A ideia do internacionalismo vem da esquerda. Apareceu no Manifesto Comunista, um pequeno livro assinado por dois jovens autores, Karl Marx e Friedrich Engels. Jovens de verdade: em fevereiro de 1848, quando a brochura incendiária foi lançada, Marx tinha 29 anos de idade e Engels, 28. O bordão que eles inventaram, “Proletários do mundo, uni-vos”, sobreviveu a ambos e demarcou o conceito.
No século 20, uma das incompatibilidades fatais entre Josef Stalin e Leon Trotsky passava exatamente por aí. O primeiro, já entronizado como tirano da União Soviética, abraçou (feito urso) a tese de que era possível erigir o socialismo num só país. O segundo, pulando de exílio em exílio, afirmava que a revolução socialista teria de ser internacional – ou não seria nem revolução, nem socialista.
Stalin levou a melhor e se firmou numa ascensão mortífera. Em sua folha corrida constam milhões de cadáveres, incluindo os que foram tragados pela fome-terror na Ucrânia, durante o Holodomor, em 1932 e 1933. No mesmo período, por meio dos fraudulentos “processos de Moscou”, o “guia genial dos povos” dizimou vários de seus camaradas que, em 1917, faziam parte do Comitê Central do Partido Bolchevique. Pouco depois, em 1940, enviou o agente secreto Ramón Mercader para assassinar mais um deles, Leon Trotsky. Em Coyoacán, na Cidade do México, Mercader usou uma picareta de alpinista para abrir o crânio de sua vítima e, em 1961, recebeu a medalha de Herói da União Soviética. Prestou serviços ao stalinismo em terras distantes, mas nunca foi internacionalista – matou um.
Entre o bem e o mal, o movimento operário sempre se vinculou a organizações supranacionais. Umas eram melhores, outras eram vis. A Segunda Internacional, ligada à social-democracia, inspirou a criação do PSDB no Brasil. A Quarta Internacional, de Leon Trotsky, fragmentou-se em cisões sequenciais até se estilhaçar em pedacinhos praticamente invisíveis. A Terceira Internacional, comandada por Moscou, limitava-se a transmitir as ordens do Kremlin para suas filiais mundo afora.
Agora já era. O sonho do internacionalismo solidário mergulhou em viés de baixa. Às vezes é um hino na vitrola – ou num baile da saudade. Outras vezes, é sucata ideológica. Nos nossos dias, veja você, a notícia mais momentosa é que a extrema direita nacionalista, cobrindo de sombras pesadas o palco da política, quer ser internacional.
Sim, é uma contradição em termos. Forças xenófobas – dessas que abominam imigrantes, arrostam a ONU, enxovalham a OMS, esnobam o Mercosul, bajulam Elon Musk e desdenham dos esforços para conter o aquecimento global – vêm se dedicando a promover encontros internacionais. Encontros para quê? Ora, para celebrar a desunião e exacerbar o ódio contra qualquer forma de entendimento, de acordo, de encontro internacional. Se há algo que, por definição, não pode ser internacionalista, de jeito nenhum, é o nacionalismo, mas o nacionalismo parece que não foi avisado.
Marx e Engels diziam que o movimento operário tinha de ser internacionalista porque as relações de produção já tinham sido internacionalizadas pelo capital. Portanto, se quisessem virar o jogo, os partidos revolucionários não poderiam se limitar aos espaços nacionais. Nesse ponto, foram cartesianos. Você pode até discordar dos dois rapazes, mas não tem como não reconhecer a lógica do raciocínio.
Já o nacionalismo internacionalista é ilógico. Seus expoentes proclamam, entre outras aporias involuntárias, que são contra a globalização. Será que eles não viram que a globalização é uma consequência da ordem econômica que juram defender em armas? Não viram que eles mesmos são um sintoma reverso da globalização? Atacam o “globalismo” – a que atribuem a culpa pelas migrações e pelo dinheiro digital, que dá a volta no planeta em menos de um segundo –, sem notar que aqueles a quem xingam de “globalistas”, longe de serem os culpados, são os que mais denunciam os efeitos perversos da globalização.
Não entenderam a si mesmos e abominam quem entendeu. Em transe anticívico, em ritmo de embalo sísmico, acalentam fantasias globalitárias. Talvez desejem um futuro em que as nações, fortificadas, armadas e enclausuradas em si mesmas, vão competir umas com as outras até o fim dos tempos. Talvez acreditem que, da guerra de todos os nacionalismos contra todos os nacionalismos, o paraíso brotará como um cogumelo.
Para complicar o tabuleiro, uma parcela do Brasil embarcou nesse delírio tanático, entre a nulidade mental e a opulência performática. Sem surpresas. Temos convivido há décadas com fenômenos incongruentes que transitam por aí como se fossem normais. Tome-se, por exemplo, o adjetivo “progressista”, que denomina um pessoal convertido às pautas mais conservadoras. Tome-se outro adjetivo, “republicano”, que batiza um segmento de adoradores de igrejas. Existem ainda os liberais iliberais. Nesse meio, os nacionalistas internacionalistas são mais do mesmo. Será que eles sabem que o internacionalismo é de esquerda? Provavelmente não. Eles nunca souberam que o nazismo era (e é) de direita.
O que faz de nós brasileiros é a implacável capacidade de banalizar barbaridades. O esporte nacional neste país é justificar com voz mansa e sorriso no rosto a arma na cabeça de filhos de diplomatas, desde que negros, por óbvio, a legítima defesa do tiro de fuzil nas costas de João Pedro, de 14 anos, e, mais recentemente, o racismo da extrema direita europeia. Dos criadores do bolsonarismo moderado —movimento cujo slogan era uma arma executando opositores— fomos presenteados com o oxímoro do extremista moderado, desde que seja branco, por óbvio.
Por trás dos debates semânticos sobre o que é a extrema direita e das nuances perdidas na tradução das adjetivações ultra, extrema e radical, está a tentativa de normalizar o extremista. Na forma como foi transplantado ao Brasil, o debate é menos sobre as graduações do extremismo de Le Pen e cia. na França e mais sobre como ficar em paz com a possibilidade de que a única via capaz de barrar forças progressistas seja, a curto prazo, versões higienizadas do neofascismo.
Conceitos não são realidades objetivas; partem de uma posição política. Conceitos são relacionais: faz sentido falar em extrema direita em relação ao espectro francês e ao europeu. Na França, o Conselho de Estado rejeitou, em março deste ano, questionamento do partido de Le Pen após ser enquadrado como extrema direita. No Parlamento Europeu, o partido de Marine Le Pen lidera a nova coalizão de direita no extremo do espectro político europeu, ao lado de Orbán.
Conceitos são históricos. Não é porque Le Pen desinfetou o discurso, distanciando-se de antigos parceiros neonazistas, que o seu programa político-partidário não esteja ainda fincado na ideia de nação em bases étnico-raciais. Não é porque Le Pen suavizou o antissemitismo por razões estratégicas que o seu racismo anti-imigrante e antinegro não seja igualmente definidor de seu extremismo. A diferença está nas costas de quem as botas do extremismo vão pisar e quem vai lambê-las.
Durante três anos de Bolsonaro, esta coluna o chamou de corruptor. De corruptor, não de corrupto. Embora fosse evidente sua prática de comprar o Exército para costurar o regime de força que viria no segundo mandato, não se sabia que roubasse além da prática familiar da rachadinha, que lhe rendeu mais de 50 imóveis. Só quase no quarto ano percebi o óbvio: não existe corruptor sem corrupção. Bolsonaro não estava usando seu dinheiro para subornar os militares. Estava usando dinheiro do Estado, e isso é corrupção.
Alguns dirão que, diante das facilidades da Presidência, Bolsonaro viu a oportunidade de meter a mão, como no caso das joias. É a velha ideia de que a ocasião faz o ladrão. Mas Machado de Assis, em seu romance "Esaú e Jacó" (1904), já corrigiu esse equívoco: "A ocasião faz o furto. O ladrão já nasce feito". A prova é que, manipulando os bilhões do Orçamento à sua vontade, Bolsonaro foi apanhado pungando objetos que poderia muito bem comprar, e até com dinheiro vivo, como de praxe nos Bolsonaros.
Bolsonaro reduziu o Palácio da Alvorada a uma caverna de Ali Babá, com suas arcas de relógios, brincos, colares, anéis, braceletes, pingentes, canetas e abotoaduras de ouro e diamantes, e fez de seus auxiliares, civis e militares, a horda dos 40 ladrões —pelo menos 11 até agora. Em seguida, transformou o Alvorada num camelódromo, para vender esses bens que não lhe pertenciam. Vendidos, tiveram de ser vergonhosamente recomprados quando a Justiça deu por falta deles. Raro um contrabandista tão desastrado.
O Houaiss dá várias definições para o ato de se apossar do que é alheio: afanar, agafanhar, assaltar, defraldar, desfalcar, despojar, empalmar, furtar, gatunar, larapiar, pilhar, piratear, rapinar, subtrair, usurpar —em suma, roubar. Há vários nomes para quem se dedica a essas práticas.
Mas há um bem simples e que resume Bolsonaro: ladrão.
Não há dúvidas de que a inteligência artificial (IA) é um setor em pleno desenvolvimento. Graças, em parte, ao entusiasmo em relação a novas ferramentas como o ChatGPT, concebido pela empresa americana OpenAI, que é financiada pela Microsoft e cofundada pelo bilionário Elon Musk.
O ChatGPT tem a capacidade de conversar, enviar mensagens de texto e compor poemas e ensaios de uma forma surpreendentemente humana. E isso desencadeou uma corrida entre gigantes da tecnologia para lançar no mercado produtos semelhantes e, possivelmente, mais sofisticados.
Com isso, os investimentos em IA também crescem rapidamente. Hoje, estima-se que esse mercado esteja avaliado em 142,3 bilhões de dólares (129,6 bilhões de euros). A expectativa é de que cresça para quase 2 trilhões até 2030.
Os sistemas de IA já estão presentes na vida cotidiana de várias maneiras. Ajudam, por exemplo, pessoas, governos ou empresas a trabalhar com mais eficiência e a tomar decisões baseadas em dados. Mas também têm suas desvantagens.
Para que os modelos de IA possam realizar suas tarefas, eles precisam processar montanhas de dados. Ou melhor: ser "treinados" para isso. Para aprender a reconhecer a imagem de um carro, um algoritmo precisa examinar milhões de imagens de carros. No caso do ChatGPT, ele é abastecido com vastos bancos de dados de texto da internet para aprender a lidar com a linguagem humana.
O desenvolvimento disso ocorre em datacenters (salas de servidores), que demandam uma enorme capacidade computacional e consomem muita energia.
"A infraestrutura conjunta das centrais de computadores e das redes de transferência de dados é responsável por 2% a 4% das emissões globais de CO2 em todo o mundo [número próximo ao do setor da aviação]. Não é apenas a IA, mas ela é uma grande parte do problema", diz Anne Mollen, pesquisadora da organização não governamental Algorithmwatch, com sede em Berlim.
Em um estudo de 2019, pesquisadores da Universidade de Massachusetts, nos EUA, descobriram que o treinamento de um modelo de IA comum de grande porte pode emitir até 284 toneladas equivalentes a CO2 – quase cinco vezes as emissões de um carro durante toda a sua vida útil, incluindo a fabricação.
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"Quando li esses dados pela primeira vez, fiquei realmente chocada", diz Benedetta Brevini, professora associada de economia política da comunicação na Universidade de Sydney, Austrália, e autora do livro Is AI good for the planet? (A IA é boa para o planeta?).
"Se você pegar um avião de Londres para Nova York, as emissões de carbono serão de 986 quilos. Para treinar um algoritmo, no entanto, emitimos 284 toneladas. Por que não conversamos sobre como podemos reduzir essa pegada de carbono?", questiona Brevini.
Ainda assim, a estimativa baseada no estudo feito em Massachusetts se referia a um modelo de IA particularmente intensivo em termos de gastos de energia. Modelos menores consomem menos, podendo ser executados em um laptop. Mas os modelos que trabalham com a chamada deep learning (aprendizagem profunda), como algoritmos que fazem a curadoria de conteúdo de mídia social ou ChatGPT, exigem uma quantidade considerável de poder de processamento.
Além da "fase de treinamento" da tecnologia, outras emissões ocorrem quando o modelo é aplicado no mundo real, o que pode acontecer bilhões de vezes por dia – por exemplo, toda vez que um tradutor online traduz uma palavra ou um chatbot responde a uma pergunta. De acordo com Mollen, essa fase pode ser responsável por até 90% das emissões no ciclo de vida de uma IA.
Como a pegada de carbono da IA pode ser reduzida?
Todas as questões ambientais devem ser levadas em conta desde o início, inclusive na fase de projeto e treinamento do algoritmo.
"Temos que levar em conta toda a cadeia de produção e todos os problemas ambientais associados, especialmente o consumo de energia e as emissões, mas também a toxicidade dos materiais e o lixo eletrônico", argumenta Brevini.
Em vez de desenvolver modelos de IA cada vez maiores, como aponta a tendência atual, Mollen sugere que as empresas usem modelos menores com conjuntos de dados reduzidos e garantam que a IA seja treinada no hardware mais eficiente disponível.
O uso de datacenters em regiões que dependem de energia renovável e não requerem muita água para resfriamento também pode reduzir a pegada de carbono da IA.
Enormes instalações nos Estados Unidos ou na Austrália, por exemplo, onde os combustíveis fósseis compõem grande parte da mescla de energia, produzem mais emissões do que as da Islândia, que usa muita energia geotérmica, e as temperaturas externas mais baixas facilitam o resfriamento dos servidores.
Mollen ressalta que as gigantes da tecnologia têm um histórico muito bom no que diz respeito ao uso de energia renovável em suas operações. A Google, por exemplo, afirma ter uma pegada de carbono zero graças aos investimentos em medidas de compensação e tem como objetivo operar com energia livre de CO2 até 2030. A Microsoft se comprometeu a ser neutra em termos de CO2 até 2030 por meio do uso de tecnologias como a captura e o armazenamento de carbono. E o Grupo Meta planeja alcançar uma pegada líquida zero em toda a sua cadeia de valor até 2030.
A energia, porém, não é o único aspecto em relação ao impacto ambiental da IA. As imensas quantidades de água que os datacenters precisam para evitar o superaquecimento dos servidores causam grandes problemas em regiões com escassez de água, como em Santiago, no Chile, onde a presença do datacenter da Google "agrava a seca, e as comunidades locais estão protestando contra o centro e a construção de novos datacenters", diz Mollen.
Mesmo que as grandes empresas de tecnologia reduzam o consumo de energia de sua IA, há outro problema. E isso pode ser ainda mais prejudicial ao meio ambiente, destaca David Rolnick, professor assistente do Departamento de Ciência da Computação da Universidade McGill, no Canadá, e cofundador da organização Climate Change AI. Como exemplo, ele cita o uso de algoritmos na publicidade: "Eles são intencionalmente projetados para aumentar o consumo, o que certamente tem um custo significativo para o clima."
Rolnick também ressalta um relatório da consultoria de tecnologia Accenture e do Fórum Econômico Mundial, que prevê que a IA e a análise avançada ajudarão o setor de petróleo e gás a lucrar cerca de 425 bilhões de dólares até 2025.
O Greenpeace, por outro lado, tem criticado duramente os contratos de IA firmados entre empresas de combustíveis fósseis e Amazon, Microsoft e Google. Em um relatório, a organização ambiental disse que a Shell, a BP e a ExxonMobil usariam ferramentas de IA para expandir suas operações, cortar custos e, em alguns casos, aumentar a produção. Esses contratos "prejudicariam significativamente os compromissos climáticos assumidos" pelas gigantes da tecnologia.
Desde então, a Google declarou que não desenvolverá mais ferramentas de IA personalizadas para ajudar empresas a extrair combustíveis fósseis.
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É provável que o papel da IA se torne ainda mais significativo no futuro. E esse é outro motivo pelo qual Rolnick acredita que seja necessária mais regulamentação para garantir que o desenvolvimento seja sustentável e que não dificulte o cumprimento das metas de emissões de gases de efeito estufa.
"É uma questão de priorizar, intervir cedo e moldar as decisões que serão tomadas", diz ele.
Na União Europeia (UE), legisladores trabalham há dois anos em uma lei que tende a ser um marco na área. A IA deve ser regulamentada, e os respectivos riscos dos diversos aplicativos devem sofrer classificações. Até o momento, porém, ainda não está claro se as preocupações ambientais também serão levadas em conta no projeto de lei.
Enquanto isso, outros governos também estão trabalhando para regulamentar o uso da IA. Por um lado, para alavancar a inovação no setor e colher os benefícios da tecnologia. Por outro, para evitar possíveis ameaças e proteger seus cidadãos.
Natalie Müller
Toda essa polêmica aberta pelos políticos, em tempos pré-eleitorais, sobre a velada intenção de privatizar as praias brasileiras, espaço de descanso, diversão e lazer de quase 100 milhões de brasileiros, provoca uma boa mobilização. Faz-me lembrar do esquecido artista plástico Ricardo Saunders, que desencadeou, em Florianópolis, uma campanha, de denúncia contra a apropriação particular de quase sessenta praias da Ilha. Foram ocupadas pelas imobiliárias, entre 1960 e 1970, entusiasmadas com a enorme atração que exerciam sobre os argentinos. Em São Paulo já surgiam os primeiros condomínios privados.
Saunders, de origem paraense, morava em Brasília, mas casara-se com a pintora catarinense, Vera Sabino, e vivia agora em Florianópolis. Era encantado com a paisagem da Ilha. Durante três anos caminhou solitário pelo seu entorno, carregando cavaletes, tintas e pincéis, tentando recompor, em telas, a paisagem original daquelas belíssimas praias, protegidas como terrenos de Marinha. Seus quadros desapareceram rapidamente.
Os incorporadores imobiliários e empresas de engenharia, que sempre financiavam campanhas políticas, direcionavam recursos a segmentos e candidatos locais que melhor se acomodavam aos seus interesses pouco explícitos, e que chegavam à população fantasiados pela publicidade.
Isso traz à memória o nome de Ricardo Saunders. Ninguém se lembra dele em Belém, em Brasília, no Rio de Janeiro e São Paulo, onde esteve também, em Florianópolis, Goiânia, finalmente, Pirenópolis, onde morreu, aos 52 anos, por volta de 1998. Foi enterrado, sem qualquer registro especial, quase como um anônimo.
Curioso, habilidoso e criativo desenhista, tinha sangue índio misturado com o de inglês. Sua mãe era uma missionária que desembarcara na Amazônia, na baia de Guajará, junto com outros evangelistas britânicos. Nas suas visitas às comunidades indígenas, terminou passando a viver com um caboclo amazonense, seu guia, que vivia da extração da castanha e do látex. O prolífico casal gerou três a quatro filhos, entre eles o Ricardo, um menino esperto e virtuoso.
Desde criança, Saunders ouvia as histórias contadas pelos pais. Nascida em Southhampton, de onde partiam os navios ingleses para o mundo, ela falava da Inglaterra. O pai, sobre os e crenças da floresta amazônica.
Menino ainda, aquelas lendas inspirou-o a brincar de fazer máscaras e esculturas de madeira e cascas de coco, com expressões meio escatológicas, que vendia pelas ruas de Belém. Havia terminado o curso secundário, e ainda não sabia o que fazer.
Certo dia, foi atraído, casualmente, por uma palestra de Darcy Ribeiro, ao entrar, no cinema Olympia, em Belém. Na tentativa de atrair estudantes para a Universidade de Brasília, Darcy e Anísio Teixeira, viajavam pelo País, falando sobre a nova Universidade: "Pública, livre, autônoma, laica e gratuita!”. Cursos superiores no Brasil eram quase todos privados e pagos. Por onde passava, Darcy fazia um chamamento aos jovens: "Vão para Brasília! Na UnB tem mais vagas do que candidato". Além disso, tem alojamento e restaurante estudantil.
Saunders despertou, e resolveu perguntar a Darcy se na UnB tinha lugar para ele. Já reitor, Darcy respondeu afirmativamente. Ele arranjou um dinheirinho, tomou o ônibus que já fazia o percurso de Belém a Brasília e, uma semana depois desembarcava no campus, carregando algumas tralhas. duas calças de brim e três batas com desenhos do grafismo marajoara. Empolgou-se, de imediato, com aquele movimento de obras e de jovens de todo o Brasil que chegavam ali. Instalou-se no barracão do Instituto de Artes, e logo fez amigos: Marcos Ribas, da Comunicação, e Raquel...., das Artes. Vez por outra pintavam uma parede por ali e, eventualmente, deixavam sua marca em muradas mais expostas do Plano Piloto. Teriam sido eles, os primeiros grafiteiros de Brasília.
Ganhou uma sala no ICA, mas não tinha sequer matrícula regular. Ali, ele o Marquinhos e a Raquel, desafiados por uma máquina de filmar que ninguém usava, começaram a produzir desenhos em quadrinhos, a partir de grafites, traçados sobre folhas de acetado e celofane barato, apagados, após serem filmados, para gravar novas histórias em quadrinhos, que sumiram no meio daquelas invasões policiais no campus.
Seus desenhos grafitados tinham um estilo lúdico, debochado e, ao mesmo tempo, originalíssimos. Foi dele a primeira ideia do "Eixão do Lazer", em Brasília, que consistia em fechar o trânsito de automóveis aos domingos e feriados, destinando-o para o lazer das famílias que habitavam os prédios aos lados. Ali, ele fazia desenhos lúdicos para crianças.
Achava Brasília propícia para bicicleta. Chegou a ter uma. E andava pela cidade procurando paredes nuas para pintar grandes painéis, mas não tinha vocação para a clandestinidade. As paredes internas do Shoping Conic eram suas preferidas imaginárias. Além de proibida, a grafitagem era vigiada pelos defensores do projeto modernista (limpo) da Capital. Até tentou, mas foi pego, e teve de desmanchar tudo com as próprias mãos.
Os grafite brasiliense que veio, em seguida, terminou liberado, após os prédios da avenida W-3 amanheceram um dia todos grafitados, sem que a polícia descobrisse os autores. Separado da mulher, Ricardo Saunders trocou Brasília por Pirenópolis (Go). A Florianópolis nunca mais voltou depois que tomou conhecimento da inutilidade dos seus protestos: o ensaio das imobiliárias tornara-se realidade. Os condomínios praianos privados terminaram espalhados pela costa brasileira. Agora querem mais.
Se a generalidade dos trabalhadores de empresas privadas tivesse níveis de desempenho semelhantes ao de grande parte dos atuais governantes, seriam todos despedidos por justa causa. E saíam sem cartas de referência.
[Antes de mais, um aviso à navegação: estou a generalizar! E, como em todas as generalizações, haverá quem não cabe nesta incompetência que aponto aqui. Mas é isso que é uma generalização. Portanto, sigamos]
Em França, o partido União Nacional (RN), de Marinne Le Pen, já canta vitória na primeira volta das eleições – à hora que lhe escrevo, as projeções dão conta de que o RB garantiu 34% dos votos, com a coligação de esquerda, a Nova Frente Popular (NFP), a garantir 28,1% e o Movimento de apoio a Macron a ficar-se pelos 20,3%. É uma vitória clara dos movimentos de extrema-direita.
Isto no mesmo fim-de-semana em que Vikton Orban anunciou a criação de um novo grupo de direita radical no Parlamento Europeu, chamado Patriotas pela Europa. Atualmente, os líderes da Hungria, Chéquia e Áustria estão juntos nesta ideia – são precisos mais quatro partidos para que a ideia se concretize.
Em Portugal, André Ventura apelou à mobilização de todas as forças de segurança para que, na próxima quarta-feira, dia 3 de julho, compareçam no parlamento para apoiar o seu partido, que vai apresentar um conjunto de projetos relacionados com o subsídio de risco.
No Brasil, atualmente sob a presidência de Lula de Silva, discute-se a criminalização do aborto com uma proposta absolutamente abjeta. Nos EUA, e depois de um debate que até fez o New York Times pedir a Joe Biden que se retire da corrida, um regresso de Donald Trump à Casa Branca pode provocar um retrocesso inimaginável.
E desenganemo-nos se achamos que tudo o que está a acontecer é responsabilidade dos líderes de extrema-direita: na verdade, grande parte do crescimento destes movimentos que são genericamente vazios de soluções, mas ótimos na capacidade de insuflar o descontentamento da população, acontece pura e simplesmente porque os governantes têm sido incompetentes.
Eu sei que parece senso comum, mas não custa recordar que é suposto os governantes terem a seu cargo a ‘res publica’, a coisa pública – ou seja, o bem comum. Não me parece difícil de entender. Não têm a seu cargo a manutenção do poderzinho ou das tricas políticas, não têm a seu cargo a promoção da sua carreira individual, nem sequer têm a seu cargo a necessidade de informar a população sobre o que estão a fazer por ela. Aos Governantes é pedido – pasme-se! – que governem. Que cuidem do seu povo, tendo sempre em conta o seu bem.
Ora, como se tem tornado óbvio, também, nos últimos anos há demasiados erros a apontar aos governantes que nos lideram um pouco por todo o mundo. Se olharmos apenas para Portugal, é fácil identificar os problemas e escusamos de estar sempre a repetir o que está menos bem – praticamente tudo, menos a vida de alguns estrangeiros endinheirados que vêm aproveitar o que de melhor o País tem.
E nem sequer falamos de pessoas que apostem particularmente no investimento em território nacional. Aliás, dados recentes publicados no Visual Capitalist mostram como os milionários estão a emigrar para países onde vivem mais confortavelmente, mas nos quais continuam a não investir porque…não são vantajosos nesse quesito.
Num cenário destes, em que a vida das pessoas está genericamente pior e mais difícil, é muito natural que discursos fáceis, vazios e repetitivos se tornem apelativos. Porque dão voz ao descontentamento. E com a ajuda das redes sociais, então, é um mimo.
Mas a culpa não é de quem grita o descontentamento – esses, tal como os outros, querem poder, protagonismo e apresentam tantas soluções quanto o meu peixinho ali no aquário. A culpa é de quem esquece, diariamente, de trabalhar para aqueles que tem a seu cargo: os eleitores. A responsabilidade é de quem ocupa gabinetes ministeriais e não trabalha em prol do bem comum. Como dizia recentemente Marques Mendes, durante uma intervenção no ‘Clube dos Moderados’, da revista EXAME, “em grande medida, o sucesso do populismo em Portugal está dependente da governação: se for boa, eficaz e resolver problemas concretos das pessoas, o populismo leva uma machadada. Se as expectativas que estão criadas não se concretizarem, o populismo volta a subir”. Parece óbvio, não é?
E salientava ainda outra coisa – que se adequa muito a propósito dos resultados de hoje, em França: “Na Europa, o populismo alimenta-se muito de imigração mesmo nos países em que não há imigrantes”, ou onde estes estão perfeitamente integrados.
“O que significa que está tudo nas mãos do Governo! Importa que a governação seja eficaz”, dizia o jurista e comentador político.
Se um funcionário de uma empresa nossa falhar nos objetivos que estão definidos para a sua função, é despedido. Quando os Governos falham naquilo que são as expectativas sobre as quais foram eleitas, também podem ser despedidos: o problema é que o que cresce no lugar de quem parte são ervas daninhas. Que fazem muito espalhafato e ocupam muito espaço, mas resolvem absolutamente nada e sufocam tudo o que está à sua volta.
É bom que não esqueçamos disso.