terça-feira, 7 de abril de 2020

Ameaça a Mandetta reflete o que é Bolsonaro

A fritura do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, é típica de um governo como o de Bolsonaro, em que a lógica cartesiana costuma ser contrariada por outras condicionantes. Pelo perfil psicológico do presidente e/ou por crenças ideológicas dele, da família e de quem os cerca. Não é lógico e depõe contra a inteligência agredir a China, o maior parceiro comercial do país, e de quem o Brasil precisa de ajuda para enfrentar a epidemia de coronavírus. Mas, nesta espécie de mundo paralelo, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, faz crítica à China, e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, segue atrás e põe na rede uma brincadeira de mau gosto e de má-fé com os chineses. Não estão preocupados com assuntos de governo e de Estado, apenas com suas crendices sectárias.

Por isso, Mandetta, cuja atuação na epidemia da Covid-19 é aprovada por 76%, segundo pesquisa recente do Datafolha, corre risco de ser mandado embora e no momento em que a crise de saúde inicia sua fase de agravamento. Os sensatos que estão na cúpula do governo ajudaram a convencer ontem o presidente a não cometer o desatino. Há algum tempo Bolsonaro tem demonstrado conviver mal com esta popularidade, ameaçando usar a caneta contra aqueles que “viraram estrelas”. Mais explícito, só se citasse o nome. Talvez falte ao ministro da Saúde o cuidado que tem o colega Paulo Guedes, da Economia, de sempre consultar o chefe. Mesmo ungido superministro, Guedes deve ter considerado a necessidade de ser cauteloso diante do estilo impulsivo de Bolsonaro, mesmo que atue numa área em que teoricamente seria mais difícil Bolsonaro dar ouvidos a outros.

Não se deve arriscar. Ou talvez Mandetta devesse ter o cuidado de Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública, escalado nas apostas como concorrente de Bolsonaro em 2022. Moro fez defesas de teses caras ao presidente, caso do “excludente de ilicitude”, entre outros gestos.


Cair ministro é parte do jogo de poder. O grave é o que pode significar a saída de Mandetta, responsável, com sua equipe, por adotar no Brasil o isolamento social, como indicam a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a grande maioria dos médicos e especialistas. Reduzir a um mínimo a circulação das pessoas retarda a disseminação do coronavírus e dá tempo ao sistema de saúde, público e privado, de preparar-se para atender a um forte crescimento da demanda por leitos, principalmente de terapia intensiva.

Os contornos da tragédia desta pandemia estão sendo desenhados pelas muitas mortes decorrentes do erro de avaliação de alguns governos, como o que Bolsonaro cometerá se trocar Mandetta por alguém sensível ao seu argumento de que manter as pessoas em casa — com exceção dos trabalhadores em áreas vitais — é destruir empregos e salários, levando o país a uma crise nunca vista. Bolsonaro não se preocupa com um avanço rápido da epidemia, porque — mesmo que não diga — considera que um número maior de mortes será compensado pela preservação dos setores produtivos, a tempo de o crescimento voltar bem antes das eleições de 2022. Engana-se, como vários estudos acadêmicos provam. E ainda incorrerá na questão ética de desprezar vidas em nome de um projeto eleitoral.

Uma grande crise econômica haverá de qualquer forma, mas seu governo a tornará mais grave se atrasar bastante a retomada ao permitir o que está acontecendo nos Estados Unidos, na Itália e na Espanha. Seus governos demoraram a se convencer de que deveriam fazer um rígido isolamento social, e o número de seus mortos ultrapassa os 3.300 da China. Nos Estados Unidos, passaram ontem dos 10 mil. O Norte da Itália antecipou o que poderá acontecer no Brasil: a morte de um grande número de idosos infectados por filhos e netos na volta para casa depois do trabalho. O destino de incontáveis famílias pobres poderá ser decidido pela caneta de Jair Bolsonaro.

Vírus é para tudo e todos

Só o que parou foi o mundo artificial dos humanos. Não fazemos falta na biodiversidade. Pelo contrário. Desde pequenos aprendemos que há listas de espécies em extinção. Enquanto essas listas aumentam, os humanos proliferam, destruindo florestas, rios e animais. Somos piores que a Covid-19.

Quem está adiando compromissos para setembro, como se tudo fosse voltar ao normal, já está vivendo no passado. O futuro é aqui e agora. Ninguém escapa. Nem aquelas pessoas saindo de carro importado para mandar seus empregados voltarem ao trabalho, como se fossem escravos. Se o vírus pegá-los, eles podem morrer igual a todos nós. Com ou sem Land Rover. Estamos todos na mesma. Não vamos voltar àquele ritmo, não será possível ligar todos os carros, todas as máquinas, ao mesmo tempo. Vai ser posto em questão até o sentido de ligar tudo de novo.

Há autoridades insistindo que devemos retomar a rotina em meio à crise da epidemia. 
Há pessoas que mesmo depois do trauma continuam da mesma forma. Governos burros acham que a economia não pode parar. Mas a economia é uma atividade que os humanos inventaram e que depende de nós. Se os humanos estão em risco, qualquer atividade humana deixa de ter importância. Dizer que a economia é mais importante é como dizer que o navio importa mais que a tripulação. Coisa de quem acha que a vida é meritocracia e luta por poder. Não podemos pagar o preço que estamos pagando e seguir insistindo nos erros.

A voz do vírus

Diz-se que a verdade é a primeira vítima na guerra. Na epidemia é a lucidez. A urgência no atendimento para barrar a epidemia e cuidar da saúde das pessoas faz esquecer que a vida continuará depois. A saúde não assegura a vida plena para uma pessoa e a sociedade. No ano de 1348, auge da peste negra, o imperador Carlos IV fundou a Universidade de Praga. Depois, ela serviu para o Renascimento que abriu as portas para a ciência que indica como enfrentar a nova peste: com o isolamento.

A insensatez está levando ao debate sobre a importância e não sobre a urgência. Respirar e comer são igualmente importantes, mas o oxigênio é mais urgente. No lugar de debater o que é mais importante, o sensato é tomar as medidas urgentes para salvar as vidas hoje, cuidando da respiração das pessoas, sem esquecer de cuidar da recuperação da economia depois, para assegurar o necessário à vida plena: emprego, renda, produção, um propósito para viver e condições para buscar a felicidade.

O vírus está mostrando a falta de solidariedade dos que não pensam na urgência da epidemia, e a insensatez de não levar em conta o futuro depois dela. Precisamos ser solidários, como manda a ciência médica, com isolamento, leitos, respiradores e renda para os sem salário. Mas também temos que cuidar da recuperação posterior da economia e da sociedade.

O vírus está dizendo que fomos insensatos no passado. Há séculos deixamos milhões de pobres sem renda por causa da estrutura social. Falamos agora da necessidade de trabalho, mas nunca tivemos preocupação com pleno emprego. Dizemos que é preciso cuidar da higiene para evitar a transmissão do vírus, mas deixamos 35 milhões de pessoas sem água em casa para lavar as mãos e 100 milhões sem tratamento de esgoto. Criticamos a irresponsabilidade de um presidente que não entende a urgência do isolamento, mas esquecemos que a falta de água tratada e rede de esgoto é produto de governos anteriores. “Nossos” governos.

O vírus está nos indicando que o obscurantismo do atual presidente tem características de genocídio. Mas lembra que nas gestões anteriores não fizemos o suficiente para impedir dezenas de milhares de mortos por malária, dengue e sarampo. O vírus está nos apontando que não cuidamos do analfabetismo porque não há um “letravírus” que contamine os que aprenderam a ler, fazendo-os analfabetos outra vez. E lembrando que sem educação não daremos emprego e renda aos que sobreviverem, despreparados profissionalmente. Para viver não basta respirar.

O vírus nos revela ainda que ele foi trazido do exterior por avião para os bairros ricos e nos pergunta se a epidemia seria enfrentada com o mesmo rigor se tivesse chegado de ônibus, direto para os bairros pobres. Nesse caso, talvez estivesse recebendo a pouca atenção dada ao aedes aegypti, que transmite a dengue, ou do anopheles, que transmite a malária. Ele especula que se o vírus da poliomielite não atingisse as pessoas indiscriminadamente, talvez não tivéssemos dado ao mundo o exemplo das “gotinhas” que erradicaram essa antiga epidemia.

O vírus anuncia que para salvar nossas vidas estamos em quarentena, sobrevivendo à síndrome da abstinência ao vício do consumismo nos shoppings e à falta de viagens. Ele nos ensina que podemos ver o mundo, estudar, trabalhar mesmo sem sair de casa. E que a saúde de cada um depende da saúde de todos, que a solidariedade com os outros é necessária para a sobrevivência de cada um, que a saúde de cada um não será plenamente segura se não cuidarmos da saúde pública.

O vírus está confirmando que além de levarmos a sério a ciência médica precisamos respeitar a ciência econômica e sobretudo a velha aritmética. Que neste momento devemos gastar o que for preciso para atender às necessidade dos doentes, de trabalhadores desempregados e se empresários falidos, mas que não devemos deixar a conta ser paga depois pelos pobres com a carestia da inflação, nem pelos jovens que pagarão o aumento da dívida pública. A solidariedade na doença precisa ocorrer na hora de pagar a conta

O vírus tem falado que além da quarentena, precisamos de uma revolução no nosso comportamento e nas nossas prioridades. E nos grita que é preciso mudar o velho padrão do progresso baseado na voracidade do consumo e na ganância do lucro. Mas ele sussurra o medo de que, passada a epidemia, voltaremos aos velhos costumes de antes: o desprezo ao saneamento, à educação de base e à saúde pública, e a preferência pela ilusão inflacionária, obrigando os pobres a pagarem a conta com a carestia.

Bolsonaro revela na crise que não sabe governar

Os eventos da segunda-feira revelam a maneira de governar de Jair Bolsonaro. O presidente tem se comportado de maneira totalmente errada para o momento. Ele contesta publicamente o ministro da Saúde durante essa pandemia, não ouve as autoridades sanitárias do mundo, como a Organização Mundial da Saúde e todos que têm o conhecimento do assunto.

O presidente se incomoda com o sucesso do ministro. Luiz Henrique Mandetta faz uma travessia perigosa. Para uma pessoa pública, é um risco estar no comando de uma missão que traz tantas notícias ruins. As próximas semanas serão duras, tem dito o ministro.

Mandetta conquistou o apoio majoritário da população. Tem conduzido bem o combate à pandemia, com transparência. É um bom ministro que precisa de tranquilidade. A fala dele na coletiva define bem o grande problema. Pouco se conseguiu trabalhar na segunda-feira. Os assessores chegaram a limpar as gavetas. A informação que tive era nessa direção mesmo. Uma pessoa do palácio disse que o ambiente era instável e que o confronto constante deveria acabar. Mandetta se manteve na sua trilha. Trabalho, trabalho, trabalho, disse o ministro, usando o termo em italiano.

Bolsonaro tem procurado uma ou outra pessoa que conforte sua visão. Na segunda-feira, almoçou com Osmar Terra, que tem uma posição alinhada a do presidente.


Mais do que o conflito em si, o episódio de segunda-feira mostra a maneira de governar do presidente. Bolsonaro está completamente equivocado neste momento. É talvez seu maior erro político. Ele faz um cálculo. Quando chegar a conta na economia, ele vai dizer que avisou. Mas não é assim que as coisas acontecem. Os desdobramentos podem ser outros e é muito perigoso nesse momento ficar em um conflito tão grande. O presidente exaure as forças do país. O Brasil se ocupa com uma crise falsa, artificial, quando deveria se dedicar ao combate à pandemia. O líder precisa unir o país no meio da crise. O presidente Bolsonaro divide, ao entrar em conflito por razões levianas e fúteis.

Os ministros que fizeram carreira militar conseguiram segurar Mandetta no cargo. Mas por quanto tempo serão capazes de manter uma situação tão anormal dentro de um governo?

Fica mais claro, depois do que houve ontem, a maneira como Bolsonaro conduz suas decisões. Ele mostrou suas anomalias; não é assim que um líder lidera durante uma pandemia. O episódio revela muito sobre Jair Bolsonaro, e não sobre Mandetta, o ministro que o presidente queria, e continua querendo, tirar do governo. 

Brasil: parceria de morte


Máscaras: Também prefere um carro sem airbag?

Se chocar de frente contra um muro, ao volante de um automóvel a uma velocidade próxima dos 70 km/hora, as suas possibilidades de sobrevivência dependem, entre outras razões, da reunião de três pressupostos: da resistência e segurança do habitáculo do carro que conduz, de levar ou não o cinto de segurança posto e de, no momento do embate, o airbag do veículo ser ou não ativado. Face à violência de um embate desses, é preciso que todos estes três fatores se conjuguem na perfeição para poder sobreviver ou, no mínimo, evitar sequelas físicas permanentes – e, mesmo assim, ainda vai necessitar de uma dose suplementar de sorte, pois os testes de impacto frontal, conhecidos como crash tests, são feitos, normalmente, a 64 km/hora e, neste caso, um bocadinho mais ou menos de velocidade é determinante para o desfecho final.

Mesmo eu, que nada percebo de automóveis – embora os conduza há quatro décadas… -, reconheço que, ao longo dos anos, a indústria tem-se esforçado ao máximo para tentar garantir maior segurança aos condutores e ocupantes. Essa segurança não é obtida através de uma única solução, mas antes da soma de uma série de instrumentos tecnológicos e de procedimentos inovadores que, em conjunto, permitem reduzir a mortalidade em cada acidente. Sempre, parece-me, numa lógica de quanto mais melhor – além dos já citados, existem, por exemplo, muitas outras melhorias nos travões e em sistemas inteligentes de deteção de perigo. Tudo junto permite ter carros mais seguros e menos acidentes com vítimas mortais.


Ora, quando se trata de decretar medidas básicas de saúde, para fazer face à propagação de doenças, a solução mais rápida e antiga de todas é a do isolamento social – aquela que, no exemplo dos carros, poderíamos equivaler ao habitáculo do veículo. Logo a seguir, temos a descoberta feita por um médico húngaro num hospital de Viena, em meados do século XIX, de que lavar as mãos era uma medida essencial para prevenir contágios e infeções – neste caso, o equivalente ao cinto de segurança que, há várias décadas, passou a ser obrigatório em todos os automóveis.

Foram estas as duas medidas que, ao longo de meses, nos apresentaram como as mais indicadas para fazer face à pandemia de Covid-19. Nada a apontar, exceto de que, ao longo de todos este tempo, se foi também desvalorizando, entre nós, o terceiro eixo que, nos países asiáticos, onde o surto surgiu, também foi imediatamente acionado: o do uso de máscaras entre a população – uma espécie de airbag, para prosseguirmos na mesma analogia.

Os resultados estão à vista de todos e basta comparar o número de infetados e de vítimas mortais nos países onde o uso da máscara de proteção faz parte dos hábitos das populações ao mínimo sinal de alarme e aqueles onde essa utilização foi desvalorizada e apenas reservada a quem se sabia estar em contato direto com doentes. Ora, o problema é exatamente esse: quando já se percebeu que uma larga percentagem de doentes infetados com Covid-19 não tem quaisquer sintomas é impossível saber quando se está ou não em contato com alguém que pode propagar o vírus. Portanto, o uso de máscara deve ser aconselhado para as pessoas se protegerem como, acima de tudo, para impedir que alguém já contagiado mas sem sintomas possa, na sua ignorância, estar a infetar alguém.

Quem já andou pelo Japão, por exemplo, percebe isto: o uso da máscara é uma espécie de etiqueta exigida a quem, por exemplo, acordou de manhã constipado. Por precaução, deve usá-la mais para não prejudicar os outros do que para se proteger a ele próprio. A mesma prática é habitual, há muito tempo, noutros países asiáticos, em especial desde as epidemias SARS e MERS, já neste século – embora, tantas vezes erradamente, quando se viam fotos de populares com máscaras muitos pensarem que elas eram apenas uma proteção contra a poluição (nalguns casos era verdade, mas não na esmagadora maioria).

O mais grave é que foi preciso deixar a pandemia varrer a Europa e chegar, em força, aos Estados Unidos da América, para que a questão sobre o uso das máscaras entre a população chegasse a um consenso: penso que já ninguém tem dúvidas de que, embora não resolvam o problema – isso só a vacina -, podem ser mais um instrumento para ajudar a controlar o contágio, em conjunto com a lavagem das mãos e o isolamento social.

Ficamos, no entanto, com uma certeza: a gestão do dossier sobre o uso das máscaras, primeiro desaconselhadas e depois incentivadas, é o melhor exemplo de como o mundo não estava preparado para responder a uma pandemia. Foi preciso uma colisão frontal para muitos perceberem que, afinal, lhes faltava o airbag.

Globalismo de morte

Esse desastre nos fez comprovar que nesse mundo já não existem regiões e uma liberdade regional. Essa epidemia nos alertou que o enriquecimento de grupos empresariais e regionais através da globalização deve acabar. Caso contrário, as desgraças por vir serão ainda maiores 
Ai Weiwei 

A pandemia e o pandemônio

Nunca antes, o prefixo grego “pan” foi tão usado. E haja opinião sobre um bicho invisível que ainda não foi vencido pela ciência. Neste vazio, não faltam metáforas, reflexões filosóficas e uma delas me chamou atenção: a frase do Presidente no encontro matinal do “café com sal”, compartilhado com os jornalistas: “Vai morrer gente? Vai. Mas um dia todo mundo vai morrer”.

Que originalidade! Que profundidade! Tradução: diante do inevitável, vamos tocar a vida, dançando entre a pandemia e o pandemônio. Ao falar sobre a morte, o presidente usou a “detestável” filosofia alinhado a famosos colegas: Epícteto: “Todas as interrogações têm uma única fonte: o medo da morte”; Montaigne: “Filosofar é aprender a morrer”; Spinoza: “O sábio é aquele que morre menos do que o tolo”.


Desnecessária, a mensagem fatalista. O Humano tem certeza de sua finitude; conta o tempo e tem pavor a perder tudo a que se apega; busca a “tábua salvífica”, certeza que a Religião lhe oferece pelo caminho da fé; ou a filosofia que oferece o caminho da razão, o espírito crítico que leva o filósofo ao terreno da dúvida e o liberta da tutela divina.

Neste sentido, o romance de autoria do Nobel José Saramago (1922-2010), "As Intermitências da Morte", é fascinante. Pessimista indisfarçável, disse numa entrevista: “Não sou pessimista. O mundo é que é péssimo”. Pois bem, a imaginação ficcional do autor criou um país em que ninguém morre e, com exemplos irônicos, perturbações generalizadas, demonstra que a ausência da morte tornaria impossível a vida.

Na obra de Saramago, o flagelo é a imortalidade; na do Nobel Albert Camus (1913-1960), "A Peste", é a mortalidade na cidade de Oran, transmitida pelos ratos defuntos com velocidade devastadora. Calamidade não bate na porta, entra e vai tomando conta dos corpos, com apetite macabro, espalhando dores, mortes, desespero e juntando sentimentos de absurdo e revolta.

Nessa junção, o filósofo do absurdo e da revolta – Camus – transforma seus pensamentos em personagens de dimensão real e simbólica. Não é por outra razão que o livro setentão (1947), best-seller, estaria de quarentena senão fosse clássico. O forte simbolismo tem como personagem/relator o médico Bernard Rieux, um racionalista e, como contraponto, o obscurantismo dogmático do Padre Paneloux. No Brasil, a história se repete.

Em Oran, peste foi vencida. Rieux aprendeu: “No flagelo, há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar”.

A pandemia será vencida a um custo sem precedentes. Diferente das guerras, sobre elas não atua a perversão do tirano genocida. O que é natural é o micróbio. O resto, saúde, integridade, pureza é um efeito da vontade, de uma vontade que não deve jamais nos deter.
Ainda assim, a sobrevivência deve ser acompanhada pela modéstia, porque, o Dr. Rieux, incansável no incerto ofício de curar, alerta para ignorância ativa: “o bacilo da peste não morre, nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e nas roupas, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús nos lenços e na papelada .... um dia para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz”.

Direita populista agrava a crise ao apostar no egoísmo desenfreado

A crise revelou os caráteres de nossas lideranças. Revelou que o Brasil não tem um líder, e sim um presidente covarde, que é não apenas irrelevante para o esforço coletivo de combate à epidemia, como sabota quem participa. O ministro Mandetta segue no cargo, por enquanto, tendo que passar pela indignidade de ser atacado por seu próprio chefe.

Mas além do caráter pessoal de cada liderança, a epidemia da Covid-19 nos revela a natureza do populismo de direita que cresceu no mundo todo.

No momento de necessidade, quando precisamos fortalecer os vínculos de solidariedade e cooperação (interna e internacional), a direita populista se despe de qualquer disfarce e se revela aquilo que sempre foi: a defesa do interesse do mais forte, ou seja, a lei da selva.

A conduta dos EUA neste momento é a de um verdadeiro pirata. Primeiro, quis comprar da Alemanha os direitos de monopólio sobre uma possível vacina. Agora age como um bandoleiro internacional em busca de insumos médicos da China, cortando quem tiver de cortar para colocar as mãos no butim.


Ironicamente, é a China, um país de governo autoritário e sem liberdade de imprensa, que adota a postura cooperativa de ajudar outros países a atravessar a crise, fornecendo médicos e equipamentos. É preocupante ver a China ocupar o espaço dos EUA na ordem mundial liberal que ele ajudou a criar; mas é a consequência direta do egoísmo americano atual.

O Brasil, nessa história, faz papel de palhaço. De um lado, cria desavenças gratuitas com a China. Que o ministro Weintraub não tenha sido sumariamente demitido depois do deboche vergonhoso que fez da China é um índice da miséria moral deste governo. Ela já começa a nos preterir na agenda de importações.

Do outro lado, se comporta como o cachorrinho de Trump, que como bom nacionalista jamais nos retribuirá. Em poucos dias, os EUA não só se apoderaram de insumos médicos que viriam para nós como já fechou com a China um contrato de venda de soja. Não nos damos bem na lei da selva global.

A mesma dinâmica se repete aqui dentro: enquanto grandes empresas como Itaú Unibanco e Magazine Luiza se colocam de maneira solidária e buscam ao mesmo tempo cumprir as regras e ajudar seus trabalhadores, o empresariado bolsonarista parte para uma insana campanha contra o isolamento social.

Como acreditar na preocupação social de Luciano Hang ou Junior Durski, se ao primeiro sinal de dificuldade eles já ameaçam demitir milhares de trabalhadores? E que solidariedade é essa, que quer forçar os mais pobres a escolher entre a fome e a doença?

O mesmo vale para os pastores alinhados ao poder: o contágio de seus fiéis não os preocupa; querem garantir o dízimo farto e ponto final. Foi essa a mentalidade que elegeu Bolsonaro: os mais fortes se impõem e os mais fracos que se virem.

A crise envolve sacrifícios de todos os lados, mas há um caminho claro: isolamento social e auxílio do governo; cooperação no esforço comum e solidariedade para quem precisa. Mas mesmo um mero ato de solidariedade é demais para quem julga ter o direito sacrossanto ao autointeresse irrestrito.

Em outros tempos, solidariedade, firmeza no cumprimento do dever e autossacrifício eram valores conservadores. Hoje, a direita que está no poder ostenta orgulhosa o egoísmo, do deboche e da psicopatia. Propõe, como resposta à epidemia, o “cada um por si”. Salve-se quem puder!
Joel Pinheiro da Fonseca

O medo global

Os que trabalham têm medo de perder o trabalho.

Os que não trabalham têm medo de nunca encontrarem trabalho.

Quem não tem medo da fome, tem medo da comida.

Os motoristas têm medo de caminhar e os pedestres têm medo de ser atropelados.

A democracia tem medo de lembrar e a linguagem tem medo de dizer.


Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.

É o tempo do medo.

Medo da mulher da violência do homem e medo do homem da mulher sem medo.

Medo dos ladrões, medo da polícia.

Medo da porta sem fechaduras, do tempo sem relógios, da criança sem televisão, medo da noite sem comprimidos para dormir e medo do dia sem comprimidos para despertar.

Medo da multidão, medo da solidão, medo do que foi e do que pode ser, medo de morrer, medo de viver.

Eduardo Galeano

Pensamento do Dia


O samba de uma nota só

Neste curso coletivo de dimensões planetárias sobre epidemias, aprendemos que a curva epidêmica tem um trecho exponencial ascendente, logo no começo. Depois a subida inverte a curvatura, conforme algumas pessoas se imunizam e outras, infelizmente, vão a óbito. Uma hora chega o pico. E quando o fator “R”, o número de indivíduos que cada indivíduo contaminado contamina, cai abaixo de um, a curva começa a trajetória descendente. Numa imagem que é quase o espelho de quando subiu.

O enigma para o analista político é tentar decifrar se haverá correlação entre as idas e vindas da curva epidêmica e uma parente dela: a curva de aprovação/desaprovação dos políticos que lidam com a epidemia em cada país. Ou em cada estado. Ou em cada cidade. Quem disser que tem certeza provavelmente falta com a verdade. Ao final deste pesadelo (haverá um “final”?) poderemos ter certeza. Mas aí já será trabalho para historiadores, os privilegiados que podem se dar ao luxo de fazer previsões só depois que tudo já aconteceu.


Políticos agem por instinto, e movidos principalmente (unicamente?) pelo humor do eleitorado do qual dependem. Donald Trump decidiu proibir exportações de produtos médicos necessários para ajudar pacientes da Covid-19 e profissionais da saúde. E mandou comprar/pegar tudo que fosse necessário comprar/pegar mundo afora. Para tristeza dos fãs da “globalização”, cada um só vota nas eleições de seu próprio país. E a contabilidade de mortos que interessa a Trump no ano eleitoral é a dentro das fronteiras dos Estados Unidos.

Por isso, ele combina bem o “blame game” (o esforço, por enquanto pouco produtivo apesar da propaganda, de emplacar a expressão “vírus chinês”) com uma versão mais tosca do “big stick”, versão que dispensa aquela parte de “fale macio”. E os índices mostram o presidente candidato à reeleição navegando em meio à curva crescente da epidemia nos Estados Unidos. No momento, o povo americano parece mais preocupado em sobreviver, e menos em discutir se lá atrás Trump subestimou o problema.

Por aqui, Jair Bolsonaro sofre algum desgaste por ser talvez mais teimoso. O ocupante da Casa Branca mudou o discurso e a linha de ação quando foi necessário, sem se preocupar em explicar por que alterou a rota. Assim funcionam os líderes. Bolsonaro já teve inúmeras oportunidades de ajustar o leme para indicar que se preocupa sim com o impacto da epidemia para a saúde e a vida, mas não aproveitou. Continua no samba de uma nota só, de que os efeitos econômicos da paradeira podem ser tão ou mais daninhos que os da Covid-19.

As pesquisas mostram por enquanto um desgaste para ele apenas na margem. Não está bem avaliado no combate à epidemia, mas mantém perto dele o eleitorado fiel desde a reta final do primeiro turno em 2018. Por cálculo, ou por instinto, ou por convicção, tanto faz, ele parece achar que isso será suficiente para concluir o mandato e brigar para continuar em 2022. Pode ser. Mas também pode ser que ele esteja subestimando o papel que o cansaço com o belicismo presidencial pode desempenhar para juntar gente contra ele até lá.

Alon Feuerwerker

O tempo da peste

Este artigo é, mais do que nunca, uma garrafa que lanço ao mar do tempo. Escrevo no início da reclusão, rodeada por uma cidade silenciosa e cativa, caracóis frágeis ocultos atrás da concha que só mostramos nosso fraco corpo na hora do aplauso, nas sacadas. E vocês o estão lendo duas semanas depois, ainda trancados e, receio, com muitos dias de clausura pela frente. Imagino a mim mesma dentro 15 dias, junto com vocês; as raízes brancas dos meus cabelos tingidos estarão mais crescidas e serão um memento da fugacidade da vida (que grisalhos muitos de nós sairemos do isolamento; pensando bem, o debate sobre a abertura dos salões de cabeleireiros era existencial). Mas, fora isso, suponho que tudo será mais ou menos igual. Continuaremos navegando pelas águas profundas do intenso tempo da peste.

Com que facilidade o coronavírus levou essa miragem de segurança e de controle em que vivíamos nas sociedades modernas. É uma derrota especialmente humilhante porque o vírus é um pontinho tão diminuto que não se vê com microscópios ópticos. É um caroço de ácido nucleico e proteína que nem sequer está totalmente vivo: é como o zumbi dos agentes infecciosos. E essa ninharia derrubou o planeta. A humildade deve ser nosso primeiro aprendizado.

Às vezes, sobretudo quando jovem, quando ainda ignorava muito de mim mesma, eu me perguntava como teria reagido em certas situações históricas críticas. Na Alemanha nazista, por exemplo: teria sido capaz de esconder um judeu, com o perigo que isso representava? Pois bem, agora estamos enfrentando nossa circunstância crítica. É uma prova tremenda, inesperada. É a nossa prova. O resto de nossos dias ficará marcado pelo que fizemos ou não fizemos, pela forma como nos comportamos nesta anomalia colossal.

Falo desses descerebrados, nada solidários, que se foram a abarrotar e infectar praias como se estivessem de férias (a propósito: eram uma minoria da população de Madri; cair no estereótipo do ódio ao madrilenho é outra atitude descerebrada); esses garotos ignorantes que brincam de burlar a autoridade e se reúnem nos apartamentos dos amigos (vocês são potenciais assassinos); esses espertalhões egoístas que esvaziam os supermercados; esses canalhas que se disfarçam de médicos para entrar nas casas para roubar. Ou esses miseráveis que criam notícias falsas sobre a Covid (acabo de escutar o áudio de uma suposta doutora despejando torrentes de dados mentirosos para justificar que devemos abandonar o isolamento). Todos esses indivíduos, em suma, cada um na sua medida, escolheram passar à história, sua própria história e memória, como uns porcos.

Mas não me refiro apenas à esfera social. O maior desafio é o interior. Como viver a vida quando você fica sem truques defensivos ou disfarces? A vida crua e limpa no lento e incandescente tempo da peste. Entre os piadas maravilhosas e reconfortantes que circulam nas redes (bendita tecnologia que nos une), recebi esta: "Uma amiga diz que, com este isolamento em casa, tem conversado um bom tempo com o marido e o achou muito simpático".

Esta é a questão: tentemos achar-nos simpáticos. Ou tentemos simplesmente nos achar. Quando o barulho e o movimento incessante param, fica o real. Aguentar semanas com crianças que você costuma encostar em algum lugar. Conviver de verdade com o seu companheiro em um espaço estreito e aprender não só a escutá-lo, mas também a respeitar sua ausência na presença. Suportar a sua solidão, se você mora sozinho, e conseguir se sentir confortável nela. E, acima de tudo, gerenciar bem o tempo. Em vez de perdê-lo, queimá-lo, jogá-lo fora (a vida é isso que acontece enquanto nos ocupamos com outra coisa, de acordo com uma suposta frase de John Lennon), como fazíamos na agitação da normalidade, agora temos uma oportunidade única para habitar o presente. Para preencher de consciência e vontade cada minuto. Para discernir entre o essencial e o supérfluo. Vamos tentar fazer com que esta prova e a dolorosa ressaca econômica que virá, nos ensine pelo menos a ser um pouco melhores.

Nem os genocidas

É na crise que surgem os líderes. Os incendiários não serão lembrados pela história
Chico Rodrigues (DEM), vice-líder do governo no Senado

Falta saber quem telefonou a Bolsonaro e mandou sustar a demissão do ministro

Após anunciar a seus assessores no Planalto que iria demitir o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, sob alegação de que ele insiste em defender o padrão internacional e nacional para controle do coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro mandou convocar uma reunião ministerial às 17 horas, decidido a humilhar Mandetta perante o colegiado. Eufórico e exultante, o secretário informal da Comunicação Social, Carlos Bolsonaro, ordenou que os assessores “vazassem” a notícia. Foi um erro de jornalista amador, que não sabe a hora certa de passar a informação.

A demissão era certa, mas um dos telefones celulares tocou no gabinete, Bolsonaro atendeu e teve uma das maiores decepções de sua vida, porque recebeu a ordem de manter o ministro da Saúde. Foi uma ordem, a palavra é esta, mesmo.

Desconcertado, o presidente rumou para a sala de reuniões ministeriais e tocou o barco, como dizia Ricardo Boechat. O que aconteceu lá dentro ninguém quer informar, mas vamos acabar sabendo, porque, em tempo de imprensa livre, tudo acaba sendo revelado.

A única informação concreta foi dada pelo vice-presidente Hamilton Mourão, ao atender a um telefonema da repórter Andréia Sadi, da TV Globo. Com seu estilo de jamais deixar uma pergunta sem resposta, o general foi sintético: “Mandetta segue no combate, ele fica. Tratamentos de cenários, como a flexibilização do isolamento, no futuro”.

Ou seja, Bolsonaro saiu derrotado em toda a linha. Além de não conseguir demitir Mandetta, ainda teve de manter as regras de isolamento determinadas pelo Ministério da Saúde com base nas recomendações da Organização Mundial de Saúde. E a sonhada flexibilização, que o presidente da República queria impor por decreto ou medida provisória, passou a ser assunto “no futuro”, na informação do general Mourão.

Na noite desta segunda-feira, Jair Messias Bolsonaro passou a ser o homem mais solitário do planeta. Na imensidão dos jardins do Palácio da Alvorada, ele olhou para a frente, naquele horizonte interminável de Brasília, e tentou antever o futuro, mas não enxergou nada, absolutamente nada.

Ao tentar demitir Mandetta, o presidente da República se comportou de maneira infantil e inconsequente, bem a seu estilo de pensar (?) que é o dono do Brasil, mas este país não pertence a ninguém, é coisa pública (res publica, como diziam os romanos).

De uma só tacada, o chefe do governo conseguiu a façanha de desagradar a pelo menos 76% dos brasileiros, que estão apoiando as decisões do Ministério da Saúde, segundo a pesquisa recentemente divulgada, que a ala ideológica ligada a Bolsonaro contesta e encara como teoria conspiratória…

O presidente descontentou, também, a grande maioria dos deputados e senadores, agindo como se fosse possível governar sem apoio da base aliada, algo inalcançável nos países em desenvolvimento, seja no presidencialismo ou no parlamentarismo.

Além disso, conseguiu decepcionar os ministros do Supremo Tribunal Federal, que também já cansaram de se manifestar a favor da obediência às normas internacionais e nacionais.

E o pior foi decepcionar a oficialidade das Forças Armadas, ao tentar demitir o ministro Mandetta logo após a divulgação do documento oficial do Centro de Estudos Estratégicos do Exército, que recomenda a manutenção do isolamento social adotado pela Organização Mundial de Saúde e pelo Ministério da Saúde, apesar da posição intransigente do presidente da República.

Para os oficiais superiores, Bolsonaro não está se comportando como militar, porque na função de presidente ele teria obrigação de acatar os pareceres técnicos dos especialistas, sobretudo em situação de calamidade. Ao pretender mudar as regras médicas e sanitárias, estaria agindo de forma totalmente irresponsável.

Essa atitude de Bolsonaro foi considerada também uma de provocação ao Supremo, que terá de julgar a notícia-crime contra o presidente, apresentada pelo deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), sob acusação de colocar em risco a saúde da população.

Os sete partidos de oposição ao governo federal (PT, PDT, PSB, PCdoB, PSOL, Rede e PCB) também decidiram ingressar com outra notícia-crime no Supremo contra o presidente, por crime comum, ao descumprir as orientações sanitárias e cumprir admiradores na manhã do dia 29. Ou seja, Bolsonaro está brincando com a verdade, em momento de crise.

O dilema de Bolsonaro

Morreu um brasileiro por hora nos últimos 20 dias de pandemia. É provável que o número de mortos no país aumente para 25 por hora na média dos próximos 180 dias. Em São Paulo, a previsão oficial é de 111 mil mortos até setembro. É o cenário governamental mais suave para os próximos seis meses.

O que faz o presidente? Jair Bolsonaro insuflou uma crise de confiança na sua capacidade de liderar o país na devastação. Talvez consciente da própria inconsciência, resolveu apostar no agravamento da situação.

Ele se esforça para submeter o ministro da Saúde à tortura da humilhação pública. Até agora, só conseguiu aumentar o respaldo a Luiz Mandetta nas pesquisas e o estresse na gerência do socorro à população.



Alguns veem fobia paranoica na fantasia de criar inimigos para afirmar o poder. Outros percebem em Bolsonaro apenas um político oportunista, à procura de dividendos na tragédia, interessado só na reeleição.

Podem ser as duas coisas, mas a insistência de Bolsonaro no falso dilema entre salvar vidas ou a economia, talvez seja ainda mais reveladora sobre o presidente-candidato.

Mostra que, na prática, ele opera com a lógica da busca pelo número “mágico” de vítimas da pandemia — o do total de mortos que imagina “aceitável” pela sociedade em troca de pontos de aumento do PIB.

Incapaz de conduzir políticas que evitem o colapso econômico sem aumentar o número de caixões, recorre à exaltação do seu poder legitimado nas urnas. Porém, a política é cruel, dizia Tancredo Neves: “Voto você teve. Você não tem, você teve”.

Quando, tacitamente, estimula ministros e a parentela a reverberar racismo contra a China, transforma a suposta paranoia em fator de risco ao país, porque os chineses são principais sócios estrangeiros na infraestrutura e compram um terço de tudo que o Brasil exporta. O sinais de prejuízos já são notáveis em redutos de Bolsonaro, dependentes das exportações, e que lhe deram mais de 70% dos votos locais em 2018.

Ao fomentar crises interna e externa em plena pandemia, Bolsonaro passa a flertar com o suicídio político.