quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Terão de pagar pelos crimes

Numa reação inédita e contundente, a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro divulgou uma nota contra a política homicida em vigor nesta pandemia que em breve terá matado 200 mil brasileiros. O que levou o presidente da entidade, Celso Ferreira Ramos Filho, a assinar essa nota foi, objetivamente, a morte por Covid de um dos mais brilhantes cirurgiões de cabeça e pescoço no país, Ricardo Cruz, com apenas 66 anos. 

Digo “objetivamente” porque algo mais move a Sociedade a reagir assim, a meu ver: o desespero de profissionais treinados para salvar vidas, diante da incompetência e omissão governamentais que beiram o sadismo. O compromisso médico de alertar a população que está sendo conduzida à morte como um rebanho cego, por políticos e generais sem princípios. Há uma guerra estúpida de vacinas em voga. Há promessas que não se podem cumprir. Há o colapso de hospitais sem equipamento básico. Bolsonaro – esse ex-capitão que conspurcou o cargo de presidente da República – pagará por seus crimes. Deus não é seu parceiro. Chega de heresia. Ministros, governadores e prefeitos precisam começar a pensar mais em vidas do que em votos.



Médicos estão arrasados. Não só pela perda de Ricardo Cruz, que estava internado havia várias semanas no Hospital Samaritano, mas pela nau sem rumo dos desvalidos em que se transformou nosso Brasil. Transcrevo aqui três parágrafos da nota da Sociedade, fundada em 1886 com o objetivo de discutir questões de saúde pública. A Sociedade lamenta, estranha e repele o silêncio de entidades diante do homicídio oficial.

“Ricardo Cruz morre após dez meses de pandemia, quando a percepção errônea da sociedade de que a transmissão está em vias de se extinguir levou a um relaxamento das normas de distanciamento social, com o consequente aumento da transmissão comunitária do SARS-CoV-2. Percepção errônea esta estimulada e coonestada por uma política homicida (repitamos: homicida) por parte de autoridades municipais, estaduais e federais (em final, meio ou começo de mandato), que trocam votos e apoios por uma proposta indulgente e sedutora, que pode ser popular e atraente, mas que é (repitamos, ainda) simplesmente homicida”.

“Ricardo Cruz morreu apesar de ser submetido a um tratamento caro, sofisticado e disponível a uma minoria dos brasileiros, aí incluídos os usuários de planos de saúde de alto custo. Isto demonstra a miopia, a desumanidade, a negligência e a criminosa irresponsabilidade histórica de políticos e mandatários que propõem aumento de números de leitos de UTI ou extensão do horário de funcionamento de aparelhos de tomografia computadorizada, trocando essas aparentes benesses de apelo popular (ofertadas a uma população já exaurida por dez meses de confinamento forçado) pela liberação de eventos e de situações que inevitavelmente agravaram, agravam e agravarão a transmissão da doença. O que levará ao aumento do número de casos e, portanto, e mesmo com uma (necessária) suficiência de vagas, a um indesculpável aumento de mortes”.

“Nosso colega não morreu porque lhe faltou leito, ou porque a assistência demorou a chegar. Morreu pela inexorabilidade de uma doença que, se não mata sempre, sempre mata. A sua morte expõe a miopia criminosa oculta na barganha do relaxamento no distanciamento social (leia-se: aumento da transmissão) pelo aparente bom negócio de um incremento no número de leitos (ou de tomógrafos, ou outros cala-bocas ilusórios e enganosos) oferecidos a uma população cansada, sem rumo - e sem liderança. Não importa o quantitativo de leitos de UTI oferecidos: quanto maior o número de admitidos a essas unidades, maior será o número final de mortos. Ricardo Cruz não morreu por falta de leito, ou de assistência, ou de cobertura. Morreu de COVID”.

Se não mata sempre, sempre mata. Alguém que a gente conhece ou não conhece. Isso ficou martelando em minha cabeça. Povo é irresponsável? Ora essa. E o governo? É homicida. Por omissão, por incentivar uso de cloroquina, por não seguir a ciência e a medicina, por politizar vacinas, por incentivar aglomeração e até condenar o uso de máscaras. Isso não é ignorância. É crime.

Enquanto isso, Bolsonaro dá mais uma de psicopata: expõe trajes da posse em vitrine, boicota pessoalmente a vacinação e comemora fim de imposto para importar armas.

Sem palavras.

Pensamento do Dia

 

Marian Kamensky


Piores elites do mundo

O Brasil teria a 6.ª pior elite entre 32 países. Em ranking de qualidade das elites mundiais – liderado por Cingapura, Suíça e Alemanha –, o Brasil aparece atrás do México, da Rússia, da Índia e até de países como Casaquistão, Arábia Saudita e Botswana (embora na frente da Argentina). O Índice de Qualidade das Elites foi veiculado em relatório recente dos economistas Tomas Casas e Guido Cozzi (Fundação para a Criação de Valor). O que ele explica sobre o nosso País e como se relaciona com a agenda de reformas?

Os autores definem elites como grupos pequenos e coordenados, capazes de acumular riqueza, e que seriam uma “inevitabilidade empírica” – presentes em todas as sociedades. Um índice alto significaria que a elite do país cria mais valor do que captura, contribuindo para o crescimento econômico e o desenvolvimento humano. Já nos países com índices baixos as elites teriam desenhado instituições mais “extrativas”. Grosso modo, a questão é se, na acumulação de sua riqueza, a respectiva elite beneficia a sociedade ou dela se beneficia.

O relatório bebe em conceitos dos economistas Daron Acemoglu (MIT) e James Robinson (Chicago), do best-seller Por que as Nações Fracassam, mas em particular do livro mais recente da dupla, The Narrow Corridor (ainda sem tradução). Acemoglu e Robinson explicam o desenvolvimento dos países pela qualidade de suas instituições (regras informais ou formais, como leis, que regem o funcionamento da sociedade). Resumidamente, essas instituições podem ser inclusivas ou extrativas. No último caso, a riqueza do país é extraída pela sua elite – que por sua vez concentra seus esforços e recursos não em ser produtiva, mas em conquistar favores e privilégios. Essa postura que visa à renda improdutiva é expressa no termo rent-seeking, traduzido como caça às rendas ou rentismo.

A partir daí, Casas e Cozzi dividem as elites em três tipos principais: rentistas (extraem valor e detêm muito poder), competitivas (geram valor, mas não detêm muito poder) e iluministas (geram valor, a despeito de deterem muito poder). O estudo basicamente identifica apenas elites rentistas e competitivas.



A elite brasileira é do grupo das rentistas. Nossas piores classificações no indicador são na categoria que avalia como o Estado retira renda; na categoria de rentismo da produção; e na categoria de rentismo do trabalho.

A primeira compreende uma avaliação da regressividade e distorções do sistema tributário. A tributação dos lucros e a parcela da renda retida pelos 10% mais ricos são alguns dos itens. Aqui, é possível fazer ligação clara com a reforma tributária e instrumentos como a isenção no IR para lucros e dividendos, bem como outros mecanismos que permitem que os mais ricos paguem menos impostos que os mais pobres.

A segunda categoria que vamos especialmente mal diz respeito à exposição dos grandes à competição. Nessa categoria de rentismo dos produtores são avaliadas questões que podem levar à formação de monopólios ou oligopólios – aptos a extrair renda das famílias com produtos mais caros ou de pior qualidade. Inclui a proteção tarifária contra produtos estrangeiros, regulações que criam barreiras à entrada de novas empresas no mercado e a facilidade de fazer negócios. A agenda mais óbvia aqui é a da abertura comercial, mas também a de desburocratização.

Uma terceira categoria em que estamos perto da lanterna, a de rentismo do trabalho, contempla a forma como instituições do mercado de trabalho preterem os jovens. Demandaria pauta de abertura do mercado de trabalho, para tornar mais fácil empregar grupos excluídos. Seriam exemplos mudanças como a reforma trabalhista e a carteira de trabalho verde e amarelo – não à toa, duramente combatidas pelos representantes dos incluídos.

A agenda por instituições mais inclusivas, em prejuízo das atuais elites dominantes, não é exclusiva de nenhum ponto no espectro ideológico. Por exemplo, a esquerda é mais combativa pelo fim dos privilégios no sistema tributário, mas é historicamente contra a exposição à competição de empresas estrangeiras ou mulheres e jovens – respectivamente no mercado de bens e no mercado de trabalho. Há uma grande concertação nacional a ser feita nos próximos anos se quisermos subir da última divisão das elites mundiais.

Lá e cá — e o rouba, mas faz

Morar “lá fora” ainda é percebido como superior ao residir “aqui dentro”, pois continuamos a nos pensar como uns vira-latas rodriguianos. Sobretudo quando o foco é a “política”, cujo campo, por ser competitivo, é lido como um lugar de malandragem, falsidade, oportunismo, roubalheira e, hoje, de extraordinário irracionalismo. Daí nasceu — valha-nos, Deus! — o jubiloso “rouba, mas faz!”.

Quando entubamos que um político tenha como mérito o “roubar, mas fazer”, admitimos que é normal trair os hiperprivilégios dos cargos eletivos para nada fazer. Há, porém, honrosas exceções: os que, além de atraiçoar os eleitores coçando o saco, fazem alguma coisa roubando! Esse costumeiro “fazer” o mínimo (ou o máximo) do mínimo confirma o imperativo de repensar todo o campo. 

O “rouba, mas faz” é mais um paradoxo brasileiro. O “burro doutor” é um outro par igualmente ambíguo, tanto quanto supor que, depois de cinco séculos de abjeta escravidão africana sustentadora de traficantes e nobres, viramos, em 1889, uma república em que todos seriam iguais perante a lei!

A transição de um sistema escravocrata para uma liberalidade republicana requer permanentes ajustamentos. Todos destinados a evitar uma escandalosa igualdade. Populismos autoritários, golpistas e irresponsáveis são “ajustamentos” dessa formidável e esperançosa mudança. Ficou, porém, como uma incômoda delação do nosso esplêndido berço aristocrático e escravocrata, um inabalável “você sabe com quem está falando?”. 

Esse abusivo desmascaramento de um profundo senso hierarquizado, segundo o qual todos deveriam saber pelo “jeito” ou aparência (o escravo era — ou deveria ser — preto!) com quem se fala. Tal pressuposto está no centro dos nossos preconceitos. 

Quando uma “pessoa de cor”, insegura ou malvestida tem um comportamento igualitário, ela rompe com o código de humildade e submissão instruído a chibata, favor e miséria. A igualdade nua e crua é, no Brasil, uma ousadia ou insulto.

Não somos conscientemente contra a igualdade, mas a calibramos inconscientemente, revelando como — apesar de todas as demagógicas afirmações igualitárias — há superiores (ou donos) em toda parte.

A democracia deixa de ser a bússola da vida pública para virar mais um populismo: coisa fácil e boa de falar, mas difícil de viver. E, de quebra, legitimadora do roubar. Ressurge o fundo hierarquizado e familístico do sistema, fraturando sua superfície igualitária. 

Globalização com pandemia explodiu as perfeições do “lá fora”, porque o lá que era perfeito e o cá, sempre atrasado, ficam parecidos. A globalização é antropológica: ela obriga a comparar, e o estranhamento revela modos diversos de conceber estilos sociais diante do inesperado, da doença, da morte e, agora, da cura! A irracionalidade e a incompetência surgem em tempo real, revelando inteligências e burrices nacionais e internacionais.

No meio do caos, percebemos que, quanto mais temos Estado e burocracia legistocrática, mais surgem familismo, compadrio e dinastia política. Se fizermos uma genealogia do poder à brasileira, ficaríamos assombrados com a magnitude dos elos de sangue que correm pelas veias das nossas elites. O impessoal — como, outra vez, mostra esta eleição — não disciplina o pessoal.

Sugeri que o personalismo de Donald Trump “brasilianizava”, canibalizando a América das leis e instituições. Canibalismo rotineiro no Brasil, que muda a lei para soltar o ladrão e, assim, destrói instituições. 

Lá — apesar de Trump —, o entendimento de que as leis são para todos; aqui, o entendimento é que quem segue regras é inferior ou otário. Os superiores e os malandros não as seguem justamente porque têm o poder de driblá-las, inventá-las e modificá-las. Preciso lembrar o foro privilegiado e os recursos infinitos que fazem as fortunas dos causídicos e levam a duvidar da existência da democracia? 

O “sabe com quem está falando?” não é somente um brasileirismo, é a prova de um duelo permanente entre interesses e éticas, sem as quais evapora-se a ordem democrática. E o centro da desordem nacional é, exceto no futebol, a sistemática mudança das regras em função de projetos populistas, vale dizer: pessoais. 

Lá, o “você sabe com quem está falando?” mostra que uma pessoa tipo Trump não tem consciência do seu papel, pois não sabe quem é. Aqui, porém, saber com quem se fala e conhecer o próprio lugar é uma obrigação. Debaixo de uma igualdade popularesca, há sempre um superior (branco ou rico) e um inferior (preto e pobre). 

P.S.: O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional sofre com um oficializado “você sabe com quem está falando?”, agredido com uma ofensiva perda de autonomia. Patrimônio nacional (que tem a ver com a nossa identidade) não pode ser também polarizado pelo bolsonarismo. Se for, esvazia-se institucionalmente. 

Primazia

O Brasil cansa. Cansa muito. Duas notícias da última semana dão o tom das nossas dificuldades e de quão arraigados estão conceitos injustos, sempre travestidos de direitos. A primeira se refere a um suposto pleito por parte dos promotores de Justiça para que fossem considerados prioritariamente na fila de vacinação contra a covid-19. A segunda trata de uma decisão em caráter liminar da ministra Rosa Weber, que afasta punições previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) para o Estado do Espírito Santo.

A primeira, embora conste em ata de uma reunião do Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), foi desmentida assim que começaram as reações de indignação nas redes sociais. Defendido sob o argumento de que os nobres promotores “trabalham com audiências, atendimento ao público e outras atividades em que o contato social é extremamente grande e faz parte do nosso dia a dia”, o pleito de priorização na fila de vacinação contra a covid-19 buscou logo afastar a pecha de egoísmo.

De fato, não se trata disso. Afinal, para quem não sofre com o medo do desemprego e recebe salários acima de R$ 30 mil mensais (engordados por auxílios saúde, moradia, alimentação, combustível e férias de 60 dias), cogitar ter a primazia sobre milhões de trabalhadores que se amontoam em casas minúsculas ou no transporte público lotado para chegarem ao trabalho, ou mesmo de tantos outros que, em serviços considerados essenciais, estiveram e estão se arriscando diariamente, não é mesmo egoísmo. É falta de noção e completo descolamento da realidade brasileira. Além, claro, de algum sentimento de superioridade.



A segunda, não menos identificada com essa divisão da nossa sociedade em castas, se refere ao tratamento diferenciado que o Judiciário sempre aplica a si mesmo, em particular em tudo que se refere a seus salários, benefícios e privilégios. A LRF, no parágrafo 3º do artigo 23, é cristalina em definir as penalidades caso a despesa total com pessoal ultrapasse, no caso dos Estados, os 60% da Receita Corrente Líquida (RCL). Esse limite é distribuído entre Executivo (49%), Legislativo (3%), Judiciário (6%) e Ministério Público (2%) e cabe ao parlamento local, diretamente ou por meio dos tribunais de contas, a fiscalização do Executivo. O Poder Judiciário e o Ministério Público são fiscalizados pelos próprios órgãos internos de controle e pelos tribunais de contas.

Extrapolado o limite total – e não alcançada a redução e consequente reenquadramento em dois quadrimestres – estão vedadas transferências voluntárias, garantias, diretas ou indiretas, de outro ente e contratações de operações de crédito, “ressalvadas as destinadas ao refinanciamento da dívida mobiliária e as que visem à redução das despesas com pessoal”.

No caso do Espírito Santo, foi o Judiciário quem extrapolou o seu. Um dos únicos Estados a receber nota A do Tesouro Nacional em 2020, graças a um trabalho exemplar de reequilíbrio fiscal executado a partir de 2015, no governo Paulo Hartung, o Estado se mantém como destaque nos indicadores fiscais. Dessa forma, parece injusto penalizá-lo – e portanto os seus cidadãos – pelo não cumprimento da lei por parte de um dos poderes, ironicamente, o Judiciário. E de fato é! Historicamente, é o Executivo (leia-se educação, saúde, segurança e investimentos) quem tem que reduzir seus custos para dar conta do custo crescente dos poderes autônomos e se manter dentro dos limites globais. Mas o que surpreende na decisão da ministra do Supremo é menos a isenção da penalidade e mais o fato dela relevar o flagrante desrespeito à lei pelo Judiciário. Aprovada em maio de 2000 para garantir disciplina fiscal principalmente por parte dos entes subnacionais, devastados pela irresponsabilidade predominante nos anos precedentes, a tem se visto constantemente a mercê de ataques repetidos pelo Judiciário. Em particular nos temas voltados a salários de servidores, principalmente os seus que em muito e há muito ultrapassam os limites definidos em lei.

Cansa, portanto, constatar que continuamos perdidos, com nossas instituições voltadas para si e não para o País. Deveríamos estar todos cobrando a elaboração de um plano de retomada econômica; a articulação para a aprovação de reformas imprescindíveis e urgentes como a administrativa e a tributária; o estabelecimento das condições para viabilizar uma rede de proteção social mais ampla; a elaboração de políticas públicas de combate à violência, de forma a evitar que nossas crianças pobres continuem sendo mortas nas portas das suas casas; a criação de condições seguras de retorno das nossas crianças e jovens à escola; o desenho de um plano de vacinação em massa que nos permita voltar a trabalhar poupando vidas e reduzindo os custos econômicos da atual tragédia. Mas não, continuamos assistindo ao de sempre: à primazia do individual sobre o coletivo por parte daqueles que deveriam zelar por todos e não só por si.

Brasil da discórdia

 


Um Odorico no Planalto

A Sucupira de Odorico Paraguaçu ressurgiu na Brasília de Jair Bolsonaro. Ontem o presidente promoveu uma solenidade para exibir o terno que vestiu na posse. A cerimônia reuniu seis ministros e foi transmitida ao vivo na TV estatal.

“Um dia memorável, né? Um dia memorável para a nação”, discursou a primeira-dama Michelle. Ela festejava a inauguração de dois manequins com os trajes usados no Rolls-Royce presidencial.

“Fiquei muito feliz de presentear essa pessoa maravilhosa que é a Michelle”, derramou-se a estilista Marie Lafayette, responsável pelo vestido da primeira-dama. Convidada a falar, ela disse ter trabalhado “com muito amor” e descreveu a cliente como uma “pessoa iluminada”. Com uma propaganda dessa, seria difícil ouvir algo diferente.


Animado, Bolsonaro fez questão de informar que também não pagou pelo terno da posse. “De graça até injeção marciana, né?”, brincou. Em seguida, o capitão forneceu o endereço do alfaiate. “Quanto mais terno fizer lá, mais eu ganho aqui”, justificou.

No fim da cerimônia, o costureiro Santino Gonçalves engrenou um discurso de pastor. Entre glórias e louvores, ele descreveu sua presença no Planalto como o cumprimento de uma profecia. “Este é o presidente que Deus escolheu”, sentenciou.

Horas antes de Michelle brincar de Maria Antonieta, o governador João Doria apresentou um cronograma para imunizar a população de São Paulo. O tucano avançou o sinal ao prometer uma vacina em fase de testes, mas deu um xeque em Bolsonaro. Se a Anvisa não liberar a CoronaVac até 25 de janeiro, o capitão será responsabilizado por cada morte a partir do dia 26.

Na peça de Dias Gomes, Sucupira era governada por um político populista, irresponsável e falastrão. Seu sonho era coroar o mandato com a inauguração de um cemitério. Bolsonaro reúne as três qualidades de Odorico, mas já declarou que não é coveiro. Ontem, no “dia memorável” da primeira-dama, o Brasil ultrapassou a marca de 177 mil vítimas da Covid.

A maior peste


A peste, é preciso que se diga, tirara a todos o poder do amor e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só havia instantes
Albert Camus

2020, Stephen King na veia

Há exatos 10 meses e 14 dias morria a primeira vítima de Covid19 no Brasil. Naquele 23 de janeiro, o então Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, já ouvia falar de Coronavirus, durante o Forúm de Davos. Mas tivemos o Carnaval. Indolência, irresponsabilidade, vagabundagem, negligência. Três ministros da Saúde, e um presidente leviano.

O desprezo pela vida e pela verdade levou Jair Messias a inviabilizar a tomada de medidas que poderiam minimizar os efeitos da pandemia anunciada em março. De lá para cá, mortes. Medo, angústia. Vergonha mundial, o governo brasileiro estendeu o sofrimento e a pandemia. Quanto pôde. Quanto pode.

Com as devidas restrições politico-ideológicas a Luiz Henrique Mandetta - bolsonarista de primeira hora - o então Ministro, em março, foi o único no governo a alertar para a gravidade sem precedentes do vírus. Naquele mês, pensava-se ingenuamente: até junho, quem sabe agosto, setembro, estaremos livres da peste. Imunizados, quem sabe? Vacinados, com a graça divina, até o final do ano.

Chegamos a 2021 com a espada do Covid19 sobre nossas cabeças. Mandetta só parou de alertar o País quando foi defenestrado vergonhosamente pelo Capitão do Mato. Veio o general. Disse que entendia de logística. Até hoje, não temos seringas para aplicar uma provável vacina, de qualquer idioma, qualquer procedência, sequer encomendadas.

A demência de Bolsonaro no trato da pandemia faz eco em milhões de pessoas. Como o Capitão, desafiam o vírus. Festas, praias lotadas, shows. Inevitável recrudescimento. As aglomerações avultarão os números trágicos de mortes no Brasil - 177 mil vidas perdidas até ontem.

E chega o Natal, vem o Reveillon. E quem sabe um Carnaval improvisado por foliões enfurecidos? Mais festas, mais medo, mais mortes.

Antes viesse março, depois de novembro.

PS: Qualquer semelhança .. Pennywise – It: A Coisa. Entidade sobrenatural criada pelo escritor americano Stephen King, se alimenta dos medos e fobias de suas vítimas. Aparece na forma de palhaço para atrair suas presas. Tem influência grande sobre o povo da cidade. mesmo após todos os assassinatos e desaparecimentos de crianças.

Bolsonaro oficializou o faroeste

Há anos fui abraçar um amigo, amado por muitos, e senti sob o casaco algo sólido na sua cintura. Uma arma, claro, e recolhi a mão. Ele não percebeu minha repulsa, mas fiquei triste. Por que alguém iria armado a um encontro de pessoas que se estimavam? Temia ser atacado, precisaria se defender e, talvez, reagir atirando? O que teria feito para isso? E só então o travo se dissipou. O objeto era um celular.

Eduardo Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro, deixou-se fotografar há dias com pai e irmãos no gabinete presidencial com um trabuco no cinto. O Planalto tem segurança própria, donde ninguém deveria sentir-se em perigo. Mas, conhecendo bem o governo de que faz parte, Eduardo Bolsonaro está atento. Com a quantidade de armas de fogo em mãos de particulares no Distrito Federal, nem o palácio é seguro. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o registro de armas no DF cresceu 539% em 2019, e um em cada 11 de seus cidadãos anda armado —sem contar o mercado ilegal.



Para sorte dos Bolsonaros, muitos dos brasileiros armados são seus amigos. Como a polícia acaba de descobrir, Ronnie Lessa, acusado de assassinar Marielle Franco e ex-vizinho do presidente num condomínio na Barra, comprava ferramentas pela internet para a montagem de fuzis de guerra. Imagino que, em seus churrascos, eles trocassem dicas sobre balas dum dum e silenciadores.

Bolsonaro oficializou o faroeste. Um decreto seu dificultou o rastreamento das armas em circulação. Com isso, o armamento apreendido diminuiu e o que volta para o crime aumentou. Qualquer um compra agora 300 munições por mês —eram 50 por ano até há pouco. Pessoas apontam armas no nariz uns dos outros e bandos praticam assaltos de cinema. Aumentou o feminicídio. Bandidos e policiais continuam matando e morrendo e, cada vez mais, sobram balas para as crianças.

Eduardo Bolsonaro tem razão em andar prevenido.

Revolta dos maricas torna a vacinação obrigatória para o governo Bolsonaro

Para Jair Bolsonaro, a pandemia entrou na terceira onda. Na primeira onda, ele deixou acontecer. Na segunda onda, impediu que o Ministério da Saúde fizesse acontecer, desautorizando acertos do general Eduardo Pazuello com governadores. Agora, o presidente se pergunta: o que aconteceu?

Bolsonaro deflagrou há quatro meses uma campanha contra a obrigatoriedade da vacina. Hoje, busca uma vacina política capaz de imunizá-lo contra o desgaste que o atraso na vacinação dos brasileiros pode lhe proporcionar. Renato Casagrande, governador do Espírito Santo, fez uma previsão: "O governo do presidente Bolsonaro acabará mais cedo se o Ministério da Saúde não comprar todas as vacinas contra a covid disponíveis e aprovadas pela Anvisa."

Numa conversa com a coluna, Casagrande ecoou o pensamento de outros governadores. Disse que, "se Bolsonaro comprar as vacinas que ajudarão a salvar vidas e a recuperar a economia brasileira, ele ganha um fôlego em 2021. Do contrário estará politicamente derrotado."

Bolsonaro enfrenta algo muito parecido com um cerco. O rival João Doria anunciou para 25 de janeiro um hipotético início da vacinação em São Paulo. O desafeto Rodrigo Maia avisou que o Legislativo aprovará um plano para compra de vacinas —com ou sem a participação do Ministério da Saúde. O Supremo Tribunal Federal marcou para 17 de dezembro o julgamento de um par de ações sobre a aquisição de vacinas e a formulação de um cronograma federal de imunização. O Conselho Nacional de Secretários de Saúde bateu bumbo pela incorporação de todas as vacinas disponíveis no Plano Nacional de Imunização do Ministério da Saúde.

Sitiado, Bolsonaro começou a fazer por pressão o que deixou de realizar por opção. Correu às redes sociais para informar que seu governo ofertará vacina contra a covid-19 para toda a população brasileira "de forma gratuita e não obrigatória", desde que haja certificação da Anvisa. Declarou ter obtido do ministro Paulo Guedes, da Economia, a garantia de que não faltarão recursos. Liberou R$ 59 milhões para os estados comprarem equipamentos de refrigeração para salas de vacinação.

Um mês e meio depois de ter humilhado o general Pazuello, desautorizando um protocolo para aquisição de 46 milhões de doses da "vacina chinesa do Doria" —como ele se refere à coronaVac—, Bolsonaro autorizou o ministro da Saúde a promover novo encontro com os governadores. Na noite da véspera, horas antes da reunião desta terça-feira, 8 de dezembro, o governo anunciou o plano de adquirir 70 milhões de doses da vacina da farmacêutica Pfizer. A mesma que começa a ser aplicada agora no Reino Unido. A mesma que o Ministério da Saúde brasileiro havia descartado na semana passada.

Em agosto, Bolsonaro deflagrou uma campanha pela liberdade do brasileiro de não se vacinar. Em outubro, afirmou que vacina obrigatória só no Faísca, o cachorro da família Bolsonaro. Em novembro, festejou como vitória pessoal a morte de um voluntário dos testes conduzidos pelo Butantan. Era suicídio. Nada tinha a ver com a vacina. Em plena elevação da curva de incidência de covid, insinuou que o brasileiro deve enfrentar o vírus de peito aberto. O Brasil precisa "deixar de ser um país de maricas", declarou.

Sob o impacto do início da vacinação no exterior, o brasileiro pressiona os governos estaduais, o Congresso e o Judiciário. Cobra atitudes diante da inação do governo federal. Bolsonaro emite sinais de que pode ter compreendido uma obviedade: a conjuntura muda tão rapidamente que aquele que inventa pretextos para que alguma coisa não seja feita acaba sendo desmoralizado por alguém que está fazenda a coisa.

A revolta dos maricas mostra que a maioria dos brasileiros enxerga a vacina como um direito, não uma obrigação. Bolsonaro pode tornar seu governo opcional se não tratar a vacinação como um tema obrigatório.