terça-feira, 7 de abril de 2020

A pandemia e o pandemônio

Nunca antes, o prefixo grego “pan” foi tão usado. E haja opinião sobre um bicho invisível que ainda não foi vencido pela ciência. Neste vazio, não faltam metáforas, reflexões filosóficas e uma delas me chamou atenção: a frase do Presidente no encontro matinal do “café com sal”, compartilhado com os jornalistas: “Vai morrer gente? Vai. Mas um dia todo mundo vai morrer”.

Que originalidade! Que profundidade! Tradução: diante do inevitável, vamos tocar a vida, dançando entre a pandemia e o pandemônio. Ao falar sobre a morte, o presidente usou a “detestável” filosofia alinhado a famosos colegas: Epícteto: “Todas as interrogações têm uma única fonte: o medo da morte”; Montaigne: “Filosofar é aprender a morrer”; Spinoza: “O sábio é aquele que morre menos do que o tolo”.


Desnecessária, a mensagem fatalista. O Humano tem certeza de sua finitude; conta o tempo e tem pavor a perder tudo a que se apega; busca a “tábua salvífica”, certeza que a Religião lhe oferece pelo caminho da fé; ou a filosofia que oferece o caminho da razão, o espírito crítico que leva o filósofo ao terreno da dúvida e o liberta da tutela divina.

Neste sentido, o romance de autoria do Nobel José Saramago (1922-2010), "As Intermitências da Morte", é fascinante. Pessimista indisfarçável, disse numa entrevista: “Não sou pessimista. O mundo é que é péssimo”. Pois bem, a imaginação ficcional do autor criou um país em que ninguém morre e, com exemplos irônicos, perturbações generalizadas, demonstra que a ausência da morte tornaria impossível a vida.

Na obra de Saramago, o flagelo é a imortalidade; na do Nobel Albert Camus (1913-1960), "A Peste", é a mortalidade na cidade de Oran, transmitida pelos ratos defuntos com velocidade devastadora. Calamidade não bate na porta, entra e vai tomando conta dos corpos, com apetite macabro, espalhando dores, mortes, desespero e juntando sentimentos de absurdo e revolta.

Nessa junção, o filósofo do absurdo e da revolta – Camus – transforma seus pensamentos em personagens de dimensão real e simbólica. Não é por outra razão que o livro setentão (1947), best-seller, estaria de quarentena senão fosse clássico. O forte simbolismo tem como personagem/relator o médico Bernard Rieux, um racionalista e, como contraponto, o obscurantismo dogmático do Padre Paneloux. No Brasil, a história se repete.

Em Oran, peste foi vencida. Rieux aprendeu: “No flagelo, há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar”.

A pandemia será vencida a um custo sem precedentes. Diferente das guerras, sobre elas não atua a perversão do tirano genocida. O que é natural é o micróbio. O resto, saúde, integridade, pureza é um efeito da vontade, de uma vontade que não deve jamais nos deter.
Ainda assim, a sobrevivência deve ser acompanhada pela modéstia, porque, o Dr. Rieux, incansável no incerto ofício de curar, alerta para ignorância ativa: “o bacilo da peste não morre, nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e nas roupas, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús nos lenços e na papelada .... um dia para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz”.

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