segunda-feira, 26 de agosto de 2024
Uma visão distópica de um Brasil que deu errado
O ano é 2033 e mais uma crise paralisa o país. O novo presidente busca um acordo com os presidentes da Câmara e do Senado para aprovar um pacote de medidas para tentar salvar seu governo.
Transcorrida a metade de seu mandato, o ocupante do Palácio do Planalto, vencedor das primeiras eleições após o fim do longo ciclo em que a política brasileira ficou polarizada sob a influência de Lula e Bolsonaro, vivia um impasse.
Não havia sido fácil chegar ali. Os analistas políticos haviam classificado a disputa presidencial de 2030 como “a eleição do cansaço”.
As velhas fórmulas políticas da década que se encerrava estavam desgastadas. Eleitores à direita e à esquerda haviam se dado conta da energia gasta em tantos anos de brigas nas redes sociais e no convívio social e resolveram dar crédito àquele candidato que propunha o básico: melhorar as políticas públicas com foco nos mais pobres e destravar a economia para a prosperidade das empresas.
Seu tema de campanha era fácil de entender - ao mesmo tempo básico e revolucionário. Básico, por prometer aquilo que sempre se esperou de uma liderança política; revolucionário, porque ninguém, uma vez eleito, havia realmente levado aquela determinação às últimas consequências.
Seu compromisso eleitoral era tão somente tirar do papel o art. 3º da combalida Constituição de 1988, curiosamente um dos poucos dispositivos originais que, passados mais de 40 anos, não havia sido alvo de nenhuma mudança por emenda.
Nas propagandas de campanha, ele alternava slogans inspirados nos objetivos fundamentais da República. Suas propostas para a economia eram articuladas sob o lema “Para garantir o desenvolvimento nacional”; as ideias para a política social eram envelopadas na mensagem de “erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades”.
Suas falas moderadas miravam tanto os eleitores progressistas de esquerda (“promover o bem de todos, sem preconceitos e discriminação”) quanto aos conservadores da direita - sobretudo quando ele destacava a necessidade de se “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (com ênfase nos dois primeiros adjetivos).
Seu programa de governo girava em torno de três eixos: i) reformular os gastos públicos para implementar uma cobertura integral do cidadão, com foco no trinômio saúde-educação-assistência; ii) promover um choque de produtividade na economia e iii) refundar o sistema tributário, tendo como norte outra determinação constitucional - a progressividade, que determinava que os mais ricos deveriam pagar mais impostos do que os mais pobres.
No fundo, ele tinha dúvidas se seria possível se eleger com aquela plataforma, ainda deixando claro nas entrevistas e debates que seria preciso mexer com o interesse de muita gente.
Mas aquela foi a eleição do cansaço, e depois de quase duas décadas com o país polarizado e dividido, a população se mostrou aberta para furar as próprias bolhas. Afinal, entre idas e vindas, avanços e retrocessos, o Brasil chegava no início da década de 30 preso aos velhos problemas do século XX: desigualdade social elevada, violência urbana fora de controle, inflação subindo, taxas de juros e carga tributária elevadas, crescimento pífio e desemprego preocupante.
Com os eleitores descrentes dos herdeiros do bolsonarismo e do lulismo, e depois das experiências desastrosas de celebridades televisivas e do mundo digital governando as maiores cidades do país, a sociedade se conscientizou de que a solução estava no meio.
E o candidato nem-nem (nem bolsonarista, nem lulista) cresceu primeiro agregando lideranças de movimentos sociais e empresariais para construir propostas de reformas da tributação da renda, de políticas públicas, do funcionalismo público, dos incentivos tributários. O debate foi ganhando corpo e ao longo da campanha o movimento se refletiu nas intenções de voto.
Transcorrida a metade de seu mandato, porém, o presidente eleito com quase 70% dos votos válidos no segundo turno experimentava a mais baixa taxa de aprovação desde o governo Temer e estava à beira de um processo de impeachment.
Nada de corrupção nem pedaladas fiscais: a queda de sustentação do governo pós-polarização se deu por paralisia. Governar havia se revelado muito mais difícil do que aparentava durante a campanha. Logo o novo presidente se deu conta de que não bastava um discurso que unia progressistas e conservadores ou propostas corajosas construídas após um amplo debate com a sociedade.
Em pouco mais de dois anos, a esperança de um país mais justo e dinâmico se perdeu pela oposição das velhas forças políticas reeleitas na base das emendas orçamentárias, do fundão eleitoral e de partidos personalistas e sem democracia interna, pelas mesmas regras eleitorais que favorecem candidaturas caras ou populistas.
Dez anos depois, em 2043, com o Brasil conflagrado por guerra civil e governado por um pseudoparlamentarismo autoritário, um acadêmico foi preso e torturado por escrever que a origem de nossas mazelas estava no conjunto de regras políticas e eleitorais, que nos levaram a fazer péssimas escolhas de parlamentares desde a Constituinte de 1987.
Mas aí já era tarde demais.
Transcorrida a metade de seu mandato, o ocupante do Palácio do Planalto, vencedor das primeiras eleições após o fim do longo ciclo em que a política brasileira ficou polarizada sob a influência de Lula e Bolsonaro, vivia um impasse.
Não havia sido fácil chegar ali. Os analistas políticos haviam classificado a disputa presidencial de 2030 como “a eleição do cansaço”.
As velhas fórmulas políticas da década que se encerrava estavam desgastadas. Eleitores à direita e à esquerda haviam se dado conta da energia gasta em tantos anos de brigas nas redes sociais e no convívio social e resolveram dar crédito àquele candidato que propunha o básico: melhorar as políticas públicas com foco nos mais pobres e destravar a economia para a prosperidade das empresas.
Seu tema de campanha era fácil de entender - ao mesmo tempo básico e revolucionário. Básico, por prometer aquilo que sempre se esperou de uma liderança política; revolucionário, porque ninguém, uma vez eleito, havia realmente levado aquela determinação às últimas consequências.
Seu compromisso eleitoral era tão somente tirar do papel o art. 3º da combalida Constituição de 1988, curiosamente um dos poucos dispositivos originais que, passados mais de 40 anos, não havia sido alvo de nenhuma mudança por emenda.
Nas propagandas de campanha, ele alternava slogans inspirados nos objetivos fundamentais da República. Suas propostas para a economia eram articuladas sob o lema “Para garantir o desenvolvimento nacional”; as ideias para a política social eram envelopadas na mensagem de “erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades”.
Suas falas moderadas miravam tanto os eleitores progressistas de esquerda (“promover o bem de todos, sem preconceitos e discriminação”) quanto aos conservadores da direita - sobretudo quando ele destacava a necessidade de se “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (com ênfase nos dois primeiros adjetivos).
Seu programa de governo girava em torno de três eixos: i) reformular os gastos públicos para implementar uma cobertura integral do cidadão, com foco no trinômio saúde-educação-assistência; ii) promover um choque de produtividade na economia e iii) refundar o sistema tributário, tendo como norte outra determinação constitucional - a progressividade, que determinava que os mais ricos deveriam pagar mais impostos do que os mais pobres.
No fundo, ele tinha dúvidas se seria possível se eleger com aquela plataforma, ainda deixando claro nas entrevistas e debates que seria preciso mexer com o interesse de muita gente.
Mas aquela foi a eleição do cansaço, e depois de quase duas décadas com o país polarizado e dividido, a população se mostrou aberta para furar as próprias bolhas. Afinal, entre idas e vindas, avanços e retrocessos, o Brasil chegava no início da década de 30 preso aos velhos problemas do século XX: desigualdade social elevada, violência urbana fora de controle, inflação subindo, taxas de juros e carga tributária elevadas, crescimento pífio e desemprego preocupante.
Com os eleitores descrentes dos herdeiros do bolsonarismo e do lulismo, e depois das experiências desastrosas de celebridades televisivas e do mundo digital governando as maiores cidades do país, a sociedade se conscientizou de que a solução estava no meio.
E o candidato nem-nem (nem bolsonarista, nem lulista) cresceu primeiro agregando lideranças de movimentos sociais e empresariais para construir propostas de reformas da tributação da renda, de políticas públicas, do funcionalismo público, dos incentivos tributários. O debate foi ganhando corpo e ao longo da campanha o movimento se refletiu nas intenções de voto.
Transcorrida a metade de seu mandato, porém, o presidente eleito com quase 70% dos votos válidos no segundo turno experimentava a mais baixa taxa de aprovação desde o governo Temer e estava à beira de um processo de impeachment.
Nada de corrupção nem pedaladas fiscais: a queda de sustentação do governo pós-polarização se deu por paralisia. Governar havia se revelado muito mais difícil do que aparentava durante a campanha. Logo o novo presidente se deu conta de que não bastava um discurso que unia progressistas e conservadores ou propostas corajosas construídas após um amplo debate com a sociedade.
Em pouco mais de dois anos, a esperança de um país mais justo e dinâmico se perdeu pela oposição das velhas forças políticas reeleitas na base das emendas orçamentárias, do fundão eleitoral e de partidos personalistas e sem democracia interna, pelas mesmas regras eleitorais que favorecem candidaturas caras ou populistas.
Dez anos depois, em 2043, com o Brasil conflagrado por guerra civil e governado por um pseudoparlamentarismo autoritário, um acadêmico foi preso e torturado por escrever que a origem de nossas mazelas estava no conjunto de regras políticas e eleitorais, que nos levaram a fazer péssimas escolhas de parlamentares desde a Constituinte de 1987.
Mas aí já era tarde demais.
Humanoides clínicos
O American Board of Internal Medicine (Abim), entidade semelhante ao Conselho Federal de Medicina, no Brasil, revogou a certificação de dois médicos americanos conhecidos por liderar uma organização que promove a ivermectina como tratamento para Covid-19. A notícia tem relevância comparativa na profissão médica brasileira, onde acontece preocupante fissura qualitativa entre o nível da prática e o da instituição.
É o que revela a recente eleição no Conselho Federal de Medicina, vencida pelo bloco antiaborto, comprometido com o inútil receituário da cloroquina e da ivermectina durante a pandemia, explicitamente antenado à ultradireita. Há nele quem ainda apoie a violência depredatória na Praça dos Três Poderes.
O desconcerto evoca a narrativa do austríaco Robert Musil, "O Homem sem Qualidades", em que o personagem Ulrich, sem características próprias e indiferente ao mundo, busca um sentido para a vida. Embora do século passado, trata-se de uma construção romanesca atualíssima no século 21, quando as tecnologias da comunicação avançam céleres em eficácia técnica, mas viralizam os antagonismos políticos e o retrocesso de qualidades humanas.
Não se põe em dúvida a competência da maioria dos médicos brasileiros nem a excelência de determinados hospitais, tanto no setor público como no privado. Para cá, acorrem pacientes de várias partes do mundo atraídos pelo renome profissional de muitos. Há setores de pesquisa avançada conectados a centros de referência internacionais.
É pertinente, porém, a indagação sobre se o avanço clínico e cirúrgico se faz acompanhar por desenvolvimento ético compatível. Isso significa perguntar sobre a qualidade humana desse grupo técnico indispensável à saúde coletiva. Trata-se de refletir por quê indivíduos egressos de uma formação pautada pela integridade física da espécie acolhem em termos institucionais a regressão de valores humanos. Não há hospital sem hospitalidade ética, não há clínica sem inclinação visceral para a vida.
A questão aberta é que a exacerbação do individualismo de massa sob a manufatura capitalista de vidas supérfluas leva a uma profissionalização elitista em que o ego, inflado como um balão, perde de vista a dimensão social. A universidade teria subestimado a formação de caráter, algo que se adquire. Senão, o que ocorre já seria síndrome da supremacia técnica dos robôs, humanoides sem qualidades. Mas não é nada desprezível a suspeita rasteira de que a tentativa de importar mais médicos pés no chão, cubanos ainda por cima, tenha despertado um narcisismo corporativo afim ao que há de pior na ultradireita. Em suma, mais um surto do brutalismo nacional.
É o que revela a recente eleição no Conselho Federal de Medicina, vencida pelo bloco antiaborto, comprometido com o inútil receituário da cloroquina e da ivermectina durante a pandemia, explicitamente antenado à ultradireita. Há nele quem ainda apoie a violência depredatória na Praça dos Três Poderes.
O desconcerto evoca a narrativa do austríaco Robert Musil, "O Homem sem Qualidades", em que o personagem Ulrich, sem características próprias e indiferente ao mundo, busca um sentido para a vida. Embora do século passado, trata-se de uma construção romanesca atualíssima no século 21, quando as tecnologias da comunicação avançam céleres em eficácia técnica, mas viralizam os antagonismos políticos e o retrocesso de qualidades humanas.
Não se põe em dúvida a competência da maioria dos médicos brasileiros nem a excelência de determinados hospitais, tanto no setor público como no privado. Para cá, acorrem pacientes de várias partes do mundo atraídos pelo renome profissional de muitos. Há setores de pesquisa avançada conectados a centros de referência internacionais.
É pertinente, porém, a indagação sobre se o avanço clínico e cirúrgico se faz acompanhar por desenvolvimento ético compatível. Isso significa perguntar sobre a qualidade humana desse grupo técnico indispensável à saúde coletiva. Trata-se de refletir por quê indivíduos egressos de uma formação pautada pela integridade física da espécie acolhem em termos institucionais a regressão de valores humanos. Não há hospital sem hospitalidade ética, não há clínica sem inclinação visceral para a vida.
A questão aberta é que a exacerbação do individualismo de massa sob a manufatura capitalista de vidas supérfluas leva a uma profissionalização elitista em que o ego, inflado como um balão, perde de vista a dimensão social. A universidade teria subestimado a formação de caráter, algo que se adquire. Senão, o que ocorre já seria síndrome da supremacia técnica dos robôs, humanoides sem qualidades. Mas não é nada desprezível a suspeita rasteira de que a tentativa de importar mais médicos pés no chão, cubanos ainda por cima, tenha despertado um narcisismo corporativo afim ao que há de pior na ultradireita. Em suma, mais um surto do brutalismo nacional.
Onde é a 'Cracolândia'
A primeira vez em que ouvimos falar no vício de crack, aqui no Brasil, foi a propósito de um prefeito de Washington, negro – creio, aliás, o primeiro negro a exercer esse cargo. Escândalo tremendo, muita gente chegou a pensar que seria campanha dos brancos contra o chamado “homem de cor”. Mas o coitado confessou; os jornais tiveram de explicar ao público o que seria esse tal de crack, uma espécie de pasta, cujo ingrediente principal seria a cocaína. Passou o escândalo, como passam todos, e sumiram com o prefeito “craquista” no noticiário.
Mas já agora, infelizmente, ninguém mais no Brasil ignora o que é o crack.
E, pior: já é grande a difusão da droga entre nós, especialmente entre os jovens, em São Paulo, no Rio, e provavelmente na maior parte das grandes cidades do País. Há campanhas organizadas por associações beneficentes, e, claro, um pavor generalizado entre pais e parentes que já contam, em casa, com meninos e meninas consumidores ou pelo menos conhecedores da droga.
De São Paulo, recebo agora uma carta que me comoveu profundamente: uma coisa é a gente encarar um problema, embora grave, a distância; impressiona, revolta, mas não provoca o impacto, o susto daquilo que se vê com os próprios olhos, na casa de amigos.
Trata-se de um rapaz, que conheci garotinho, que sentei no meu colo, que já mostrava então nos olhos vivos uma inteligência precoce. Na carta, contam os pais, desesperados, que o menino, já rapaz agora, se tornou viciado em crack, e, dentro dessa rota, que parece sem retorno, caminha para o desastre final.
Dizem: “Nosso filho, o Junior (lembra-se como você gostava dele?), é hoje um desses menores perdidos pelas ruas do que eles chamam ‘Cracolândia’. Hoje, viciado assumido, já tem os pés danificados, perdeu dentes e traz nas costas as marcas das surras que, comumente, os jovens como ele levam de elementos da polícia, que por desvio de formação, talvez, maculam com violências a imagem da sua corporação. Da última internação que conseguimos para o nosso filho, o resultado foi catastrófico. Recorremos a uma clínica religiosa, que nos parecia capaz de conseguir uma solução. Pagamos R$ 200,00 na entrada e o soubemos de volta às ruas dentro de quatro dias.
Não lhe deram qualquer tipo de medicamento; como estudo, ensino bíblico, quatro horas por dia; e trabalhos de limpeza e cozinha como 'terapia'.
Confesso que não temos mais o que fazer, o que tentar. Recorremos a você, na esperança de que nos dê qualquer luz, que nos guie, neste pavor em que vivemos.”
Transcrevo aqui essa carta patética, mas veraz, levada pela mesma esperança desses amigos. Quem sabe o governo, a sociedade, a imprensa, qualquer pessoa influente ou organização (eles nos falam numa “Associação de Desenvolvimento Solidário”, que já existe em São Paulo, e se dedica ao problema) encontre uma solução. Dizem-me ainda os pais que esses meninos desviados não são só crianças carentes, alguns de classe média, outros de classe alta; trocam a casa dos pais pela rua, vivem de pequenos furtos e acabam dominados pelos traficantes de drogas.
Não serei a primeira nem serei a última a trazer esse assunto à imprensa.
O fato é que alguém tem de descobrir uma solução, antes que se perca, no crack, toda uma geração de jovens brasileiros.
Raquel de Queiroz (O Estado de São Paulo, 15 fev. 1997)
Mas já agora, infelizmente, ninguém mais no Brasil ignora o que é o crack.
E, pior: já é grande a difusão da droga entre nós, especialmente entre os jovens, em São Paulo, no Rio, e provavelmente na maior parte das grandes cidades do País. Há campanhas organizadas por associações beneficentes, e, claro, um pavor generalizado entre pais e parentes que já contam, em casa, com meninos e meninas consumidores ou pelo menos conhecedores da droga.
De São Paulo, recebo agora uma carta que me comoveu profundamente: uma coisa é a gente encarar um problema, embora grave, a distância; impressiona, revolta, mas não provoca o impacto, o susto daquilo que se vê com os próprios olhos, na casa de amigos.
Trata-se de um rapaz, que conheci garotinho, que sentei no meu colo, que já mostrava então nos olhos vivos uma inteligência precoce. Na carta, contam os pais, desesperados, que o menino, já rapaz agora, se tornou viciado em crack, e, dentro dessa rota, que parece sem retorno, caminha para o desastre final.
Dizem: “Nosso filho, o Junior (lembra-se como você gostava dele?), é hoje um desses menores perdidos pelas ruas do que eles chamam ‘Cracolândia’. Hoje, viciado assumido, já tem os pés danificados, perdeu dentes e traz nas costas as marcas das surras que, comumente, os jovens como ele levam de elementos da polícia, que por desvio de formação, talvez, maculam com violências a imagem da sua corporação. Da última internação que conseguimos para o nosso filho, o resultado foi catastrófico. Recorremos a uma clínica religiosa, que nos parecia capaz de conseguir uma solução. Pagamos R$ 200,00 na entrada e o soubemos de volta às ruas dentro de quatro dias.
Não lhe deram qualquer tipo de medicamento; como estudo, ensino bíblico, quatro horas por dia; e trabalhos de limpeza e cozinha como 'terapia'.
Confesso que não temos mais o que fazer, o que tentar. Recorremos a você, na esperança de que nos dê qualquer luz, que nos guie, neste pavor em que vivemos.”
Transcrevo aqui essa carta patética, mas veraz, levada pela mesma esperança desses amigos. Quem sabe o governo, a sociedade, a imprensa, qualquer pessoa influente ou organização (eles nos falam numa “Associação de Desenvolvimento Solidário”, que já existe em São Paulo, e se dedica ao problema) encontre uma solução. Dizem-me ainda os pais que esses meninos desviados não são só crianças carentes, alguns de classe média, outros de classe alta; trocam a casa dos pais pela rua, vivem de pequenos furtos e acabam dominados pelos traficantes de drogas.
Não serei a primeira nem serei a última a trazer esse assunto à imprensa.
O fato é que alguém tem de descobrir uma solução, antes que se perca, no crack, toda uma geração de jovens brasileiros.
Raquel de Queiroz (O Estado de São Paulo, 15 fev. 1997)
'Nós não somos iguais e nunca seremos'
“Nós não somos iguais e nunca seremos”. Ouvi a frase da boca do Chef Nuno Diniz, numa entrevista a Joana Barrios. Diniz di-la com firmeza a propósito do episódio em que um aluno de cozinha ousou tratá-lo por Nuno em vez de “Chef”. O tom altivo, áspero, seguro, que usa para afirmar a impossibilidade de ultrapassar a diferença fez-me pensar. Nos últimos 50 anos, vivemos numa democracia baseada numa ideia de igualdade formal perante a lei, que até agora ninguém parecia disposto a pôr em causa de maneira explícita, mesmo que as diferenças materiais tenham sido sempre tão grandes, que esta “igualdade” não passou nunca de uma abstração, que serve algumas boas consciências.
Mas por que me arrepiou tanto, então, a frase de Nuno Diniz, quando sei há muito que a igualdade é mais dita que real e o fosso entre os que estão por cima e os que ficaram por baixo não para de aumentar? Talvez porque Diniz diz de peito feito e voz límpida o que ao longo da minha vida ouvi sempre (e foram muitas vezes) em surdina.
Demos, então, outra vez a voz ao Chef para perceber de onde vem e como entende a diferença que lhe parece natural, incontestada e inultrapassável. “Eu pertenço a um meio social que já não se usa muito. (…) De cada vez que uma filha se casava, ia para a lua de mel logo com a criada. Portanto, havia a filha de uma das criadas da minha avó, que era despachada com a menina que casava. Isto quer dizer que eu até ter 22 ou 23 anos tive uma criada em casa, que era a Celeste. Para as pessoas com complexos, que me estejam a ouvir, ‘criada’ não é um termo depreciativo, o nome ‘criada’ é porque era criada connosco. E, portanto, era uma pessoa da família, comia connosco à mesa”, explica-nos Nuno Diniz.
A candura com que Diniz fala de uma pessoa que é dada a outra como um objeto e impossibilitada de qualquer arbítrio sobre si mesma mostra uma naturalização da desigualdade que parece incompreensível para alguém que acredite num sistema democrático. Há aqui uma ordem natural que confere direitos e deveres à nascença: há as que nascem ‘criadas’ e os que se dispõem a criá-las e até as deixam comer à mesa.
Nuno Diniz só se engana quando diz pertencer “a um meio social que já não se usa muito”. Entende-se-lhe a nostalgia nas palavras, perante um tempo em que não seria sequer preciso explicar o que lhe parece óbvio às “pessoas com complexos”.
Mas a verdade é que o sentimento de superioridade natural que ostenta usa-se muito. Usa-se cada vez mais. Vem disfarçado de “meritocracia” (que o que não se usa tanto é a “aristocracia”). Mas essa é só mais uma forma de distinguir entre os que à nascença têm quase tudo aquilo de que precisam para vingar na vida e os que só por um acaso da sorte estatisticamente muito irrelevante lá chegarão.
Agarrados à ideia de que se se esforçarem muito, conseguirão ter sucesso, os de baixo já não se vêm como as “criadas” que são dadas às filhas casadoiras. Mas os de cima ficam libertos para se assumirem como os vencedores naturais, mesmo que as condições de partida lhes tenham dado uma vantagem praticamente insuperável.
É neste contexto que a ostentação do luxo passou a ser uma espécie de pornografia social consumida em larga escala. O luxo é um objeto de desejo para quem nunca o terá, uma afirmação grotesca de superioridade para quem o alcança. É exibido sem pudor, precisamente porque se criou a ficção de que é acessível a quem se esforce. É o “mérito” que o torna aceitável.
As vidas medem-se, mais do que nunca, pelo seu peso em ouro. Não acreditam? Há uma matemática simples de fazer. Entre 2013 e 2023, mais de 26 mil pessoas perderam a vida a tentar cruzar o Mediterrâneo. Vinham em botes precários, fugidas da guerra, da fome e da miséria. Prestamos-lhes pouca atenção e, quando o fazemos, é para as temer como invasores. Mas seguimos atentamente e com ansiedade as buscas pelas cinco pessoas que naufragaram no submarino Titan, no ano passado, e cujas fortunas somadas equivaliam a 2,6 mil milhões de dólares (mais do que o PIB de Cabo Verde). E vemos agora com detalhe as vidas dos seis milionários que naufragaram num iate de luxo ao largo da Sicília.
Nuno Diniz tem razão. “Nós não somos iguais”. Só espero que um dia possamos vir a sê-lo. E essa é a diferença que nos separa.
Margarida Davim
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