 2004 viviam em situação de segurança alimentar era de 64,8%; em 2020/2021 caíra para 41,3%. Mesmo que se considere, como é necessário, a situação anômala criada pela pandemia, a intensidade de sua influência nos números foi agravada pela vulnerabilidade da sociedade brasileira ao impacto de desastres de todos os tipos, incluídos os decorrentes da incapacidade dos governos para lidar com situações excepcionais em todos os campos.

Entre o final de 2020 e o início de 2022, o número de pessoas em situação grave de fome saltou de 19,1 milhões para 33,1 milhões, 15,1% da população. Em pouco mais de um ano, 14 milhões de brasileiros passaram a viver em situação de fome, a forma mais acentuada de decadência social da pessoa. Temos hoje 125,2 milhões de brasileiros em situação de insuficiência alimentar.


O socorro tópico e emergencial oferecido pelo governo, melhor que nada, como se diz, tem pouco efeito no incremento da segurança alimentar. Tomando como referência a categoria dos que recebem 1/4 de salário mínimo per capita ou menos, a relação, nos três meses anteriores à coleta dos dados, entre o recebimento da Bolsa Família ou do Auxílio Brasil, dos que recebem, 8,1% estão em situação de segurança alimentar e 44,3% em insegurança alimentar grave. Entre os que não recebem, 9,9% estão na primeira situação e 56,7% estão na segunda.

O problema não se resolverá com providências tópicas e emergenciais. Elas se baseiam num pressuposto que vai se revelando completamente falso. O de que a situação adversa, do desemprego à fome, é transitória, de que o crescimento econômico sem desenvolvimento econômico e social se resolverá com a insistência na opção pelo modelo econômico problemático e pelo neoliberalismo econômico sem resultados sociais na proporção necessária à solução de todos os problemas que cria. O modelo econômico aqui adotado vai se revelando o do beco sem saída.

Sem programas de crescimento econômico com desenvolvimento social que criem lugares permanentes de integração social e de pertencimento, nenhum programa de combate à fome dará certo. Qualquer “acidente”, como este da covid, pode comprometer tudo.

O impacto desses programas na fome é limitado. E quando sua motivação é subornar a consciência política dos pobres e deles fazer cúmplices eleitorais do modelo iníquo e da política econômica equivocada o resultado é o que Edgar Morin define como efeito bumerangue da comunicação imprópria. Estamos vendo isso diariamente.

Esses dados da situação alimentar devem ser tomados não só como indicação de gravíssimo problema social, mas também como evidência de um modelo econômico derrotado, de uma economia que cresce e se desenvolve muito menos do que pode. O Terceiro Mundo, e o Brasil com destaque nele, vem sendo tangido por influências e políticas econômicas que de fato o afastam do capitalismo.

O Brasil montou um sistema repressivo e uma cultura de intolerância política para combater o comunismo, mesmo já não existindo ele, para supostamente defender o capitalismo. Mas cadê a defesa do capitalismo? Capitalismo se defende e se justifica com medidas concretas que lhe corrijam as irracionalidades antes de incrementar-lhe os lucros.

Na prática essa economia só pode se realizar fazendo-o ser o capitalismo que aqui não é. Governantes e capitalistas parecem bem distantes da realidade do que é propriamente o tipo de economia que lhes compete defender, dinamizar e fazer crescer. Não é o que estamos vendo nem o que indica essa pesquisa sobre a fome.

Os famintos e miseráveis da sociedade brasileira são o capital social não utilizado que poderia promover um grande desenvolvimento econômico com desenvolvimento social num país como o nosso.

O Estado brasileiro foi capturado por gestores que optaram por uma versão tosca e anticapitalista de capitalismo. É o poder de técnicos e políticos alienados. Em decorrência, as vítimas se arrastam nas insuficiências de uma situação que bloqueia o país inteiro.

Combinação perversa

Com a costumeira empatia zero, o presidente Jair Bolsonaro usou uma menina de 11 anos, vítima de estupro, para criticar o direito ao aborto legal. Bem que tentou desviar as atenções do escândalo envolvendo o seu ex-ministro da Educação, por quem ele já colocou a cara no fogo, e agora, arrependido, só põe a mão. Mas desta vez não deu muito certo. No meio da tarde da sexta-feira, a suspeição de que ele interferiu nas investigações o empurraram para as cordas.

Ainda que a combinação perversa – sigilo do que importa e palavrório polêmico para abafar os temas que incomodam – tenha falhado, Bolsonaro aposta na fidelidade canina (ou será bovina?) dos seus e na memória fraca do público em geral. Isso explicaria o efeito tefal observado nas pesquisas de opinião, que, a despeito do cenário adverso para o presidente, o deixam no mesmo lugar – não sobe, mas também não despenca.

Mesmo evidenciando a gravidade do recuo civilizatório do país, a avalanche de ocorrências escabrosas ironicamente contribui para colocá-las no esquecimento. O arremedo golpista de 7 de setembro do ano passado, por exemplo, quase eclipsou o genocida da pandemia, aquele que corria da raia dizendo que não era coveiro. E assim vai.

A farra dos pastores no MEC, denunciada pelo Estadão há menos de três meses, só voltou à tona com a prisão de Milton Ribeiro, que começa a fazer sombra às mortes cruéis de Bruno e Dom, responsáveis por escancarar o domínio da Amazônia pelo crime organizado. Concorrem ainda com as notícias da fome afligindo 33% da população, com a procuradora espancada por colega e a juíza que tenta induzir uma criança vítima de estupro a abrir mão do direito de aborto. E Genivaldo de Jesus Santos? Quem se lembra?

É difícil apagar da mente a cena da asfixia de Genivaldo no camburão, empurrado violentamente por fardados armados, com fumaça saindo por todos os lados.

Mas aqui, além dos horrores de hoje suplantarem os do dia anterior, provocando o esquecimento, conta muito a escola bolsonarista do manter tudo escondido, travar qualquer possibilidade de transparência no que possa causar prejuízos. Utilizando-se de uma interpretação absolutamente torta da Lei de Acesso à Informação, a Polícia Rodoviária Federal impôs sigilo de até 100 anos sobre os processos administrativos dos agentes envolvidos na ação. Ao Metrópoles, alegou que seriam “informações pessoais”.

A PRF só decidiu ler a lei a seu bel prazer por ter costas largas. Bolsonaro já determinou sigilo de até 100 anos no processo contra o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, sobre as visitas de seus filhos – todos parlamentares – ao Palácio, incluindo seus acompanhantes, de seu cartão de vacinação. Até tentou, sem sucesso, impedir que as 35 entradas dos pastores lobistas do MEC no Planalto ficassem lacradas por um século.

Além de ecoar polêmicas aderentes aos seus fiéis só para tergiversar, e da absurda prática do segredo de estado em questões em que a norma não se aplica, a cartilha de Bolsonaro para tentar se livrar dos perrengues do seu desgoverno tem outras vertentes. Apoia-se ainda na mentira – expressa cotidianamente nas redes sociais – e no afrouxamento amplo, geral e irrestrito de qualquer fiscalização, aquelas organizações com letrinhas chatas que perturbam sua família, seus amigos e aliados. E, claro, na gastança eleitoral com dinheiro dos impostos dos brasileiros e na campanha permanente.

Já no primeiro ano de mandato, injuriado com as diligências da Coaf nas contas de seu rebento Flávio, enrolado com as rachadinhas, o papai presidente decidiu mudar a gerência, a vinculação e até o nome do Conselho, que passou a chamar Unidade de Inteligência Financeira (UIF). Movimento tão fake que nem o novo nome colou. Mas serviu para assustar servidores, reorientar e apagar investigações.

Não há um só órgão de fiscalização que tenha saído ileso. Sob Bolsonaro, todos, absolutamente todos perderam poder de investigação. Ibama, Funai e Inpe lideram o rol de organizações dinamitadas, que ainda inclui vítimas de assédio institucional como o ICMBio e o IBGE e várias universidades federais, acusadas de proselitismo de esquerda.

Esse enredo macabro de bravatas, mentiras, destruição e sigilo ainda pode fazer sucesso. Mas deveriam se limitar à seara do entretenimento, novelões e filmes B. O repertório do Brasil tem de ser outro.

Sempre dá para piorar

Qual é o papel dos agentes do Estado num país democrático? Uma série de acontecimentos recentes destaca a pertinência e a urgência da questão no Brasil.

A PRF, por exemplo, resolveu liberar uma nuvem de fumaça sobre o caso Genivaldo de Jesus Santos, o homem negro morto por asfixia e insuficiência respiratória na espécie de câmara de gás improvisada numa viatura em Sergipe. Acionada por meio da Lei de Acesso à Informação, a corporação impôs sigilo secular sobre os processos administrativos que investigam a conduta dos agentes envolvidos.


No Rio, a vereadora Benny Briolly denunciou nova ameaça de morte, segundo ela "desta vez enviada do e-mail oficial do gabinete do deputado estadual Rodrigo Amorim". Foi registrada ocorrência por racismo e transfobia contra o parlamentar. "É um atentado ao meu corpo e à democracia. Sou travesti eleita pelo povo dentro dos marcos da Constituição", disse Benny.

E, em meio ao alvoroço causado pela decretação da prisão preventiva do ex-ministro Milton Ribeiro e de quatro envolvidos no escândalo de corrupção no MEC, a denúncia do delegado federal Bruno Calandrini de que "houve interferência na condução da investigação", com prejuízo aos trabalhos, elevou o grau da fervura. Embora a manifestação tenha sido inicialmente categorizada pela PF como "boato", a interceptação de ligação telefônica na qual o ex-ministro revela ter sido prevenido sobre possível operação de busca e apreensão determinou a escalada do caso.

Quando a finalidade dos agentes do Estado é desvirtuada, forças de segurança se tornam matriz de violência contra o cidadão, deixando de proteger; prerrogativas básicas são descumpridas; e decisões passam a ser tomadas com parcialidade. Nesses casos, a repressão passa a responder a impulsos contrários ao interesse público, em prejuízo da defesa de direitos e garantias fundamentais e do Estado democrático de Direito. Como diz o ditado: nada é tão ruim que não possa piorar.

É preciso desligar a violência

A notícia já era repugnante por escrito: um procurador espancou a colega de trabalho. Não vieram, porém, só palavras, tinha mais: o vídeo registrando de forma explícita a covardia.

Me desculpem, mas, para mim, foi demais.

As notícias abomináveis têm aparecido em sequência: a câmara de gás portátil em Sergipe, o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips, o estupro da menor em Santa Catarina. A gente sabe que não vai parar por aí. Como reagir? O quanto podemos tolerar? Quando o vídeo covarde e violento começou, parei no primeiro soco.

Já não consigo.

Sim, sei que a indignação pública é fundamental e que sem ela a Justiça não vai para a frente. Deixar quieto é garantia de impunidade. Também sei que sou um privilegiado, dos que têm contato com a violência muito mais pelas telas do que ao vivo.

Sim, tenho consciência.


Porém, de tão informado, de tantas notícias trágicas nas palmas das mãos e imagens violentas ao alcance dos olhos, de tanto ver o que não gostaria de ter visto, ando querendo desligar a realidade. Ao menos essa da desgraça e dor em 4k e 120Hz. Às vezes me sinto como aquele personagem de “Laranja mecânica”, obrigado a ver cenas violentas até não aguentar mais.

O quanto a gente consegue aguentar? Vale a pena?

Talvez esteja me juntando aos que evitam notícias ruins. São cada vez mais, diz uma pesquisa do Instituto Reuters feita em vários países. Sim, o Brasil está na frente. Talvez não se trate de alienação, muito menos desinteresse, mas de sobrevivência. Buscar abrigo para o excesso de maldade e estupidez. O leitor deve estar se perguntando se funciona, se não é tapar o sol com a peneira ou enterrar a cabeça na areia. É sensato ignorar o horror?

Quando era adolescente e ouvia minha avó reclamar das notícias ruins nas páginas, na TV, achava que isso era uma atitude sem sentido, coisa de velho. Hoje percebo a antiga sabedoria. Não dá para viver cercado de crueldade e selvageria. Mais cedo ou mais tarde você acaba se tornando indiferente à barbárie. Quando se dá conta, virou um daqueles haters que apareceram na coluna da semana passada. Melhor não.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Brasil não perde a atualidade

 


Caso Milton Ribeiro é expressão genuína do bolsonarismo

O bolsonarismo baseia sua legitimidade em narrativas que nada têm a ver com a realidade.

Há a alegação de que o bolsonarismo combate o comunismo. Qualquer pessoa com sentido político se questiona: que comunismo? Não há nenhum forte movimento comunista ou socialista no Brasil. O PT é um partido social-democrata, que não quer eliminar o capitalismo, mas restringir seus excessos negativos.

A segunda narrativa afirma que o bolsonarismo defende os valores cristãos. Aqui resta apenas a pergunta: a quais valores pregados por Cristo eles se referem? O direito ao porte de armas? O direito à tortura? O direito de ofender e ameaçar quem tem uma opinião diferente? Ou o direito de destruir o meio ambiente, ou seja, a criação de Deus?

O terceiro pilar do movimento foi, desde o início, a história de que eles estavam combatendo a corrupção. Bolsonaro e seus apologistas alegavam que não havia corrupção no seu governo. Essa era talvez a alegação mais atrevida, porque ela contradizia tão evidentemente a realidade. Já era possível se dar conta disso muito antes da prisão do ex-ministro da Educação Milton Ribeiro, que é investigado por suspeita de corrupção passiva, prevaricação, advocacia administrativa e tráfico de influência.

Também não foi nenhuma surpresa Ribeiro ser um pastor evangélico e estar envolvido em negócios ilícitos do Ministério da Educação com outros pastores evangélicos. As grandes igrejas evangélicas – todas apoiadoras de Bolsonaro – são um refúgio de falsidade e manipulação. Elas apoiam Bolsonaro porque ele lhes garante privilégios como isenção de impostos, por exemplo. Não surpreende o fato de terem sido registradas dezenas de visitas dos pastores que foram presos agora ao Palácio do Planalto.

A prisão de Ribeiro é surpreendente apenas devido ao fato de a Polícia Federal (PF) não ter batido à porta de um ministro de Bolsonaro muito antes – do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, por exemplo. O general foi responsável pelo caos na crise da covid-19 e pelos escândalos de corrupção na compra de vacinas contra o coronavírus. Com Pazuello, a promessa de uma atuação técnica dos militares no governo foi de vitrine à vidraça. Ao menos sete militares que estavam no comando de cargos-chave da Saúde foram citados na CPI da Pandemia por suposto envolvimento em irregularidades.

Quando Bolsonaro fala de seu governo "livre de corrupção", ele parece sempre se esquecer de seus filhos, que cumprem tarefas dentro do governo. Os três mais velhos estavam e estão na mira do Ministério Público, e agora o mais novo também é investigado. Embora Bolsonaro enfatize que seus filhos devem responder por seus próprios erros, ele mandou trocar a Superintendência da PF no Rio de Janeiro devido às investigações contra eles.

Em agosto de 2021, o governo até decretou sigilo centenário de informações sobre o presidente e seus filhos após pedidos feitos pela imprensa. Essa medida se somava a outras ações adotadas por Bolsonaro para reduzir a transparência pública. Só faz isso um governo que tem algo a esconder, e não um que combate a corrupção.

A interferência de Bolsonaro na PF levou à renúncia do ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Até sua renúncia, os bolsonaristas consideravam Moro um herói na luta contra a corrupção. Desde então, ele passou a ser um "traidor". O bolsonarismo nunca foi sobre a luta contra a corrupção, mas um projeto nepotista de poder e de destruição do Estado. Uma pediatra bolsonarista me disse há pouco tempo que Moro tinha simplesmente muita ambição.

Com a mesma facilidade, bolsonaristas defendem o casamento com o Centrão – a personificação de corrupção, desvio de recursos públicos e, principalmente, estagnação política. Fica claro que o bolsonarismo é um movimento sem princípios. Quem proclama mudar o sistema político corrupto do Brasil, mas em seguida abraça Fernando Collor e deixa passar um monte de emendas secretas para garantir a reeleição de deputados do Centrão, trai os próprios eleitores.
Irregularidades por todos os lados

Casos de nepotismo e irregularidades pautam este governo. Um outro exemplo? O caso Queiroguinha. O filho do atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, atuou em processos destinados à liberação de recursos públicos do Ministério da Saúde. Queiroga agora pode ser investigado por suspeita de improbidade administrativa e infração à legislação eleitoral.

Há, além de tudo isso, o aumento dos gastos com o cartão corporativo do presidente às vésperas da eleição, que atingiram o valor de R$ 1,2 milhão por mês. Desde 2019, ano do início do governo Bolsonaro, as faturas mensais têm ficado cada vez mais altas. Isso parece um uso responsável do dinheiro dos contribuintes, ou já é peculato?

O bolsonarismo, cujo lema é lei e ordem, é um movimento que acredita estar acima da lei. Isso começa pelos garimpeiros e madeireiros ilegais na Amazônia, que justificam suas atividades literalmente afirmando que o presidente permitiu e, até mesmo, exigiu. (Bolsonaro mostrou a eles como se faz, quando em 2010 foi pego pescando em uma área de proteção e recebeu do Ibama uma multa de mais de R$ 10 mil. A reação do presidente foi exonerar o servidor que lhe tinha multado e nunca pagou a multa.)

A coisa toda continua com tipos como Daniel Silveira, que simplesmente ignora o STF e desrespeita a lei sem precisar realmente prestar contas por isso. E termina no gabinete e no clã Bolsonaro, que parece achar ser imune à Justiça por o presidente ter colocado em posições decisivas do aparelho de segurança pessoas de sua confiança.

Espera-se que o caso Milton Ribeiro mude essa postura. Senão há de fato que se temer que Bolsonaro e seu movimento não reconheçam sua derrota nas eleições em outubro. Eles simplesmente não se sentem sujeitos às regras.

Sobre palavras-charlatãs

Do jornalista e político Carlos Lacerda, dono de tiradas verbais desconcertantes, está na memória o debate parlamentar em que o interlocutor o provocava, dizendo que "suas palavras entram por um ouvido e logo saem por outro". A resposta, fulminante: "Impossível, o som não se propaga no vácuo".

Mas isso é reminiscência de um momento em que, à direita ou à esquerda, personalidades de temperamento e manifestações fortes como Lacerda demonstravam alguma elegância para com o discurso social. Até nas ofensas, como aquela dirigida a um deputado gaúcho: "Este centauro mitológico dos pampas, metade cavalo e a outra metade... cavalo também!".

É hoje muito evidente a crise do discurso civil nas tecnodemocracias ocidentais, mas ela é particularmente aguda no contexto brasileiro, onde palavras-charlatãs circulam sem qualquer ancoragem no real-histórico ou no senso comum e, ainda assim, produzem efeitos de comportamento.


Por exemplo, carecem de sentido muitos dos nomes das "igrejas" em expansão. Já nas redes digitais, bolhas protofascistas obtêm melhor desempenho do que as progressistas. Discursivamente, o meme abre portas ao fenômeno. Exemplo abstruso é a palavra "Ratanabá", que designa cidade inventada por um ufólogo bolsonarista, suposta "capital do mundo" localizada na Amazônia e com ouro suficiente para "tornar todos os brasileiros milionários". Transformada em meme, a palavra-charlatã adquire força viral na rede, por mais absurda que seja à cognição. E não é inócua: junto com ela são viralizadas ideias antiambientalistas e anti-indigenistas.

À consciência letrada tudo isso pode parecer remoto, mas esse é o real da boçalidade pública, que penetra na fadiga da institucionalidade cívica. Vale recordar o versículo: "Todas as palavras estão gastas (...) O que foi é o que será. O que aconteceu é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol" (Ecl. 1,9-9).

O texto bíblico abrange hoje as palavras que, destituídas de valor e de peso, embora carregadas de força emocional, apenas acentuam o vazio das vozes. Temia Nietzsche em 1882: "Mais um século de jornalismo e as palavras começarão a feder".

Não se trata, porém, de jornalismo, e sim do "vácuo" a que se referiu o polemista no debate, aquele onde o som não se propaga. Só que isso acontece agora como disfunção societária, isto é, como zeramento progressivo dos valores cívicos e morais, que fazem exigências internas e externas de obrigações coerentes por meio de falas lógicas. O "fedor" nietzscheano foi profético. Mas o mal-estar nauseante que contamina a sociabilidade nacional transparece na corrupção das palavras públicas. É hora de, em silêncio, trocá-las por ações mobilizadoras.

Sem a Amazônia, a vida não é possível

A resposta é o enunciado-síntese de Braz França, líder indígena Baré, do Alto Rio Negro: “A terra é a mãe”. A tradição, o conhecimento, a convivência do povo da floresta é proteção eficaz e fonte de sabedoria sobre a relação Homem/Natureza.

A primeira visão que tive da Amazônia foi um deslumbramento assustador. Um ser ínfimo, paralisado. O tamanho não se mede pelo sistema tradicional: envolve sentimentos. O sentimento de uma grandeza mítica; de uma sinfonia mística da biodiversidade, musicada pelo som dos ventos extraindo ritmo das árvores que crescem na direção do viver para renascer; do rumor das águas com o calor úmido que mata a sede e alimenta a Humanidade.

Pelo tamanho, parecia que estava diante do fim do mundo; pela grandeza, percebi que estava no começo do mundo. Sem Amazônia, distinto púbico, a vida não é possível.


Em agosto de 1995, o Presidente Fernando Henrique Cardoso foi a São Gabriel da Cachoeira (município do Estado do Amazonas, o único no Brasil que tem duas línguas indígenas oficiais, o Tukano e o Baniwa) para ouvir reivindicações e iniciar a execução do processo de demarcação de 10,6 milhões de hectares em terras indígenas no Alto Rio Negro.

Os processos estavam definidos no Plano de Proteção da Terras Indígenas na Amazônia Legal (PPTAL), no âmbito do Programa Piloto de Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras (PPG7) e foram realizados com ampla participação social ao lado do Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Justiça (Funai, sob a presidência de Marcio Santilli) a Federação Das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e o Instituto Socioambiental (ISA). No dia 15 de Abril de 1998, a demarcação foi formalmente concluída.

A viagem presidencial estendeu-se ao longínquo povoado de Iauaretê (mil quilômetros de Manaus, fronteira com a Colômbia), recepcionada pelo Tenente que comandava o pelotão. Ao demonstrar cabalmente a presença do Estado nos limites da Amazônia, FHC deixou a marca do seu peculiar humor ao ser fotografado lado de dois caciques de distintas etnias: “Aqui estão três chefes, ou melhor, dois e meio. Eu sou o meio”.

Na condição de Ministro do Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Amazônia Legal, sentia o pesado encargo de zelar por um bem que, solidária e universalmente, recorro ao poeta Thiago de Mello, “é um bem da vida”.

Mesmo sem lei e sem governo, a “boiada” não passará e o crime não destruirá a Amazônia, o começo de um mundo novo.

Espiões, capitalistas ou etnólogos?

Dizem que “vivemos a vida”, mas, quando a vida nos vive, as frustrações assustam porque, sendo vividos pela vida, ela pouco liga para nossas reações.

Freud chama isso de “princípio de realidade”, porque o mundo não está em sincronia conosco. Daí o desapontamento que nos faz sofrer. E, no entanto, sem isso não teríamos história. Seríamos tão vazios quanto um balão. Pois a vida só se torna interessante quando se transforma numa singularidade — em alguma coisa que tem início, meio e fim. Ao sentir a dor das nossas feridas, escapamos da eternidade do nada.

Fui profissionalmente confundido algumas vezes. A profissão de etnólogo ou antropólogo social não tem uniforme ou emblema. Há apenas o sujeito estranho o suficiente para, numa comunidade diferente da sua, ser novidade ou causar suspeita.


Na minha experiência de antropólogo, iniciada aos 20 anos num Brasil dos anos 1960, não era fácil explicar essa vocação de “estudar costumes”. Porque ser etnólogo e viver em outras sociedades não é simples para quem realmente acredita em sistemas atrasados e adiantados. Entre os chamados “índios”, você é recebido como um bisbilhoteiro inocente ou indesejável.

Foi com tais desenganos que passei os meses de agosto, setembro, outubro e novembro de 1961 com os Gaviões, no sul do Pará. No meu primeiro trabalho, acompanhado de Julio Cezar Melatti e ao lado de Roque Laraia e do falecido Marcos Rubinger, companheiros do Museu Nacional, fizemos uma jornada-odisseia do Rio a Goiânia para Porto Nacional, Carolina, Tocantinópolis, Cristalândia e Pedro Afonso, até Marabá, onde nos instalamos na única pensão da cidade, com sua latrina apavorante.

Depois, Melatti e eu fomos até Itupiranga para chegar aos nativos. Fizemos uma marcha de 20 horas (com direito a dormida e medo em rede e mordidas de mosquitos). No fim da manhã, chegamos a quatro barracos cobertos de palha que formavam a aldeia dos gaviões, uns dos últimos falantes de língua jê virgens de estudo etnológico.

Em Marabá e Itupiranga, entrei no sistema local das deferências que definem as dobras entre superiores e inferiores no Brasil. Conhecemos o prefeito e outras autoridades em Marabá, o mesmo ocorrendo em Itupiranga, onde um anfitrião gentilmente nos recebeu em sua casa, ofereceu seu endereço e, quando estávamos isolados entre os “índios”, abriu sistematicamente todas as cartas que recebemos da família e do nosso professor do Museu Nacional.

A hierarquia fazia seu papel — éramos brancos, “ricos” e donos de estranhos aparelhos, praticávamos antropologia, essa alucinada profissão de “viver com caboclos”.

Se os “índios” daquela época (como hoje) eram obstáculo à conquista da fronteira da castanha e do ouro, viramos patrões ambíguos porque jogávamos do lado errado e competíamos com os pretensos donos de castanhais, que, de fato, eram dos nativos.

Como é que esses jovens “doutores” poderiam estar interessados nesses “índios brabos” que viviam como animais? Era claro que nosso alvo era fazer prospecção de metais preciosos ou minerais radioativos. Nossa “brancura” e equipamento revelavam que, no fundo, éramos espiões capitalistas ianques tentando roubar as riquezas do nosso amado Brasil. Foi essa dúvida que justificou a violação de nossa correspondência.

Vistos como loucos e tratados como suspeitos e espiões em Marabá, fomos recebidos na aldeia do Cocal como visitantes exagerados porque lá ficamos por meses, vivendo a mesma vida dos nativos e aturando sua curiosidade agressiva. Ademais, não eramos catequistas.

Fomos praticamente obrigados a dividir nossas provisões e aprendemos que aquela humanidade não se baseava em guardar, mas no distribuir e no dar para receber.

Passamos de doutores ricos, de espiões em busca de metais radioativos, a xeretas e sovinas...

Éramos multiclassificáveis (ou desclassificados), o que equivale a não ser em quase todos os lugares deste mundo. E define o antropólogo como um espião que, corre a lenda, no fundo é um bom sujeito.

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Pensamento do Dia

 


Bolsonaro entrou em modo desespero e Lula não indica se entendeu o que vem em 2023

Neste momento político da corrida eleitoral os horizontes dos dois líderes se distanciaram bastante. O de Lula já está em 2023. O de Bolsonaro se reduziu aos próximos 101 dias (2 de outubro é a data do primeiro turno).

O presidente se envolveu numa custosa operação política de curtíssimo prazo para o tamanho do objetivo, que é baixar na marra o preço dos combustíveis. Até aqui não conseguiu, nem colocou de pé a ajuda para quem não tem como pagar gás e diesel. Sendo a mesma coisa as políticas de governo e a eleitoral, nenhuma está funcionando.

Tampouco estão ajudando “imponderáveis” para a campanha dele, como a prisão do ex-ministro da Educação, por quem disse que poria a cara no fogo. Ao eleitorado cativo pouco importa, pois populistas como Bolsonaro não dependem de coerência entre palavras e ações. Em situações adversas desse tipo, tornam-se “traídos” – mas é uma “vitimização” que não acrescenta votos.


Visivelmente confortável na liderança das pesquisas, Lula não indica em público se tem noção exata do desastre político – para um chefe de Executivo – que herdaria de Bolsonaro. Pode até parecer “confortável” para um agrupamento político como o PT o recente assalto ensaiado pelo Centrão às instâncias que protegem estatais de interferências políticas, mas a questão é mais abrangente.

Não se trata simplesmente de colocar a Petrobras de joelhos e voltar a lotear as diretorias de estatais, algo que o PT e seus aliados (como o MDB) praticaram com os conhecidos resultados. A volta triunfante do clientelismo vem acompanhada agora de instrumentos inéditos de poder por parte do Legislativo.

Em termos brutais, se o “mensalão” de uns 20 anos atrás foi ferramenta para assegurar maiorias, esse instrumento hoje nem sequer existe. As emendas do relator permitem às lideranças parlamentares administrar seu próprio “mensalão” de forma perfeitamente legal.

Lula está enganado se pensa que se entender com o Centrão é questão de habilidade política. Teria de lidar em 2023 com uma massa relativamente atomizada de parlamentares sem dispor de espaço fiscal ou ferramentas para exercer controle – teria os votos para não ser impichado, mas não as maiorias para implementar qualquer matéria de longo alcance.

E isto tudo é só a política. Estão se adensando os sinais de uma recessão em algumas das principais economias lá fora, com inevitáveis consequências para o Brasil. Vencendo, Lula assume num momento global de contração e não de expansão, como aconteceu em seu primeiro mandato. Se entendeu o que vem em 2023, ainda não foi ao microfone avisar a todos nós a bordo: “brace for impact”.

Escândalo no MEC: Dai a Bolsonaro o que é de Bolsonaro

Compreensível que Bolsonaro tenha se apresentado, ontem pela manhã, com cara de sono diante de um grupo de seus seguidores no cercadinho do Palácio da Alvorada, e confessado, sem que ninguém lhe tivesse perguntado: “Brochei”. e sorriu.

Ele dorme pouco. Costuma entrar pela madrugada no closet do seu quarto agarrado a um celular, lendo nas redes sociais o que dizem a seu respeito e disparando mensagens para os filhos e assessores. Enquanto isso, Michelle ressona na cama do casal.

Ao amanhecer, os dois foram acordados por uma ligação que Bolsonaro atendeu. Era o ministro Anderson Torres, da Justiça, com a notícia de que a Polícia Federal prenderia em instantes o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro. Foi um choque para os dois.

Bolsonaro pensava ter a Polícia Federal sob controle desde que Sérgio Moro, ex-ministro da Justiça, pediu demissão. Michelle acreditava piamente na inocência de Ribeiro, pastor evangélico, seu amigo, demitido do cargo por Bolsonaro em março último.

Naquela ocasião, Michelle dissera a um grupo de jornalistas:

“Eu amo a vida dele. Deus sabe de todas e vai provar que ele é uma pessoa honesta, justo, fiel e leal. Estou orando pela vida dele.”

A vida de Ribeiro não corria risco, mas a reputação, sim. A pedido de Bolsonaro, Ribeiro conferiu tratamento especial aos pastores evangélicos Arilton Moura e Gilmar Santos, que passaram a gerir parte do bilionário orçamento do Ministério da Educação.

Os dois condicionavam a liberação de verbas para prefeituras ao pagamento de comissões em dinheiro vivo, barras de ouro, ou na compra de exemplares da Bíblia. Tudo pela obra do Senhor. Uma edição especial da Bíblia trazia fotos de Ribeiro.

Embora tenha demitido Ribeiro, seu quarto ministro da Educação em pouco mais de 3 anos de governo, Bolsonaro, pressionado por Michelle, saíra em socorro dele:

“Boto minha cara, minha cara toda no fogo por Milton”.

Mudou de tom depois da prisão do ex-ministro:

“Peço a Deus que ele não tenha problema algum”.

Orientado por seus conselheiros, Bolsonaro elogiou a Polícia Federal e disse que a prisão de Ribeiro e dos pastores, e a apreensão de documentos no ministério, eram uma prova de que ele jamais interferiu na polícia como acusam seus adversários.

Isso não quer dizer que Bolsonaro abandonou Ribeiro. Não pode fazê-lo. Teme que ele e os pastores, caso se sintam abandonados, negociem uma delação premiada com a Polícia Federal e contem o que poderá também comprometê-lo. Seria o seu fim.

Foi ideia de Bolsonaro, ou de Michelle, não se sabe, acionar o advogado Daniel Bialski, em São Paulo, para que defendesse Ribeiro. Bialski é advogado de Michelle em ações onde ela processa quem a ataca nas redes. Ribeiro ligou para ele às 6h.

A Polícia Federal descobriu um depósito de 60 mil reais feito por um parente do pastor Arilton na conta da mulher de Ribeiro. Bialski já encontrou uma explicação: a mulher de Ribeiro tinha um carro à venda, o pastor soube e um parente do pastor comprou-o.

Lembra algo? Em agosto de 2020, soube-se que Fabrício Queiroz, operador do esquema da rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro que era deputado estadual no Rio, depositou na conta de Michelle a módica quantia de 89 mil reais em 27 parcelas.

Michelle nunca disse nada sobre isso. Bolsonaro disse que o dinheiro era de uma dívida contraída por Queiroz junto a ele. Por que os depósitos foram feitos na conta de Michelle? Ora, porque Bolsonaro não tinha tempo para fazer saques na própria conta.

Com Bialski ao lado de Ribeiro, Bolsonaro saberá tudo em primeira mão e poderá de longe orientar o comportamento do seu ex-ministro que, hoje, deverá ser interrogado pela Polícia Federal.

Arthur Lira dá as cartas no Brasil, e a ideia é sugar até a última gota

Diante da perspectiva, cada vez mais concreta, de não reeleição de Jair Bolsonaro, o Centrão parece empenhado em sugar até a última gota e não deixar sobrar país nenhum para quem assumir em 2023 — tornando, assim, seu apoio ao próximo presidente tão vital quanto custoso.

Arthur Lira, hoje, dá as cartas no Brasil. A partir da presidência da Câmara, opera coordenado com seu parceiro da Casa Civil, Ciro Nogueira, e, depois de dominar o Orçamento-Geral da União, quer retomar para seu partido e o consórcio de legendas que comanda a ingerência perdida sobre as estatais, com a Petrobras como joia a recuperar.

É escandalosa em grau inaudito até para os padrões do bolsonarismo a ideia de rasgar a Lei das Estatais a menos de quatro meses de uma eleição em que o grupo que está no poder está em desvantagem.


É outro braço do golpismo que campeia na esfera institucional, aquela em que Bolsonaro articula as Forças Armadas e a Polícia Federal para questionar e, se possível, tentar empastelar o pleito.

A lei, aprovada no governo Michel Temer, foi uma resposta ao escândalo do petrolão, que, a despeito de revisões que tenham sido feitas em condenações decorrentes dos processos da Lava-Jato, foi um escândalo que resta comprovado.

Por meio de um acordo político consentido pelos governos do PT, partidos como o PP de Lira, Nogueira e companhia bela loteavam a Petrobras e suas subsidiárias para, em conluio com grandes empreiteiras e funcionários da companhia, de carreira ou nomeados, desviar quantias milionárias em contratos superfaturados, com cartas marcadas e outros conchavos.

Ao estabelecer regras de governança e critérios técnicos para o preenchimento de cargos em conselhos e diretorias das estatais, a lei que Lira e aliados querem agora incinerar funcionou como uma blindagem à repetição desse tipo de esquema.

Com o pretexto “popular” de baixar o preço dos combustíveis, os partidos do Centrão querem assegurar mais um espaço de poder, também para o futuro, no momento em que os que desfrutam estão ameaçados pela perspectiva de derrota de Bolsonaro nas urnas.

Não é a primeira lei que integra o arcabouço de controle e fiscalização a ser atacada no governo Bolsonaro. A Lei de Improbidade foi implodida sob o pretexto de evitar exageros, e uma Lei de Abuso de Autoridade foi aprovada com o claro propósito de intimidar autoridades a cumprir seu dever.

No mundo invertido bolsonarista, os ataques sistemáticos ao sistema republicano são sempre travestidos de ideias nobres. O mais estarrecedor é que os ditos democratas, liberais e pró-mercado — que pegariam em panelas caso qualquer outro governo propusesse arrancar as catracas para promover a farra do boi em conselhos e diretorias de estatais —calam o bico diante do avanço da tropa de Lira sobre o arcabouço legal que preserva minimamente a principal empresa do Brasil da interferência tosca a que está submetida por Bolsonaro.

Ricardo Barros, o mais literal dos súditos de Lira, deixou extravasar a intenção real da canhestra manobra que estão empreendendo ao dizer:

— Ele [Bolsonaro] demita, mas o cara não vai embora.

Evocou, com essa fala esparramada, o clássico de um antigo cacique de seu partido, Severino Cavalcanti, quando venceu de surpresa a presidência da Câmara e se pôs a exigir uma diretoria “que fura poço e acha petróleo” na mesma Petrobras.

A batalha que se trava para implodir os controles da Petrobras nada tem de nobre preocupação com o alto custo dos combustíveis sobre o orçamento das famílias e com a inflação. Trata-se de desespero do Centrão pelo preço eleitoral que cobra de um hospedeiro, Bolsonaro, que já não tem tanto a oferecer e de quem planejam sugar até a última gota.

O verdadeiro mal não é a desigualdade: é a dependência

O que deve um cão a um cão, um cavalo a um cavalo? Nada. Nenhum animal depende do seu semelhante. Tendo porém o homem recebido o raio da Divindade a que se chama razão, qual foi o resultado? Ser escravo em quase toda a terra. Se o mundo fosse o que parece dever ser, isto é, se em toda parte os homens encontrassem subsistência fácil e certa e clima apropriado à sua natureza, impossível teria sido a um homem servir-se de outro. Cobrisse-se o mundo de frutos salutares. Não fosse veículo de doenças e morte o ar que contribui para a existência humana. Prescindisse o homem de outra morada e de outro leito além do dos gansos e cabras monteses, não teriam os Gengis Khans e Tamerlões vassalos senão os próprios filhos, os quais seriam bastante virtuosos para auxiliá-los na velhice.


No estado natural de que gozam os quadrúpedes, aves e répteis, tão feliz como eles seria o homem, e a dominação, quimera, absurdo em que ninguém pensaria: para quê servidores se não tivésseis necessidade de nenhum serviço? Ainda que passasse pelo espírito de algum indivíduo de bofes tirânicos e braços impacientes por submeter o seu vizinho menos forte que ele, a coisa seria impossível: antes que o opressor tivesse tomado as suas medidas o oprimido estaria a cem léguas de distância. Todos os homens seriam necessariamente iguais, se não tivessem necessidades. A miséria que avassala a nossa espécie subordina o homem ao homem - o verdadeiro mal não é a desigualdade: é a dependência.

Pouco importa chamar-se tal homem Sua Alteza, tal outro Sua Santidade. Duro porém é um servir o outro. Uma família numerosa cultivou um bom terreno. Duas famílias vizinhas têm campos ingratos e rebeldes: impõe-se-lhes servir ou eliminar a família opulenta. Uma das duas famílias indigentes vai oferecer os seus braços à rica para ter pão. A outra vai atacá-la e é derrotada. A família servente é fonte de criados e operários. A família subjugada é fonte de escravos. Impossível, neste mundo miserável, que a sociedade humana não seja dividida em duas classes, uma de opressores, outra de oprimidos. Essas duas classes subdividem-se em mil outras, essas outras num sem número de cambiantes diferentes. Nem todos os oprimidos são absolutamente desgraçados. A maior parte nasce nesse estado, e o trabalho contínuo impede-os de sentir toda a miséria da sua própria situação. Quando a sentem, porém, são guerras, como a do partido popular contra o partido do senado em Roma, as dos camponeses na Alemanha, Inglaterra, França. Mais cedo ou mais tarde todas essas guerras terminam com a submissão do povo, porque os poderosos têm dinheiro e o dinheiro tudo pode no Estado. Digo no Estado, porque o mesmo não se dá de nação para nação. A nação que melhor se servir do ferro sempre subjugará a que, embora mais rica, tiver menos coragem.

Todo o homem nasce com forte inclinação para o domínio, a riqueza, os prazeres e sobretudo para a indolência. Todo o homem portanto quereria estar de posse do dinheiro e das mulheres ou das filhas dos outros, ser-lhes senhor, sujeitá-los a todos os seus caprichos e nada fazer ou pelo menos só fazer coisas muito agradáveis. Vedes que com estas excelentes disposições é tão difícil aos homens ser iguais quanto a dois pregadores ou professores de teologia não se invejarem. Tal como é, é impossível o gênero humano subsistir, a menos que haja uma infinidade de homens úteis que nada possuam. Porque, claro é que um homem satisfeito não deixará a sua terra para vir lavrar a vossa. E se tiverdes necessidade de um par de sapatos, não será um referendário que vo-lo fará. Igualdade é pois a coisa mais natural e ao mesmo tempo a mais quimérica.

Como se excedem em tudo que deles dependa, os homens exageraram essa desigualdade. Pretendeu-se em muitos países proibir aos cidadãos sair do lugar em que a ventura os fizera nascer. O sentido dessa lei é visivelmente: este país é tão mau e tão mal governado que vedamos a todo o indivíduo dele sair, por temor que todos o desertem. Fazei melhor: infundi em todos os vossos súditos o desejo de permanecer no vosso Estado, e aos estrangeiros o desejo de para aí vir. Nos íntimos refolhos do coração todo o homem tem o direito de crer-se de todo o ponto de vista igual aos outros homens. Daí não segue dever o cozinheiro de um cardeal ordenar ao seu senhor que lhe faça o jantar; pode todavia dizer: “Sou tão homem como o meu amo; nasci como ele a chorar; como eu ele morrerá nas mesmas angústias e com as mesmas cerimônias. Temos ambos as mesmas funções animais. Se os turcos se apoderarem de Roma e eu me tornar cardeal e o meu senhor cozinheiro, tomá-lo-ei a meu serviço”. Tudo isso é razoável e justo. Mas, enquanto o grão turco não se assenhorear de Roma, o cozinheiro precisa de cumprir as suas obrigações, ou toda a humanidade se perverteria.

Um homem que não seja cozinheiro de cardeal nem ocupe nenhum cargo no Estado; um particular que nada tenha de seu mas a quem repugne o ser em toda a parte recebido com ar de proteção ou desprezo; um homem que veja que muitos monsignori não têm mais ciência, nem mais espírito, nem mais virtude que ele, e que se enfade de esperar nas suas antecâmaras, que partido deve tomar? O da morte.

Voltaire (François-Marie Arouet), "Dicionário filosófico"