segunda-feira, 17 de maio de 2021

Ultraje, acinte, escárnio

No final deste mês, o presidente e seu vice, vários ministros e auxiliares do primeiro escalão serão aquinhoados com ganhos salariais de até 69%, rompendo, definitivamente, o teto constitucional de R$ 39,2 mil, remuneração dos ministros do Supremo. A excrescência, que amplia regalias para a elite da elite do funcionalismo federal, foi definida em portaria do Ministério da Economia no momento em que o titular Paulo Guedes roga por uma reforma administrativa que diz ser necessária para acabar com privilégios, e mais uma vez prova-se que é de mentirinha.

Ironicamente publicada em 30 de abril, véspera do Dia do Trabalho, a portaria deve custar, neste ano, perto de R$ 200 milhões ao Tesouro. Isso se outras categorias não exigirem a aplicação do mesmo critério, que, para fugir do teto, separa as remunerações, permitindo somar os ganhos do cargo ocupado e o da aposentadoria. Na prática, isso dobra o limite constitucional para R$ 78,4 mil. Um acinte.


Aprofunda-se assim a oficialização da desigualdade em um país no qual trabalhadores públicos têm segurança de emprego e remuneração boa parte das vezes maior do que os demais mortais, além de aposentadoria diferenciada, próxima da integralidade. No caso dos militares, isso beira ao escândalo, com regras e vantagens muito acima dos outros servidores, mesmo depois da reforma previdenciária de 2019.

Embora o Ministério da Economia argumente que a portaria beneficia médicos e outras funções essenciais, sem especificar quem e onde, o arrombamento do teto é um mimo adicional – e dos mais caros – às altas patentes militares que o presidente Bolsonaro necessita permanentemente adular.
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Generais da reserva, como Hamilton Mourão e o ministro da Defesa Braga Netto, passarão a receber mais de R$ 60 mil por mês. O astronauta Marcos Pontes, R$ 54,4 mil. Na linha de baixo da hierarquia, o capitão Bolsonaro terá aditamento de R$ 2,3 mil ao salário de presidente da República, passando a receber R$ 41,6 mil.

Ainda que possam ser legais, os aumentos ferem a ética, como reconheceu o vice Mourão. São impróprios no conteúdo, fora de época e lugar, além de absolutamente ofensivos diante da miséria cotidiana e que só se aprofunda. Um insulto a um país pandêmico e miserável, com mais de 27 milhões de cidadãos vivendo abaixo da linha da pobreza, 15 milhões sem ter o que comer, dependentes de doações, para os quais a ação governamental é dispor, com quatro meses de atraso, de um auxílio emergencial de R$ 135 a R$ 375 – 25 a 75 dólares ao mês.

Para o tamanho da afronta, a repercussão do dim-dim a mais foi modestíssima. Uma ultraje ofuscado por escândalos maiores – orçamento secreto para repassar dinheiro a aliados, já apelidado de tratoraço ou bolsolão, omissão deliberada na compra de vacinas, gabinetes paralelos de saúde e de comunicação, mentiras deslavadas na CPI da pandemia.

Mas os privilégios pessoais, mesmo quando infinitamente inferiores a roubalheiras deslavadas, têm peso importante. Lula que o diga. O PT desviou milhões para beneficiá-lo, mas o tipo de indignação causada pelo triplex no Guarujá e pelos detalhes de novo rico na reforma do sítio de Atibaia tiveram preço altíssimo. Destruíram a semelhança que Lula construíra por anos entre ele e o brasileiro simples, o operário, o trabalhador. Somam-se aí outros gostos nobres do ex, os vinhos caríssimos, os lençóis de algodão egípicio de 800 fios, as festanças no Torto. Símbolos.

Bolsonaro, que adora ludibriar os seus com a figura de “homem do povo”, ainda não tinha exposto de forma tão evidente seu gosto pelas delícias do poder. O fez sem qualquer constrangimento, exibindo a picanha de R$ 1.799,00 o quilo servida no churrasco do Alvorada no Dia das Mães. E com o rótulo “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Um escárnio que escancara a farsa meramente publicitária do pão francês com leite condensado.

Para arrebanhar 57,7 milhões de votos, Bolsonaro vendeu a ilusão de que acabaria com a corrupção, eliminaria privilégios e enterraria a velha política. No exercício da Presidência é o mesmo oportunista que o eleitor não viu em 2018: acoberta corruptos em troca de apoio e amplia regalias aos fardados e aos fiéis. Posa faceiro ao lado de Collor de Mello, marajá que prometia caçar marajás. Tudo como dita a política jurássica, agora ornada com dinheiro a mais para milicos, férias de luxo e churrasco milionário.

Parece pouco, mas não é. A chave para desnudar impostores não raro está nos detalhes.

Ressurreição dos mortos-vivos

Bolsonaro é uma espécie de recidiva de vários problemas insepultos da história do Brasil. Uma história marcada pela escravidão, patriarcalismo, patrimonialismo, sexismo, misogenia, racismo. Uma história social trágica que se expressa na violência extrema
Fernando Haddad

Loucura ou crime?

Um grupo de sete juristas e acadêmicos protocolou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Civil solicitando o “reconhecimento da incapacidade civil de (Jair Bolsonaro para) exercer o cargo e as funções atinentes à Presidência da República, com seu consequente afastamento”.

Os autores esclarecem que não se trata de julgamento por crime de responsabilidade ou crime comum, para os quais seria necessária autorização parlamentar. Apontam ainda que não se trata de uma interdição pela incapacidade de gerir atos da vida civil, mas especificamente da “interdição de um supremo mandatário que não tem os requisitos cognitivos mínimos” para exercer a Presidência.

Na expectativa de que a Corte determine a produção de prova pericial, os autores levantaram exaustivamente ponderações de profissionais da área da psicologia, da psicanálise e da psiquiatria. As bases para o pedido já haviam sido lançadas pelo jurista Miguel Reale Jr., no artigo Pandemônio, publicado no Estado.

Reale cataloga diversos indícios de transtorno de personalidade. Ainda em 1999, Bolsonaro dizia, em entrevista, que se fosse presidente fecharia o Congresso “sem a menor dúvida – daria o golpe no mesmo dia”. Na mesma entrevista, defendeu a tortura, e disse que o Brasil “só vai mudar quando partirmos para uma guerra civil (…) matando uns 30 mil (…). Vão morrer alguns inocentes. Tudo bem”. Já presidente, Bolsonaro, além de promover manifestações golpistas, deu inúmeras mostras de megalomania – “eu sou a Constituição”, “tenho a caneta”, “quem manda sou eu”, “o meu Exército”.

Segundo a Classificação Internacional de Doenças da OMS, o transtorno de personalidade antissocial é caracterizado pela “indiferença insensível face aos sentimentos alheios; uma atitude flagrante e persistente de irresponsabilidade e desrespeito a regras; a baixa tolerância à frustração; a incapacidade para experimentar culpa; e a propensão a culpar os outros”. A falta de empatia de Bolsonaro ante centenas de milhares de mortos está gravada na História da Infâmia nacional: “e daí?” “não sou coveiro”, “chega de frescura”, “vai ficar chorando até quando?”.

Reale sugere ainda o transtorno de personalidade paranoide, caracterizado por “um combativo e obstinado senso de direitos pessoais; tendência a experimentar autovalorização excessiva e preocupação com explicações conspiratórias”. Além de enxergar por toda a parte conspirações da sua nêmesis (“os comunistas”), Bolsonaro já rompeu com seu partido e confronta dia sim e outro também os governadores, a imprensa, o Congresso e o STF. Ele já ameaçou responder com “pólvora” a uma suposta invasão da Amazônia pelos EUA e sugeriu que a China está movendo uma “guerra química” (sic) contra o mundo.

Segundo outro cânone do diagnóstico psiquiátrico, o DSM-5, da Associação Psiquiátrica Americana, o transtorno paranoide é “caracterizado por desconfiança e suspeita tamanhas que as motivações dos outros são interpretadas como malévolas”; o transtorno narcisista se manifesta pelo “sentimento de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia”; e o transtorno antissocial apresenta um padrão de “desrespeito e violação dos direitos dos outros”.

Em Carta Aberta, 600 médicos formados na Escola Paulista de Medicina elencaram os atos e omissões mortíferos de Bolsonaro na pandemia, entre eles o estímulo a tratamentos comprovadamente ineficazes; a negligência na crise de oxigênio em Manaus; a sabotagem das medidas de isolamento social; ou o descaso no planejamento da imunização. A Carta conclui com um pedido de impeachment por crimes de responsabilidade e contra a saúde pública.

Qualquer que seja o desfecho da ação protocolada no STF, o fato de que juristas se unem para apontar um caso de incapacidade mental e médicos para pedir o impedimento político sugere que é cada vez menos verossímil uma terceira hipótese para explicar a conduta desastrosa de Bolsonaro que contribuiu para as centenas de milhares de mortes no Brasil. A leitura dos dois documentos indica que ou foi loucura ou foi crime.

Pandemia e lição de casa

Já estamos um pouco cansados de falar da pandemia. Quem caiu, quem não caiu, amigo entubado, amigo extubado, CoronaVac, AstraZeneca, vozes abafadas pelas máscaras, CPIs, mentiras e gravações.

Mas a Humanidade tem de enfrentar seus erros e fazer a lição de casa, pois, nas condições de crise ambiental, novas pandemias podem nos atacar.

Um passo importante foi a comissão especial criada pela OMS, que divulgou seu relatório. Nele, o grupo liderado pela ex-primeira-ministra da Nova Zelândia Helen Clark aponta os erros da própria OMS, que perdeu um mês antes de decretar a emergência.

Governos locais — com seu negacionismo, isso conhecemos bem —também foram responsáveis por políticas destruidoras.

Em outras palavras, a tragédia que o mundo vive hoje poderia ter sido evitada. Comissões internacionais como essa são importantes para despertar uma nova consciência. No final da década dos 60, o Clube de Roma publicou um relatório de personalidades políticas alertando para a produção e o consumo insustentáveis. Isso foi um marco.

No meu entender, existe uma lição implícita na pandemia, já absorvida no século XIX por Humboldt. Ao escalar a montanha do vulcão Chimborazo, ele compreendeu algo que já estava amadurecendo em seu pensamento: os elementos da natureza são interligados, ela é uma rede viva e, portanto, vulnerável.


Lição semelhante pode ser transplantada para a política internacional num caso de pandemia. Estamos todos no mesmo barco. Ninguém estará a salvo enquanto todos não estiverem a salvo.

Daí meu apoio à quebra das patentes, mesmo sabendo que o efeito imediato da medida não é tão promissor quanto a distribuição de vacinas por países que têm mais do que necessitam para vacinar sua população.

Essa noção de interdependência deve ser levada também para o plano interno, em que, sem solidariedade, dificilmente atravessaremos a crise.

O governo brasileiro fez tudo errado. Negou a pandemia, resistiu à vacina e contribuiu para que tivéssemos um número absurdo de mortes.

Como se não bastasse isso, o desmatamento na Amazônia atinge números recordes, o Congresso acaba com as leis que definem o licenciamento ambiental.

O processo de destruição da natureza será mais acentuado no Brasil, sem falar no aumento da pobreza, por remarmos contra a corrente mundial que defende a sustentabilidade.

O governo e o Congresso não respeitam o alerta sobre uma exploração sustentável da natureza. E muito menos os conselhos para preservar vidas durante uma pandemia.

Simultaneamente, portanto, criam as bases de uma nova pandemia e estabelecem a política negacionista de um sacrifício humano ainda maior.

A única esperança, se isso merece o nome de esperança, é que não conseguirão destruir tudo nem matar todos os brasileiros até 2022.

É simples: ou deixam o poder, ou acabam com o Brasil.

Mito do Brasil

 


Um governo dentro do governo

Há algum tempo me refiro ao atual governo brasileiro como o grupo Bolsonaro & Filhos. Alguns estranham, outros criticam essa maneira de me referir ao poder executivo no país, mas a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid conseguiu comprovar o que já era objeto de alguma desconfiança.

Existe um governo dentro do governo. É o conjunto de filhos e amigos dos filhos que informam, negociam e falam em nome do patriarca. O grupo se fez presente no Itamaraty, por intermédio de Ernesto Araújo, que verbalizou as decisões da turma, apoiadas pelo então presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, Eduardo Bolsonaro.


No caso da saúde o problema foi ideológico. O então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, queria conter os avanços da China no comércio internacional. O norte-americano bloqueou o acesso de empresas chinesas ao mercado interno deles. O governo brasileiro caminhou para adotar a mesma medida.

Bolsonaro ameaçou sair do Acordo de Paris, sobre meio ambiente, a exemplo do que os norte-americanos fizeram. Enfrentou os líderes europeus. Chegou a ser grosseiro com o presidente francês. E liberou seu ministro do Meio Ambiente para defender o desmatamento, utilização comercial de áreas indígenas y otras cositas más.

Trump não reconheceu o perigo da covid no primeiro momento. Desprezou o problema e tentou manter o país funcionando apesar das muitas evidências em contrário. Foi um desastre tão grande que perdeu a reeleição.

Estrebuchou, esperneou, reclamou, mas teve que sair da presidência. Protagonizou o episódio vergonhoso da invasão do Capitólio, o congresso norte-americano. Nos últimos dias de mandato, vacinou-se escondido. Bolsonaro perdeu muito com a derrota de Trump. No primeiro momento, ele tentou contornar a pandemia. Chamou de “gripezinha”.

Para provocar irritação no grupo Bolsonaro & Filhos o vírus surgiu na China e as primeiras vacinas foram criadas também naquele país. E, por ironia, no Brasil, foram reproduzidas pelo Butantã, do governo do estado de São Paulo, cujo chefe é João Dória, um dos principais candidatos a impedir a reeleição de Bolsonaro.

O presidente é muito agradecido a seu filho Carlos, o Carluxo, que o conduziu à vitória na eleição presidencial a custo muito baixo e com pouquíssimo tempo na televisão. Carlos é uma espécie de guru na área de comunicação. O Palácio do Planalto jamais conseguiu organizar a Secretaria de Comunicação, neste governo.

Ninguém se manteve naquele setor, porque Carluxo é quem dá ordens ali. Houve até o caso de um jornalista convidado ser demitido uma semana depois. Fábio Wajngarten conseguiu ficar no cargo por um bom tempo porque é amigo da turma.

Canalizou verbas oficiais para blogs que apoiam o governo e desprezou solenemente a grande imprensa. Quebrou as agências de publicidade que se instalaram em Brasília e afetou as finanças dos jornais brasileiros. Seu trabalho produziu a péssima imagem que o presidente Bolsonaro desfruta dentro e fora do país.

Carluxo soube vencer a eleição, mas não demonstrou ter conhecimentos suficientes para a arte de governar. Neste quesito entram os dois outros filhos, um senador, outro deputado. Este queria ser embaixador do Brasil nos Estados Unidos. O grupo indica pessoas para assumir cargos específicos na administração do pai.

Bolsonaro não tem quadros. É o caso do novo ministro de Relações Exteriores, que era o chefe do cerimonial do Palácio do Planalto. Amigo dos meninos. Além das escolhas dos filhos, ele trabalha com militares, que cumprem ordens. O melhor exemplo é Eduardo Pazuello, general da ativa, três estrelas, que assumiu o Ministério da Saúde sem saber que existia o Sistema Único de Saúde.

Ele militarizou suas ações e construiu o desastre, sempre orientado pelo grupo de amigos dos filhos que decidiram não comprar as vacinas da China e do Dória e evitar tratar da pandemia. O melhor caminho seria a imunização de rebanho, mesmo porque, segundo eles, a pandemia seria vencida em questão de meses.

Canção da revolta

...E se piedade vos sobrar,
tende piedade vossa
que não sois assim
tão poderoso.

Que vossos filhos
são degenerados, porque
não soubestes ser pai
e eles se perverteram.

Tende piedade vossa
que cometestes erro ainda maior:
Aprisionastes almas de poetas
em corpos de homens.

Tende piedade vossa
que os feitos à vossa semelhança
são vampiros insaciáveis.

Tende piedade vossa
que há gente com fome,
gente com medo,
gente com sede e frio,

e um dia essa fome se transforma em ódio,
esse medo vai se defender e atacar,
essa sede vai ser de vosso sagrado sangue,
esse frio vai querer se aquecer no calor da revolta.

E se mais piedade vos sobrar,
tende piedade vossa que não sois
o deus carinhoso com que eu sonhei
Que sois mal e vingativo,
que castigais quando devíeis perdoar.

E se piedade vos sobrar
tende piedade vossa,
que necessitais muito mais de pena
do que nós, míseros sofredores.

Lúcio Cardoso

Quem é a polícia do B?

"Tudo bandido!", decretou Hamilton Mourão horas depois do massacre no Jacarezinho, em 6 de maio, quando indagado sobre 27 das 28 vítimas fatais. O vice-presidente só conhecia a identidade do policial morto. Os supostos criminosos não tinham sido processados, julgados ou condenados. A segunda maior autoridade do país oferecia seu amparo a execuções extrajudiciais.

Mais: classificando como “bandidos” as vítimas ainda não identificadas, dizia implicitamente que são criminosos os que residem ou simplesmente circulam pelo Jacarezinho. A frase, síntese da barbárie nacional, esclarece os protocolos ocultos de ação da polícia no Rio de Janeiro. Desde o fracasso da política das UPPs, restaurou-se o padrão de invasão de favelas em operações letais. O pressuposto é que as favelas são terra estrangeira e seus moradores, combatentes inimigos.


Exige-se a investigação da Operação Exceptis, cujo nome de batismo enviava uma mensagem voluntária de deboche ao STF e uma outra, involuntária, a todo o país: a polícia do Rio não reconhece as leis regulares, mas apenas suas próprias leis, de “exceção”. O que procurar, porém, na investigação?

A resposta depende da hipótese inicial. Se acreditamos que a polícia do Rio é um corpo armado que opera sem planejamento e sem protocolos, a investigação deveria restringir-se aos desvios em relação aos padrões normais de ação policial e terminar com a punição dos agentes culpados. Mas tudo indica que a polícia segue planejamento e protocolos bem definidos, embora ocultos.

Na cidade do Rio, quase 60% da superfície dos territórios controlados por grupos armados irregulares encontram-se sob o comando de milícias, ou seja, da polícia do B. Apenas 15% são controlados por facções do crime, enquanto 25% são áreas de parceria ou disputa. Contudo a imensa maioria das operações policiais incide sobre os territórios de facções. É coisa incomum a ação da polícia oficial nos territórios de milícias — e mais raros ainda, os eventos de choques entre policiais e milicianos. Não estaríamos diante de uma aliança tácita entre a polícia e as milícias para estender o controle territorial das segundas?

O Jacarezinho situa-se nas vizinhanças da Cidade da Polícia, base principal das chefias e unidades operacionais da Polícia Civil. A favela vive sob a maior facção criminosa do Rio, um grupo sanguinário que nunca faz parceria com as milícias. A facção concorrente, pelo contrário, não rejeita parcerias baseadas numa nítida divisão de trabalho: os traficantes cuidam da venda de drogas, enquanto os milicianos dedicam-se à extorsão de comerciantes e moradores. A seleção do Jacarezinho para a Operação Exceptis parece obedecer a uma lógica de negócios. Quem ganha com uma eventual troca de guarda na favela?

A estúpida “guerra às drogas” é o pano de fundo e o álibi, mas não a causa, do massacre mais recente. Polícia é política. Uma investigação verdadeira do banho de sangue teria que ir muito além da operação no Jacarezinho, em busca das conexões subterrâneas entre a polícia oficial e a polícia do B.

O prefeito Eduardo Paes oscilou entre a condenação à violência da polícia e a crítica às restrições impostas pelo STF às ações policiais. “Se a reação for tão radical quanto a operação de ontem, um ‘ah, então libera geral esse território aqui para fazerem o que quiserem’, nós vamos viver esse pêndulo terrível que vitimiza principalmente as pessoas que moram em comunidades.” O “pêndulo terrível”, porém, instalou-se há décadas, e o “libera geral” exprime a postura estatal diante das milícias.

Paes identifica corretamente “as pessoas que moram em comunidades” como as vítimas da crônica guerra suja no Rio. Contudo finge que a solução encontra-se em olhar para outro lado, isto é, voltar à estranha “normalidade” vigente na segunda maior metrópole do país. Se ele se preocupa com as vítimas, deve clamar por uma “reação radical”: a implantação do Estado de Direito no conjunto da cidade que administra. Para isso, antes de tudo, é preciso reconhecer que a polícia oficial já não se distingue da polícia do B.

Vencer o populismo

O termo “populismo” surgiu no século 19 para designar tanto o movimento político de intelectuais russos de estimular a mobilização dos camponeses contra os czares quanto o antigo Partido Populista americano, precursor do Partido Democrata, que buscava os votos dos agricultores contra os grupos e instituições consideradas de elite. No século 20, na América Latina, foi usado para descrever a atuação de políticos como Juan Perón, na Argentina, Getúlio Vargas e Ademar de Barros, no Brasil, e Haya de la Torre, no Peru, e é usado hoje para se referir a políticos como Hugo Chávez e Evo Morales, na América Latina, e Donald Trump, Viktor Orbán e Tayyip Erdogan em outras partes.


Existe muita controvérsia sobre o que é e como interpretar o populismo, mas sua característica principal é a existência de líderes políticos que estabelecem uma relação forte e personalizada com setores importantes da sociedade, passando por cima das instituições e dos partidos políticos tradicionais.

O populismo pode se apresentar como movimento progressista, quando suas bandeiras são a distribuição de benefícios e a ampliação dos direitos da população mais pobre, ou como conservador, quando suas bandeiras são a defesa de determinados setores da sociedade contra os demais. Mas ele é, sobretudo, antidemocrático, autoritário e, em última análise, irracional, por agir sempre buscando efeitos políticos imediatos, sem se preocupar ou ignorando consequências de longo prazo.

O populismo não nasce no vazio, mas se apoia na identificação dos desejos e necessidades de setores significativos da população que se sentem marginalizados e preteridos do jogo político e das ações dos governos. Nisso ele não é diferente de outras formas de mobilização política. Mas difere na medida em que seus líderes proclamam ser os únicos representantes da parte boa e moralmente aceitável do “povo”, transformando as disputas políticas numa luta entre o bem e o mal, e não numa competição entre diferentes partidos e correntes de opinião igualmente legítimos.

A política populista é uma política de identidade, seus líderes proclamam que merecem apoio porque integram e representam a “parte boa” da sociedade (o povo, a nação, as pessoas virtuosas, os pobres, determinada religião, os nativos ou os brancos), e por isso não precisam apresentar seus programas e ideias, basta exibir suas virtudes e atacar a legitimidade de seus oponentes (ver Müller, Jan-Werner. What is Populism?, University of Pennsylvania Press, 2016).

Com isso as disputas eleitorais se radicalizam e os resultados só são reconhecidos como legítimos pelos populistas quando ganham. Uma vez no poder, líderes populistas tendem a desmontar as instituições estabelecidas, substituídas por seguidores leais, e consolidam seu poder pela distribuição de benefícios a seus apoiadores, desprezando as formalidades legais que possam existir.

Eles também se opõem, sistematicamente, aos produtores de ideias e pensamentos independentes, como a imprensa e as universidades, já que entendem ser eles, e mais ninguém, que sabem o que “o povo” quer e o que deve ser feito.

Nem todos os movimentos populistas têm todas essas características e podem se modificar em diferentes momentos e circunstâncias. Mas, no limite, ao desmontar as instituições estabelecidas, substituí-las pelo poder pessoal do líder e não reconhecer a legitimidade da oposição, o populismo se aproxima do fascismo; e ao ignorar o Estado de Direito se aproxima dos cleptocratas, sempre dispostos a vender seu apoio a quem estiver no poder.

Numa disputa eleitoral, a força do populismo é grande, porque os argumentos de superioridade moral, identidade e virtudes pessoais de um líder são muito mais simples e fáceis de comunicar do que argumentos complicados sobre pluralismo, respeito a instituições e políticas públicas complexas. No entanto, o populismo também pode ser derrotado, pelo grande número de pessoas que exclui de seu “povo”, pelo cansaço da beligerância permanente que alimenta e pela visibilidade da corrupção e da ineficiência com que governa.

A primeira condição para vencer o populismo é entender e ter respostas melhores para os problemas legítimos que ele pretende representar – pobreza, insegurança, discriminação, a ineficiência do serviço público, a corrupção dos políticos. A segunda é não excluir nem desconsiderar os populistas e seus seguidores, ou seja, não fazer com os populistas o que eles fazem com seus oponentes. E a terceira é entender que o processo político-eleitoral não é, simplesmente, um confronto de argumentos e programas políticos, mas também um jogo de imagens e identificações que se dão, cada vez mais, nas redes sociais, e depende de líderes que possam apresentar-se de modo verdadeiro e convincente.

Não é fácil, mas não é impossível.

Sujeitos ocultos

Um trabalho exaustivo e minucioso do jornal O Estado de S. Paulo mostrou na semana passada a existência de fortes indícios de que o governo montou um esquema paralelo para o manejo das emendas parlamentares ao Orçamento da União a fim de assegurar apoio no Congresso.

Pouco antes disso surgiram na CPI da Covid evidências sobre o uso do mesmo tipo de recurso obscuro no Ministério da Saúde, onde a gestão da pandemia conta com um grupo de aconselhamento do presidente da República que atua à margem das orientações da estrutura oficial.

Muito antes, mais exatamente em maio do ano passado, o país tomou conhecimento de que numa reu­nião ministerial ocorrida no mês anterior (22 de abril de 2020) o presidente da República revelara contar com um “sistema particular de informações” por não se sentir atendido pelas instâncias formais da área, tais como a Polícia Federal, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e até o setor de inteligência das Forças Armadas.


Voltando ainda mais no tempo, desde o início do mandato de Jair Bolsonaro sabemos da atuação, digamos, informal, de filhos e correligionários do presidente na comunicação governamental, motivo, inclusive, de atritos com aqueles oficialmente nomeados para funções nesse setor.

Alguns saíram, outros preferiram ficar simulando não perceber a impropriedade, quando não o risco do flerte com a ilegalidade, dessa maneira oficiosa de lidar com assuntos oficiais. Ali viceja o chamado gabinete de ódio de composição e atuação envoltas em sombras.

Isso é o que por ora conhecemos sobre o conjunto de sujeitos ocultos em ação no que poderíamos chamar de Planalto profundo. Ainda que não se estabeleça com isso a existência de um governo paralelo como algo extensivo a todas as áreas, é o suficiente para constatar a predileção do presidente Jair Bolsonaro por trabalhar, desorganizada e indisciplinadamente, com instâncias montadas à margem da máquina do Estado.

Se confirmados os indícios de uma reserva de bilhões de reais do Orçamento da União para o atendimento privilegiado (e sem transparência) de deputados e senadores, teremos a ocorrência de um crime de responsabilidade. Isso, no máximo. No mínimo, ficará demonstrada a adesão do governo aos costumes da velhíssima política.

Vestidas com roupa nova, as mesmas práticas que há quase trinta anos ensejaram uma CPI cujo resultado foi a cassação de seis deputados e a renúncia de outros quatro entre os 37 investigados conhecidos como “anões do Orçamento”.

Na gestão da crise sanitária, as posições do presidente contrárias às orientações da ciência pareciam ser fruto exclusivo da cabeça dele. A CPI da Covid vem nos mostrando que Bolsonaro bebia também em outras fontes, buscando respaldo em gente que nada tinha a ver com a equipe presidencial. Pessoas que desconheciam procedimentos normativos, como ocorreu no caso do preparo daquela minuta de decreto para incluir na bula da hidroxicloroquina o tratamento para a Covid-19, ao arrepio das exigências legais.

O episódio da notória reunião do fatídico 22 abril foi o mais explícito sobre os métodos presidenciais de operação, fundados no aconselhamento de uma rede de conhecidos que compartilham das posições dele. Ali o presidente, sem imaginar que a gravação viria a ser de conhecimento público, criticou fortemente a Polícia Federal (“não me dá informações”), “as inteligências das Forças Armadas” e a Abin. Todas por não o atenderem de acordo com seus desejos e poderes que acredita ter.

Daí foi que revelou a existência de um “sistema particular de informações”. Ele mesmo tratou de descrever o perfil e o funcionamento do tal sistema. “É o sargento do batalhão do Bope do Rio de Janeiro, é o capitão do grupo de artilharia lá de Fortaleza, é o policial civil que tá em Manaus, é meu amigo que tá na reserva e me traz informação da fronteira”, disse ele, ressaltando a eficácia do assessoramento e ao mesmo tempo atribuindo a ineficiência das instâncias formais ao “aparelhamento das instituições”.

A solução encontrada pelo presidente, ao que se viu e se vê agora de maneira ampliada, foi montar aparelhos paralelos para exercer a chefia da administração federal como quem toca uma reforma em casa sob critérios de vontade e de conveniências pessoais. Um indubitável desvio dos ditames a que está submetido o exercício da Presidência da República.