terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Política diabólica

O demônio irrompe no ser humano não apenas de maneira velada ou encanado em criminosos e psicopatas. Muitas vezes e em alta escala, o diabo faz política e dizima povos inteiros
Hemann Hesse

Seis números que mostram um mundo cada vez mais desigual

“A desigualdade económica está fora de controlo”. É o diagnóstico feito pela Oxfam International, uma confederação de organizações não-governamentais que lutam contra a pobreza. E apesar das diferenças entre os super-ricos e o resto da população serem cada vez maiores, a Oxfam teme que a desigualdade continue a crescer.

“Sem medidas decisivas as coisas ficarão bem piores. O envelhecimento das populações, os cortes na despesa pública e as alterações climáticas ameaçam exacerbar ainda mais a desigualdade económica e de género e alimentar uma crise mais aguda para os que precisam de cuidados e para os que cuidam”, refere a entidade num relatório divulgado esta segunda-feira.

A Oxfam afirma que “enquanto a elite dos ricos e poderosos pode comprar a sua saída do pior destas crises, os pobres e sem poder não o conseguirão fazer”. E pede aos governos que “tomem medidas para construir uma nova economia, mais humana, que dê resposta a todos e que valorize mais a prestação de cuidados e o bem-estar de todas as pessoas do que os lucros e a riqueza”.


Todos os anos esta entidade costuma divulgar um estudo aquando da realização do Fórum Económico Mundial, em Davos, de forma a tentar colocar o problema da pobreza e da distribuição injusta de riqueza na agenda dos líderes políticos e económicos. No relatório deste ano, a Oxfam destaca alguns números para demonstrar que existe uma “crise de desigualdade” que precisa de ser resolvida. A entidade sugere a criação de um imposto adicional sobre as grandes fortunas para financiar mais emprego e serviços essenciais para a população.

2153

Número de multimilionários (com património acima de mil milhões de dólares) no mundo em 2019. Detêm mais riqueza que 4,6 mil milhões de pessoas (60% da população mundial).

22

A riqueza combinada dos 22 homens mais ricos do mundo é superior à de todas as mulheres dos continente africano.

100 dólares

Se todos se sentassem sobre o valor da sua riqueza empilhadas em notas de 100 dólares, a maior parte da população mundial estaria sentada ao nível do chão. As pessoas de classe média dos países mais ricos conseguiram estar na altura de uma cadeira. Mas os mais ricos do mundo estaria sentados no espaço sideral.

10 mil dólares

A Oxfam salienta que poupar dez mil dólares por dia desde a construção das Grandes Pirâmides serviriam apenas para ter um quinto da fortuna média dos cinco mais ricos do mundo.

10,8 biliões de dólares

Um dos problemas salientados pela Oxfam no relatório é o do trabalho não remunerado que envolve as tarefas diárias de cuidar de outras pessoas, cozinhar, limpar e encontrar água e lenha, que na sua grande maioria são desempenhadas por mulheres. A entidade estima o valor monetário destes trabalhos prestados por mulheres acima de 15 anos em 10,8 biliões (milhões de milhões) de dólares por ano. É o triplo do valor estimado para o setor da tecnologia a nível mundial.

0,5%

A Oxfam estima que um imposto adicional de 0,5% sobre a riqueza dos 1% mais ricos seria suficiente para angariar receita que financiasse o investimento necessário a criar 117 milhões de empresa nas áreas da educação, saúde e da assistência a idosos e a outros setores de forma a eliminar as falhas neste tipo de cuidados.

Estudo da Oxfam: 'É urgente encontrar soluções novas para o cuidado de crianças e idosos'

O ponto central do relatório da ONG britânica Oxfam é o trabalho de cuidado a dependentes que não é remunerado. O estudo, que também estima a concentração de riqueza no mundo, revela que esse tipo de ocupação é exercido principalmente pelas mulheres, em especial as mais pobres. São elas que cuidam das crianças e dos mais velhos. É urgente encontrar soluções novas.

Se as horas trabalhadas por elas em casa fossem remuneradas, seriam injetados US$ 10,8 trilhões na economia mundial a cada ano. Esse seria a medida econômica do problema. O assunto também é importante no debate sobre a desigualdade, que a Oxfam considera como fora de controle, em seu relatório.


Faltam políticas públicas. Uma criança deveria ter vaga em creche. Mas o normal hoje é que as meninas cuidem das crianças e dos mais velhos da família enquanto os homens vão para o mercado de trabalho. Faz parte dessa divisão errada dos papeis familiares. É uma visão envelhecida. Os cuidados têm que ser compartilhados dentro dos lares e todos, homens e mulheres, precisam ter a oportunidade de buscar o mercado de trabalho.

As soluções precisam ser modernas. É assim que as economias e as sociedades prosperam. O risco desse modelo é que a mulher passe parte da vida produtiva cuidando dos filhos em casa e outra parte dedicada aos cuidados dos mais velhos.

Remunerar a mulher pelo trabalho doméstico não é uma boa solução. Isso congela a ideia de que o cuidado dos dependentes é uma obrigação da mulher. É um equívoco. A política pública para mudar essa situação é, por exemplo, ter mais creches especialmente em lugares pobres. Uma mãe que sai para trabalhar e deixa a filha mais velha cuidando da mais nova é a superexploração da mulher enquanto ela ainda é uma menina.

O Brasil precisa pensar também em como será a sua organização com o aumento do número de idosos. O estado pode oferecer instituições de longa permanência para os mais velhos, com tratamento mais humano.

As soluções têm que ir no sentido de modernizar as sociedades. Nos países nórdicos, o auxílio-maternidade não existe. É um benefício para o cuidado com a criança, dividido entre o pai, a mãe ou até outra pessoa da família, que passa um período de meses cuidando do dependente. Deixar o auxílio exclusivo para a mãe consagraria o princípio de que só a mãe vai cuidar. Relações intensas com o pai e a mãe formam seres humanos melhores, que entendem os diferentes papeis na sociedade.
Há muito o que ser feito na redistribuição do trabalho doméstico.

‘Desigualdade global está fora de controle’

O Fórum Econômico Mundial começa sua 50ª reunião anual, no pacato resort alpino de Davos, tentando colocar em prática uma cartilha lançada meio século atrás por seu fundador, Klaus Schwab, para guiar as práticas corporativas. Agora, diz o alemão de 81 anos e sotaque carregado, a hora de colher uma reforma do capitalismo finalmente chegou. Tanto que ele lançou o “Manifesto de Davos 2020” para atualizar conceitos pensados originalmente em 1971.

Nunca foi tão urgente, segundo Schwab, dar significado concreto à ideia de um “capitalismo das partes interessadas” (stakeholder capitalism) no lugar de outros dois modelos em voga nas últimas décadas. O “capitalismo de acionistas” teve seu momento de esplendor enquanto centenas de milhões de pessoas prosperavam, tinham acesso a bens de consumo inéditos, empresas abriam novos mercados e empregos eram criados.


Só que esse modelo não é mais sustentável, avalia o fundador do Fórum, que dá as razões. “Primeiro veio o efeito Greta Thunberg: ela nos recordou que o sistema econômico atual constitui uma traição às gerações futura pelo dano ambiental que provoca. Em segundo lugar, os ‘millenials’ e a ‘geração Z’ já não querem trabalhar, investir ou comprar em empresas que não atuem com base em valores mais amplos. Por último, cada vez mais os executivos e investidores compreendem que o sucesso deles no longo prazo também depende do êxito de seus clientes, empregados e fornecedores”, afirma Schwab.Já o “capitalismo de Estado” pode ter colhido bons resultados e cumpriu um papel no desenvolvimento de alguns países, sobretudo na Ásia, mas precisa evoluir para não se corromper, segundo ele.

O novo manifesto estabelece premissas: pagamento justo de impostos, tolerância zero com a corrupção, proteção do meio ambiente para futuras gerações, estímulo à qualificação dos empregados, uso ético das informações privadas na era digital, vigilância dos direitos humanos em toda a cadeia de fornecedores, remuneração responsável dos executivos. Em um ensaio de construção desse novo capitalismo, dezenas de empresários e banqueiros que estão subindo a “montanha mágica” de Davos receberam, no fim da semana passada, carta assinada por Schwab - tendo como coautores os presidentes do Bank of America e da gigante holandesa Royal DSM - com uma proposta de compromisso: que suas companhias zerem as emissões líquidas de gases do efeito estufa, tornando-se “carbono neutras”, até 2050.As questões ambientais, inclusive, estão transformando a atual edição no que muitos chamam de “Davos verde”. Serão 51 painéis de discussão sobre ecologia, desenvolvimento sustentável e mudanças climáticas - contra 50 de geopolítica e 27 específicas de economia. Uma iniciativa coordenada pelo Fórum promete o plantio de um trilhão de árvores, até 2030, contra o aquecimento global.

Sem nenhum representante do governo brasileiro, uma sessão na quarta-feira intitulada “Assegurando um Futuro Sustentável para a Amazônia” terá no palco o climatologista Carlos Nobre, crítico das políticas ambientais de Jair Bolsonaro. O ex-vice americano Al Gore também integra essa discussão.