Estamos longe de ser perfeitos. Temos, sim, os nossos problemas, problemas esses muito mais complexos e que vão além de questões raciais. O grande mal do país continua sendo a corrução moral, política e econômica. Os que negam este fato ajudam a perpetuá-loJair Bolsonaro
sábado, 21 de novembro de 2020
Mal é a corrupção familiar ampla, geral e irrestrita
Tudo que é humano
Muitas vezes, cruzando-me com um vizinho, sou assaltado por este tipo de pensamento: "Será que este me entregaria aos leões?". Não é o tipo de pensamento que me ajude a estabelecer boas relações com a vizinhança
Nunca gostei de ver animais enjaulados. Fiquei a gostar ainda menos depois que, em fevereiro de 2013, visitei Brazzaville, a pequena capital da República do Congo, para participar num festival literário. Num intervalo entre as palestras fui com o meu tradutor, um simpático artista plástico, fluente em 13 idiomas, visitar o jardim zoológico.
O meu tradutor queria mostrar-me um painel que pintara à entrada do complexo, mostrando todos os animais que os visitantes poderiam encontrar. Percebi que aquilo era importante para ele, e aceitei.
Nunca gostei de ver animais enjaulados. Fiquei a gostar ainda menos depois que, em fevereiro de 2013, visitei Brazzaville, a pequena capital da República do Congo, para participar num festival literário. Num intervalo entre as palestras fui com o meu tradutor, um simpático artista plástico, fluente em 13 idiomas, visitar o jardim zoológico.
O meu tradutor queria mostrar-me um painel que pintara à entrada do complexo, mostrando todos os animais que os visitantes poderiam encontrar. Percebi que aquilo era importante para ele, e aceitei.
Os animais vagueavam por entre as ruínas como fantasmas tristes. Fotografei os macacos, estendendo os dedos aflitos por entre a ferrugem das grades. Um boi-cavalo arquejante, só pele e ossos, escavava o duro chão com as unhas gastas, à procura de algum talo de capim verde. Tinha um dos chifres rachados, preso com fita adesiva.
Guardei a câmara, agoniado. O meu tradutor deteve-se diante da jaula do leão. Lá dentro não parecia haver nada, exceto uma noite escura e um cheiro antigo e pesado, que nunca mais esqueci.
— O que aconteceu ao leão? — Perguntei.
O meu tradutor falou-me da guerra civil. A maioria dos animais morreu de inanição nesses meses cruéis, ou devorados pelas pessoas. O leão, contudo, não morrera de fome. Fora o contrário: morrera de indigestão. Um oficial das forças governamentais lembrou-se de colocar soldados inimigos dentro da jaula para os humilhar e assustar e, assim, lhes extrair informações. Um dia, o leão, esfomeado, matou um deles. A partir dessa altura passaram a alimentar o animal com carne humana.
Volta e meia lembro-me daquela jaula, e de que não há verdadeiramente espaços vazios. Não alimento ilusões quanto à humanidade da Humanidade. A maldade continua a revoltar-me, mas já não me surpreende. Vivemos cercados de pessoas comuns que, em situações de colapso moral, como uma guerra, seriam capazes de entregar uma criança para ser devorada por um leão. Muitas vezes, cruzando-me com um vizinho, sou assaltado por este tipo de pensamento: “será que este me entregaria aos leões?” Não é o tipo de pensamento que me ajude a estabelecer boas relações com a vizinhança.
Volta e meia lembro-me daquela jaula, e de que não há verdadeiramente espaços vazios. Não alimento ilusões quanto à humanidade da Humanidade. A maldade continua a revoltar-me, mas já não me surpreende. Vivemos cercados de pessoas comuns que, em situações de colapso moral, como uma guerra, seriam capazes de entregar uma criança para ser devorada por um leão. Muitas vezes, cruzando-me com um vizinho, sou assaltado por este tipo de pensamento: “será que este me entregaria aos leões?” Não é o tipo de pensamento que me ajude a estabelecer boas relações com a vizinhança.
Há também aqueles que dão a própria vida para salvar o garoto que foi atirado para a jaula dos leões. São poucos. Muito poucos. No final da história, os poucos que nos resgatam. A maioria das pessoas não seria capaz de lançar ninguém aos leões. Ficaria calada. Esse é o tipo de silêncio que enche aquela jaula, lá, no decrépito jardim zoológico de Brazzaville.
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Ouço Donald Trump proclamando aos gritos que ganhou umas eleições nas quais foi amplamente derrotado e ocorre-me que talvez toda a minha realidade seja, afinal, uma intrincada ficção. Um sonho alheio. Depois leio algures apenas 3% dos norte-americanos acreditam verdadeiramente que Trump triunfou (embora milhões finjam acreditar) e fico um pouco mais sossegado. É mais fácil conviver com uma multidão de trapaceiros, flibusteiros e aldrabões, do que com a própria loucura.
José Eduardo Agualusa
José Eduardo Agualusa
Desprezo de Bolsonaro pelos diferentes e os sem poder foi um tiro pela culatra
Ninguém melhor que Bolsonaro, que adora fuzis e pistolas, para estar acompanhado da expressão “o tiro saiu pela culatra”. Chegou à Presidência com sua carga de desprezo e desinteresse pelos diferentes e sem poder, algo que sempre o tinha caracterizou, mas desta vez com a força e a liberdade conferidas por ser chefe de Estado.
Esse mundo que tanto o incomoda e que ele costuma mencionar sem nenhum sinal de empatia e com adjetivos humilhantes nunca chegou tão ativo e com tanta vontade de reivindicar seu poder como com Bolsonaro. Foi uma espécie de rebelião silenciosa que se concretizou nas vitórias colhidas nas últimas eleições, as primeiras que viram serem eleitas tantas mulheres, inclusive trans, tantos negros e indígenas, tantos diferentes, enquanto fracassaram seus candidatos “machos e fortes”.
Não é que o mundo dos diferentes e portanto dos excluídos do poder, que constituem a grande maioria neste país, não tenha sido sempre mantido à margem da sociedade, sem que pudesse participar do banquete que, graças a eles, os privilegiados podem desfrutar. Foram-no sempre na história do Brasil, apesar de constituir a maioria do país e a mão de obra dos que acumularam sempre 90% das riquezas.
Esse mundo que tanto o incomoda e que ele costuma mencionar sem nenhum sinal de empatia e com adjetivos humilhantes nunca chegou tão ativo e com tanta vontade de reivindicar seu poder como com Bolsonaro. Foi uma espécie de rebelião silenciosa que se concretizou nas vitórias colhidas nas últimas eleições, as primeiras que viram serem eleitas tantas mulheres, inclusive trans, tantos negros e indígenas, tantos diferentes, enquanto fracassaram seus candidatos “machos e fortes”.
Não é que o mundo dos diferentes e portanto dos excluídos do poder, que constituem a grande maioria neste país, não tenha sido sempre mantido à margem da sociedade, sem que pudesse participar do banquete que, graças a eles, os privilegiados podem desfrutar. Foram-no sempre na história do Brasil, apesar de constituir a maioria do país e a mão de obra dos que acumularam sempre 90% das riquezas.
Eu me refiro aos nativos conquistados pelos brancos europeus, os negros herdeiros da escravidão, as mulheres que arcaram toda a vida com os trabalhos mais duros e sempre sendo humilhadas. Muitas delas passaram a vida trabalhando dentro de uma família rica, sem que nem sequer uma vez fossem chamadas por seu nome. E sempre mais mal pagas que os homens.
Todos estes excluídos, todos os sexualmente diferentes vistos quase como uma raça inferior, e talvez com maior força neste país que sempre manifestou uma carga grande de racismo, puseram em marcha uma grande revolução em defesa dos seus direitos durante este governo machista e homofóbico.
O resgate dos diferentes, começando pelas mulheres, foi crescendo no mundo graças à cultura e às lutas já conhecidas a favor de sua emancipação. No Brasil, entretanto, o trabalho foi sempre mais lento pela carga de preconceitos que arrasta. Não faz muito tempo ainda que a mulher não tinha direito de votar e era vista como propriedade e objeto de seu marido.
Quando Bolsonaro chega ao poder com sua carga de desprezo pelas mulheres, os homossexuais, os negros e os indígenas, que segundo ele são um peso inútil no país, estes já eram considerados inferiores e relegados a papéis secundários.
Sempre o mundo dos mais pobres, privados de cultura e diferentes esteve à margem do poder. A diferença hoje é que esse mundo dos sempre excluídos nunca foi tão humilhado e desprezado publicamente como com este presidente, um capitão frustrado que chegou ao poder com sede de vingança.
É fácil imaginar a raiva e humilhação que Bolsonaro deve ter sentido nas eleições do domingo ao ver derrotados seus candidatos “machos” apoiados por ele, uma grande parte militares, enquanto que os que ele mais despreza não só foram escolhidos como também, como algumas mulheres e não poucos negros e indígenas, foram os mais votados.
Deve ter sido duro para Bolsonaro ver como mulheres e trans, ou lésbicas, até ontem olhadas com maus olhos, eram eleitas e ainda tinham mais votos que seus competidores masculinos e “normais”. Nem sequer sua ex-mulher foi eleita vereadora no Rio, que é seu reino da vida toda.
Deve ter sido tão forte sua humilhação que tentou envenenar as eleições sustentando suspeitas sobre a apuração dos votos. E quando no dia seguinte seus seguidores fiéis e fanáticos lhe perguntaram sobre o resultado das eleições, pela primeira vez lhes disse que não falaria, que não estava “se sentindo bem”. Mas sentir-se mal, logo ele, o atleta macho que não se dobrou à covid-19?
Não é isso sair o tiro pela culatra? E nada mais perigoso para um governante como Bolsonaro que ver os menosprezados ressuscitarem do inferno da exclusão. São essas pessoas, começando a reconquistar sua dignidade secularmente humilhada, que, num feliz paradoxo, poderiam se tornar o pior perigo que ameaça seu trono.
Não são poucos os analistas que consideram que o triunfo desses diferentes desprezados por Bolsonaro poderá acabar sendo mais perigoso para ele, pois estes chegam com a consciência desperta de estarem reconquistando sua dignidade humilhada.
E junto com o triunfo eleitoral dos até ontem desprezados, Bolsonaro, o obsessivo pelos comunistas e por tudo o que cheire a esquerda, como se se tratasse de gente saída do inferno, para quem seu melhor lugar seria o exílio, a prisão e a câmara de tortura, sentiu nestas eleições ressurgir uma nova esquerda. Uma esquerda menos aburguesada, que reivindica os direitos dos diferentes e excluídos, dos sem-teto, que ainda são milhões neste país e vivem mal no inferno das periferias das grandes urbes, e estão escorregando para a miséria e até a fome por falta de emprego e de oportunidades.
Se outrora as esquerdas clássicas, hoje muitas delas aburguesadas, se interessavam, graças aos grandes sindicatos, pelos trabalhadores fixos para melhorar suas condições de vida, hoje a nova esquerda que surgiu com força nestas eleições se interessa, pelo contrário, pelos sem-trabalho e pela defesa dos excluídos que são os novos proletários da sociedade. Todo esse mundo que Bolsonaro gostaria de ver ser arrastado pela pandemia como peças inúteis do seu poder autoritário e machista.
Todos estes excluídos, todos os sexualmente diferentes vistos quase como uma raça inferior, e talvez com maior força neste país que sempre manifestou uma carga grande de racismo, puseram em marcha uma grande revolução em defesa dos seus direitos durante este governo machista e homofóbico.
O resgate dos diferentes, começando pelas mulheres, foi crescendo no mundo graças à cultura e às lutas já conhecidas a favor de sua emancipação. No Brasil, entretanto, o trabalho foi sempre mais lento pela carga de preconceitos que arrasta. Não faz muito tempo ainda que a mulher não tinha direito de votar e era vista como propriedade e objeto de seu marido.
Quando Bolsonaro chega ao poder com sua carga de desprezo pelas mulheres, os homossexuais, os negros e os indígenas, que segundo ele são um peso inútil no país, estes já eram considerados inferiores e relegados a papéis secundários.
Sempre o mundo dos mais pobres, privados de cultura e diferentes esteve à margem do poder. A diferença hoje é que esse mundo dos sempre excluídos nunca foi tão humilhado e desprezado publicamente como com este presidente, um capitão frustrado que chegou ao poder com sede de vingança.
É fácil imaginar a raiva e humilhação que Bolsonaro deve ter sentido nas eleições do domingo ao ver derrotados seus candidatos “machos” apoiados por ele, uma grande parte militares, enquanto que os que ele mais despreza não só foram escolhidos como também, como algumas mulheres e não poucos negros e indígenas, foram os mais votados.
Deve ter sido duro para Bolsonaro ver como mulheres e trans, ou lésbicas, até ontem olhadas com maus olhos, eram eleitas e ainda tinham mais votos que seus competidores masculinos e “normais”. Nem sequer sua ex-mulher foi eleita vereadora no Rio, que é seu reino da vida toda.
Deve ter sido tão forte sua humilhação que tentou envenenar as eleições sustentando suspeitas sobre a apuração dos votos. E quando no dia seguinte seus seguidores fiéis e fanáticos lhe perguntaram sobre o resultado das eleições, pela primeira vez lhes disse que não falaria, que não estava “se sentindo bem”. Mas sentir-se mal, logo ele, o atleta macho que não se dobrou à covid-19?
Não é isso sair o tiro pela culatra? E nada mais perigoso para um governante como Bolsonaro que ver os menosprezados ressuscitarem do inferno da exclusão. São essas pessoas, começando a reconquistar sua dignidade secularmente humilhada, que, num feliz paradoxo, poderiam se tornar o pior perigo que ameaça seu trono.
Não são poucos os analistas que consideram que o triunfo desses diferentes desprezados por Bolsonaro poderá acabar sendo mais perigoso para ele, pois estes chegam com a consciência desperta de estarem reconquistando sua dignidade humilhada.
E junto com o triunfo eleitoral dos até ontem desprezados, Bolsonaro, o obsessivo pelos comunistas e por tudo o que cheire a esquerda, como se se tratasse de gente saída do inferno, para quem seu melhor lugar seria o exílio, a prisão e a câmara de tortura, sentiu nestas eleições ressurgir uma nova esquerda. Uma esquerda menos aburguesada, que reivindica os direitos dos diferentes e excluídos, dos sem-teto, que ainda são milhões neste país e vivem mal no inferno das periferias das grandes urbes, e estão escorregando para a miséria e até a fome por falta de emprego e de oportunidades.
Se outrora as esquerdas clássicas, hoje muitas delas aburguesadas, se interessavam, graças aos grandes sindicatos, pelos trabalhadores fixos para melhorar suas condições de vida, hoje a nova esquerda que surgiu com força nestas eleições se interessa, pelo contrário, pelos sem-trabalho e pela defesa dos excluídos que são os novos proletários da sociedade. Todo esse mundo que Bolsonaro gostaria de ver ser arrastado pela pandemia como peças inúteis do seu poder autoritário e machista.
Desigualdade que espanca
Para mim no Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar para o Brasil, isso não existe aqui. Não tem racismo aqui. Digo porque eu morei nos Estados Unidos. Racismo tem lá. Eu morei dois anos nos Estados Unidos e, na minha escola, o pessoal de cor andava separado, o que eu nunca tinha visto no Brasil.Aqui o que você pode pegar e dizer é que existe desigualdade, fruto de uma série de problemas e grande parte das pessoas de nível mais pobre, que tem menos acesso a bens e necessidades da sociedade modernaGeneral vice Hamilton Mourão, de pijama e chinelas, incorporando o personagem Pantaleão
Um tiro pela culatra
Jair Bolsonaro não poderia ter oferecido um flanco de ataque melhor para seus críticos no Brasil e no exterior ao anunciar que divulgaria uma lista de todos os países que importam ilegalmente madeira brasileira. A ameaça foi feita nesta terça-feira, durante a cúpula virtual do Brics, ou seja, o encontro anual dos presidentes do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
Os demais chefes de Estado devem ter se perguntado por que o brasileiro abordou esse tema. Ao que tudo indica, Bolsonaro pretendia assim expor a hipocrisia dos que, por um lado, atacam sua política para a Amazônia, ao mesmo tempo que compram madeira ilegal do país. Portanto, sobretudo seus críticos da União Europeia e Estados Unidos.
Nesse ínterim ele recuou e disse que vai divulgar só uma lista das empresas, e não dos países. Possivelmente o Itamaraty o advertiu sobre a crise de politica externa que ele desencadearia, caso cada país acusado ativasse seus diplomatas para responder às imputações.
É óbvio que desse modo Bolsonaro pretende agitar seu eleitorado. Mas o tiro vai sair pela culatra. Pois agora todos na Europa e EUA veem confirmado que o Brasil não está em condições de produzir e exportar de forma sustentável. Pois se não estão em ordem nem mesmo os documentos de exportação de suposta madeira tropical cultivada, então são justificadas as dúvidas quanto à carne bovina e de aves, soja, couro, cacau, látex... até suco de laranja, frutas tropicais, café, celulose, açúcar.
É longa a lista dos produtos agropecuários brasileiros sobre os quais os produtores devem se preparar, desde já, para ter que renegociar com seus compradores no Hemisfério Norte. Até o momento, os fazendeiros nacionais estão basicamente unidos no respaldo ao presidente. Mas o que vai acontecer se seus mercados e faturamentos despencarem?
O segundo ponto em que Bolsonaro se autoprejudica com suas bizarras ameaças é que, de um só golpe, expôs toda a cadeia ilegal da indústria madeireira que ele próprio favoreceu e incentivou.
Pois o que acontece não é as árvores da floresta tropical serem contrabandeadas em operações clandestinas, para serem descarregadas secretamente em Roterdã ou Los Angeles e transformadas em tábuas de assoalho: toda a madeira ilegal deixa o país com documentos falsificados, expedidos por funcionários corruptos.
Além disso, o governo federal chegou a decretar, por algum tempo, que até mesmo espécies de árvores ameaçadas de extinção poderiam ser exportadas sem necessidade de licença especial. Em 2019, o Ibama não impôs uma única multa por exportação ilegal.
Agora Bolsonaro admite publicamente que o Brasil não controla a extração e o comércio da madeira tropical, como acusavam há tempos as organizações ambientais. Em investigações minuciosas, elas provaram que o comércio de madeira ilegal é apoiado por conceituados financiadores, compradores e manufatores do Brasil e do Hemisfério Norte.
Porém agora é o próprio presidente a lançar luz sobre essas escusas relações de negócios – provavelmente para grande satisfação dos ambientalistas. Nenhum banco, cadeia de varejo ou fabricante de automóveis pode mais se permitir estar envolvido em algum ponto dessa cadeia de fornecimento.
Os primeiros a sentir os efeitos serão os adeptos de Bolsonaro – e os sentirão no bolso. Ou seja, os fazendeiros, madeireiros, proprietários de serras elétricas e funcionários cuja renda agora sofrerá um baque. Esse processo não se iniciará já, mas no médio prazo, sim.
Com o Natal às portas, o presidente do Brasil não poderia ter dado um presente de festas melhor do que esse a seus críticos.
Alexander Busch
Os demais chefes de Estado devem ter se perguntado por que o brasileiro abordou esse tema. Ao que tudo indica, Bolsonaro pretendia assim expor a hipocrisia dos que, por um lado, atacam sua política para a Amazônia, ao mesmo tempo que compram madeira ilegal do país. Portanto, sobretudo seus críticos da União Europeia e Estados Unidos.
Nesse ínterim ele recuou e disse que vai divulgar só uma lista das empresas, e não dos países. Possivelmente o Itamaraty o advertiu sobre a crise de politica externa que ele desencadearia, caso cada país acusado ativasse seus diplomatas para responder às imputações.
É óbvio que desse modo Bolsonaro pretende agitar seu eleitorado. Mas o tiro vai sair pela culatra. Pois agora todos na Europa e EUA veem confirmado que o Brasil não está em condições de produzir e exportar de forma sustentável. Pois se não estão em ordem nem mesmo os documentos de exportação de suposta madeira tropical cultivada, então são justificadas as dúvidas quanto à carne bovina e de aves, soja, couro, cacau, látex... até suco de laranja, frutas tropicais, café, celulose, açúcar.
É longa a lista dos produtos agropecuários brasileiros sobre os quais os produtores devem se preparar, desde já, para ter que renegociar com seus compradores no Hemisfério Norte. Até o momento, os fazendeiros nacionais estão basicamente unidos no respaldo ao presidente. Mas o que vai acontecer se seus mercados e faturamentos despencarem?
O segundo ponto em que Bolsonaro se autoprejudica com suas bizarras ameaças é que, de um só golpe, expôs toda a cadeia ilegal da indústria madeireira que ele próprio favoreceu e incentivou.
Pois o que acontece não é as árvores da floresta tropical serem contrabandeadas em operações clandestinas, para serem descarregadas secretamente em Roterdã ou Los Angeles e transformadas em tábuas de assoalho: toda a madeira ilegal deixa o país com documentos falsificados, expedidos por funcionários corruptos.
Além disso, o governo federal chegou a decretar, por algum tempo, que até mesmo espécies de árvores ameaçadas de extinção poderiam ser exportadas sem necessidade de licença especial. Em 2019, o Ibama não impôs uma única multa por exportação ilegal.
Agora Bolsonaro admite publicamente que o Brasil não controla a extração e o comércio da madeira tropical, como acusavam há tempos as organizações ambientais. Em investigações minuciosas, elas provaram que o comércio de madeira ilegal é apoiado por conceituados financiadores, compradores e manufatores do Brasil e do Hemisfério Norte.
Porém agora é o próprio presidente a lançar luz sobre essas escusas relações de negócios – provavelmente para grande satisfação dos ambientalistas. Nenhum banco, cadeia de varejo ou fabricante de automóveis pode mais se permitir estar envolvido em algum ponto dessa cadeia de fornecimento.
Os primeiros a sentir os efeitos serão os adeptos de Bolsonaro – e os sentirão no bolso. Ou seja, os fazendeiros, madeireiros, proprietários de serras elétricas e funcionários cuja renda agora sofrerá um baque. Esse processo não se iniciará já, mas no médio prazo, sim.
Com o Natal às portas, o presidente do Brasil não poderia ter dado um presente de festas melhor do que esse a seus críticos.
Alexander Busch
Estudo da USP mostra que humoristas fortaleceram 'branqueamento' da sociedade brasileira com piadas racistas
Uma pesquisadora do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) identificou que o humor praticado pela elite intelectual no período pós-escravidão contribuiu fortemente para a manutenção do racismo e, até mesmo, para o “branqueamento” da sociedade brasileira.
No estudo “Quaquaraquaquá quem riu? Os negros que não foram...”, a professora Maria Margarete dos Santos Benedicto afirma que as primeiras décadas após a proclamação da República, em 1889, foram marcadas pela busca por uma identidade nacional, pela intensificação da atividade urbana e, sobretudo, pela instabilidade social, com a maior parte da população na pobreza e formada por escravos recém-libertos.
De acordo com Maria Margarete, àquela altura, a elite política e intelectual realmente se debruçava sobre o “problema negro”, e parte dela apostava efetivamente no "branqueamento" da sociedade por meio da miscigenação e de leis, que incentivavam a imigração de colonos europeus, de modo que “a ‘raça negra’ poderia ser reduzida em três gerações”. A professora lembra que o período foi descrito pelo estudioso Abdias do Nascimento como a "materialização do racismo institucional".
Por meio de uma ampla pesquisa e do acesso a documentos históricos raros, a professora identificou que as revistas da época, que apresentavam os primeiros textos e charges satíricas produzidas e destinadas à "classe letrada", fortaleciam essa ideologia no modo como os negros eram representados.
"O que aprendemos nos livros é uma história eurocêntrica, com questões políticas e sociais da Europa, de modo que eu podia apenas desconfiar que a elite intelectual daquela época era racista, o que ficou comprovado na quantidade de material que encontrei na minha pesquisa, em fontes dispersas. Nessa documentação ficou nítido o empenho pelo branqueamento da nação. Era o racismo ali, literalmente, o racismo", disse a professora ao G1.
"Há um verso do compositor Emicida que resume a minha tese e que diz: 'a dor dos judeus choca, a nossa vira piada'", continuou Maria Margarete dos Santos Benedicto.
No estudo “Quaquaraquaquá quem riu? Os negros que não foram...”, a professora Maria Margarete dos Santos Benedicto afirma que as primeiras décadas após a proclamação da República, em 1889, foram marcadas pela busca por uma identidade nacional, pela intensificação da atividade urbana e, sobretudo, pela instabilidade social, com a maior parte da população na pobreza e formada por escravos recém-libertos.
De acordo com Maria Margarete, àquela altura, a elite política e intelectual realmente se debruçava sobre o “problema negro”, e parte dela apostava efetivamente no "branqueamento" da sociedade por meio da miscigenação e de leis, que incentivavam a imigração de colonos europeus, de modo que “a ‘raça negra’ poderia ser reduzida em três gerações”. A professora lembra que o período foi descrito pelo estudioso Abdias do Nascimento como a "materialização do racismo institucional".
Por meio de uma ampla pesquisa e do acesso a documentos históricos raros, a professora identificou que as revistas da época, que apresentavam os primeiros textos e charges satíricas produzidas e destinadas à "classe letrada", fortaleciam essa ideologia no modo como os negros eram representados.
"O que aprendemos nos livros é uma história eurocêntrica, com questões políticas e sociais da Europa, de modo que eu podia apenas desconfiar que a elite intelectual daquela época era racista, o que ficou comprovado na quantidade de material que encontrei na minha pesquisa, em fontes dispersas. Nessa documentação ficou nítido o empenho pelo branqueamento da nação. Era o racismo ali, literalmente, o racismo", disse a professora ao G1.
"Há um verso do compositor Emicida que resume a minha tese e que diz: 'a dor dos judeus choca, a nossa vira piada'", continuou Maria Margarete dos Santos Benedicto.
A charge acima foi batizada "Hulha Nacional" porque hulha é um tipo de carvão e foi utilizado como referência à cor da pele da mulher negra. Na ilustração, embora elegantemente vestida, a mulher ainda pergunta, “É pá cozinhá?”, ao que o industrial branco lhe responde “é pra tudo, minha nega, pra tudo!”.
“Observemos que o trajar, as joias, a bolsa, o penteado do cabelo – que já não é crespo, mas cacheado devido ao processo de miscigenação – é a representação estética inspirada no modelo europeu, e também não deixa de ser uma representação do processo eugênico, de 'limpeza', pelo qual passou”, escreveu Maria Margarete no estudo.
As ilustrações constam na revista D. Quixote, de propriedade de Manoel Bastos Tigre, que também era diretor da publicação. Segundo a pesquisadora, a revista debochava da afetação típica do período chamado “Belle Époque”, ao mesmo tempo em que reforçava os estereótipos por meio de charges, frequentemente representando as pessoas negras de maneira submissa, ingênua e pouco instruídas, além de demarcar os lugares sociais que deveriam ser ocupados por elas.
Em “Salvo Seja”, abaixo, dois homens brancos dialogam: “Falsa magra? Errado. É uma falsa negra”, revelando um “bom funcionamento da política de branqueamento”, que culminaria na “mulata”.
As ilustrações publicadas mostravam ainda que os empregados negros "estariam se aproveitando de generosos empregadores, que lhes ofertavam confiança, enquanto reclamavam, eram pouco afeitos ao trabalho e fofoqueiros", sempre vestidos com aventais, até quando desempregados.
Embora muitos intelectuais do período tenham deixado esses rastros de racismo no humor, o estudo da professora Maria Margarete se concentra em três personagens conhecidos do período - além de Manoel Bastos Tigre, proprietário e diretor da revista D. Quixote, apresentada acima, ela também analisou os trabalhos de Antônio Torres e Emílio de Menezes, que escreviam textos satíricos publicados na mídia impressa.
Segundo a pesquisa, Antônio Torres se apresentava como mulato, mas revelava em seus textos que considerava civilizado o europeu. No texto satírico “A Vitória dos Mulatos”, publicado em 1917 na revista D. Quixote, ele “delata”, ironicamente, as “falhas” que seus contemporâneos estariam tentando ocultar.
“Na prefeitura temos o dr. Arnaldo Cavalcanti, honra da raça. No Senado, além do dr. Rivadavia Correia, que é mulato disfarçado, temos o jovem Eloy de Souza, que ainda há pouco declarou que não podia viver com menos de cem mil reis diários. Este é o tipo perfeito de mulato cheiroso (...)”, escreveu ele, que também chegou a descrever, João do Rio, integrante da Academia Brasileira de Letras, como alguém “que se diz fidalgo, apesar da beiçorra etiópica e de seu prognatismo camítico”, escreveu.
"A minha grande surpresa foi descobrir que Antônio Torres era negro, e perceber que ele é o símbolo do que o 'branqueamento' e a miscigenação fizeram com parte da população negra. A miscigenação, conforme indicou o cientista social Carlos Moore, ao contrário do que se pensava, não reduziu o racismo; na verdade, o potencializou. O mestiço, nesse contexto, acaba assimilando a cultura do branco dominador", disse a professora ao G1.
De modo semelhante, Emilio de Menezes, imortal da Academia Brasileira de Letras, escreveu em 1911, na revista A Imprensa, à respeito de um contemporâneo dele, médico e intelectual que fora a Londres para um congresso.
“Corre perigo a vida do Dr. João Batista de Lacerda, que escreveu que a grande maioria dos brasileiros é de mulatos. Uma tão grande calúnia não pode ficar impune. Quando ele chegar, os brancóides desta terra lincham-no e os netos dos negros comem-lhes os fígados. Provarão assim que são loiros e têm olhos azuis”, debochou.
Movida pela pergunta “O humor pode contribuir para a manutenção do racismo na sociedade?”, Maria Margarete conclui que sim, e que embora a abolição tenha libertado os escravos, "o defeito da cor persistia na nascida República, o status quo racial foi mantido, e passou a ser utilizado para garantir as diferenças sociais”, escreveu a pesquisadora.
"Minha tese não é uma censura ao humor: é uma análise do humor. Os humoristas têm direito de fazer humor, e a sociedade tem o direito de não rir e de criticá-lo às vezes. Aquele humor propagou e perpetuou o racismo, porque o riso, de fato, tem uma essência histórica, e uma ressonância na sociedade", disse a pesquisadora Maria Margarete à reportagem. "Sou filha caçula, e me lembro de quando minhas irmãs implicavam e me faziam chorar. Nesses casos, minha mãe dizia: ‘quando um só ri, não é brincadeira’", completou.
“Observemos que o trajar, as joias, a bolsa, o penteado do cabelo – que já não é crespo, mas cacheado devido ao processo de miscigenação – é a representação estética inspirada no modelo europeu, e também não deixa de ser uma representação do processo eugênico, de 'limpeza', pelo qual passou”, escreveu Maria Margarete no estudo.
As ilustrações constam na revista D. Quixote, de propriedade de Manoel Bastos Tigre, que também era diretor da publicação. Segundo a pesquisadora, a revista debochava da afetação típica do período chamado “Belle Époque”, ao mesmo tempo em que reforçava os estereótipos por meio de charges, frequentemente representando as pessoas negras de maneira submissa, ingênua e pouco instruídas, além de demarcar os lugares sociais que deveriam ser ocupados por elas.
Em “Salvo Seja”, abaixo, dois homens brancos dialogam: “Falsa magra? Errado. É uma falsa negra”, revelando um “bom funcionamento da política de branqueamento”, que culminaria na “mulata”.
As ilustrações publicadas mostravam ainda que os empregados negros "estariam se aproveitando de generosos empregadores, que lhes ofertavam confiança, enquanto reclamavam, eram pouco afeitos ao trabalho e fofoqueiros", sempre vestidos com aventais, até quando desempregados.
Embora muitos intelectuais do período tenham deixado esses rastros de racismo no humor, o estudo da professora Maria Margarete se concentra em três personagens conhecidos do período - além de Manoel Bastos Tigre, proprietário e diretor da revista D. Quixote, apresentada acima, ela também analisou os trabalhos de Antônio Torres e Emílio de Menezes, que escreviam textos satíricos publicados na mídia impressa.
Segundo a pesquisa, Antônio Torres se apresentava como mulato, mas revelava em seus textos que considerava civilizado o europeu. No texto satírico “A Vitória dos Mulatos”, publicado em 1917 na revista D. Quixote, ele “delata”, ironicamente, as “falhas” que seus contemporâneos estariam tentando ocultar.
“Na prefeitura temos o dr. Arnaldo Cavalcanti, honra da raça. No Senado, além do dr. Rivadavia Correia, que é mulato disfarçado, temos o jovem Eloy de Souza, que ainda há pouco declarou que não podia viver com menos de cem mil reis diários. Este é o tipo perfeito de mulato cheiroso (...)”, escreveu ele, que também chegou a descrever, João do Rio, integrante da Academia Brasileira de Letras, como alguém “que se diz fidalgo, apesar da beiçorra etiópica e de seu prognatismo camítico”, escreveu.
"A minha grande surpresa foi descobrir que Antônio Torres era negro, e perceber que ele é o símbolo do que o 'branqueamento' e a miscigenação fizeram com parte da população negra. A miscigenação, conforme indicou o cientista social Carlos Moore, ao contrário do que se pensava, não reduziu o racismo; na verdade, o potencializou. O mestiço, nesse contexto, acaba assimilando a cultura do branco dominador", disse a professora ao G1.
De modo semelhante, Emilio de Menezes, imortal da Academia Brasileira de Letras, escreveu em 1911, na revista A Imprensa, à respeito de um contemporâneo dele, médico e intelectual que fora a Londres para um congresso.
“Corre perigo a vida do Dr. João Batista de Lacerda, que escreveu que a grande maioria dos brasileiros é de mulatos. Uma tão grande calúnia não pode ficar impune. Quando ele chegar, os brancóides desta terra lincham-no e os netos dos negros comem-lhes os fígados. Provarão assim que são loiros e têm olhos azuis”, debochou.
Movida pela pergunta “O humor pode contribuir para a manutenção do racismo na sociedade?”, Maria Margarete conclui que sim, e que embora a abolição tenha libertado os escravos, "o defeito da cor persistia na nascida República, o status quo racial foi mantido, e passou a ser utilizado para garantir as diferenças sociais”, escreveu a pesquisadora.
"Minha tese não é uma censura ao humor: é uma análise do humor. Os humoristas têm direito de fazer humor, e a sociedade tem o direito de não rir e de criticá-lo às vezes. Aquele humor propagou e perpetuou o racismo, porque o riso, de fato, tem uma essência histórica, e uma ressonância na sociedade", disse a pesquisadora Maria Margarete à reportagem. "Sou filha caçula, e me lembro de quando minhas irmãs implicavam e me faziam chorar. Nesses casos, minha mãe dizia: ‘quando um só ri, não é brincadeira’", completou.
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