domingo, 19 de abril de 2020

Os mortos de Bolsonaro

Jair Bolsonaro não é economista, historiador, sociólogo, advogado ou médico, o que lhe daria pelo menos instrução básica. Também não é empresário, fazendeiro ou banqueiro, com o que teria alguma visão do país. Sempre foi um político menor e da Velha Política —que, como candidato, fingia combater e, no Planalto, pratica nas barbas de seus seguidores.

Velho político, Bolsonaro deveria perceber uma oportunidade quando ela se apresentasse. Com a dissolução da economia, do meio ambiente, das relações exteriores, da educação e da cultura em seu governo, a Covid-19 seria um inimigo ideal a enfrentar —numa luta em que ele teria o país a seu favor e que, caso vitoriosa, apagaria as brutalidades que já cometeu.


No passado, outro presidente, Rodrigues Alves, sobre quem não pairava a menor nódoa, passou à história como o governante que mais combateu as epidemias no país. Em sua gestão, 1902-06, ele erradicou a febre amarela e a peste bubônica e, mesmo com enorme desgaste político, impôs a vacina obrigatória contra a varíola. Foram campanhas vitoriosas, graças ao homem que as criou e coordenou: seu diretor-geral da Saúde Pública, Oswaldo Cruz, nomeado por ele. Não havia ciúme —eles lutavam a favor da vida.

Bolsonaro, ao contrário, prefere lutar a favor de sua miserável campanha pela reeleição em 2022. O preço disso já se faz sentir. O Comando da 1ª Região Militar, no Rio, está mandando os postos de recrutamento contar as sepulturas do estado. Também no Rio, o cemitério de S. Francisco Xavier apressa a construção de 2.000 gavetas. No de Vila Formosa, em São Paulo, o maior da América Latina, os enterros estão sendo feitos em covas rasas e têm de levar no máximo dez minutos. Nos hospitais de Manaus, já há cadáveres no chão ao lado de pacientes nos leitos.

O país se torna um enorme jazigo ao ar livre. São os mortos da Covid —e de Bolsonaro.
Ruy Castro

O que aflige o presidente

Há pouco mais de um mês, Jair Bolsonaro admitiu o que realmente o aflige na pandemia do coronavírus. O presidente não está preocupado com a escalada da doença, a escassez de testes ou o risco de colapso nos hospitais. Ele só pensa na própria popularidade, que julga ameaçada pela retração econômica.

Aconselhado por empresários sem escrúpulos e por um Posto Ipiranga sem combustível, o capitão se convenceu de que a recessão fará sua base eleitoral derreter. Com isso, também iria pelo ralo o sonho do segundo mandato. “Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo”, desabafou, em entrevista à Rádio Bandeirantes.

Bolsonaro fez a declaração em 16 de março, véspera da primeira morte pela Covid-19 no país. Desde então, ele se lançou em campanha contra a ciência, a medicina e o consenso internacional em torno das medidas de isolamento. A cruzada culminou na demissão do ministro da Saúde, quando o país ultrapassava a marca de duas mil vítimas da infecção.

Para quem não consegue dimensionar a tragédia em curso, vale lembrar que o maior acidente aéreo em solo brasileiro, a queda de um Airbus da TAM em Congonhas, matou 199 pessoas. Em um mês, o coronavírus produziu um saldo de vítimas equivalente a dez aviões. Agora a conta cresce em ritmo superior a um avião por dia. Só na sexta-feira, foram 217 mortos.

Se tirasse os olhos do WhatsApp para examinar o noticiário internacional, Bolsonaro veria que seu cálculo está furado. Em países que devem sofrer uma retração econômica maior que a nossa, a popularidade dos governantes cresceu na pandemia. Isso ocorreu em países como Itália, França e Espanha, para os quais o FMI projeta quedas entre 7,2% e 9,1% do PIB. O tombo previsto para o Brasil é de 5,9%.

A aprovação de Conte, Macron e Sánchez cresceu porque os três apostaram em quarentenas rígidas. Com isso, indicaram que sua prioridade é salvar vidas, mesmo que isso retarde um pouco a retomada da economia. Os governos têm ferramentas para acelerar o crescimento, mas ainda não dispõem de meios para ressuscitar os mortos.

Ao empossar o novo ministro da Saúde, o capitão admitiu que sua estratégia tem um problema. “Essa briga de começar a abrir o comércio é um risco que eu corro, porque se agravar vem para o meu colo”, disse. Como sempre, Bolsonaro se referia ao risco de perder votos. O risco de perder a vida ele empurra para a população.

Keynes ético

O coronavírus trouxe a percepção de que a economia deve ter compromisso com a solidariedade. Mesmo veículos como “The Economist” e “Financial Times” têm manifestado a necessidade de uma reorientação na relação da economia com a sociedade, para enfrentar a tragédia da pobreza e do meio ambiente. Percebe-se a indecência da concentração de renda, da persistência da pobreza, da barbaridade dos “mediterrâneos invisíveis” barrando os pobres para proteger aos ricos. Na crise econômica do coronavírus, até os mais arraigados defensores do liberalismo econômico a qualquer custo passaram a sustentar políticas e gastos públicos para atender a necessidades da saúde, assegurar renda, recuperar empregos e proteger empresas. Passaram a apoiar medidas keynesianas, mesmo ao custo da emissão de moedas e alargamento da dívida pública.

Descobriu-se que respirar e comer são igualmente importantes para a saúde e a vida, mas o oxigênio é mais urgente que a comida. Da mesma forma que na guerra em que a produção de armas e o salário dos soldados são mais urgentes do que a produção de automóveis e o salário dos operários. Por isso mesmo, passaram a chamar essas estratégias de economia de guerra. Este exemplo correto para os tempos da pandemia do coronavírus deveria servir para o momento posterior: uma economia de guerra para superar a persistência da pobreza. E enfrentar as outras epidemias que nos contaminam há séculos: 100 milhões de pessoas sem tratamento de esgoto, 35 milhões sem água, 12 milhões sem saber ler, 70 milhões sem educação de base, 13 milhões de desempregados, milhares com dengue, malária e sarampo. A economia de guerra adotada para enfrentar as consequências do coronavírus deve dar lugar a outra economia de guerra para enfrentar o “politicus vírus” que contamina as prioridades dos nossos gastos públicos.

Essa economia precisa entender que a pobreza não se erradica por transferência de renda mínima. O que eliminaria a pobreza é fazer com que todos tenham acesso aos bens e serviços essenciais a uma vida digna: educação de qualidade, água e esgoto, serviço de saúde eficiente, transporte urbano de qualidade e uma renda mínima. Uma solução é oferecer renda, condicionada a que a população pobre produza o que ela precisa para sair da pobreza: contratada para a construção de escolas, saneamento, sistemas de coleta de lixo, podendo consertar e pintar suas casas em terrenos com a propriedade assegurada por uma reforma da estrutura fundiária urbana, recebendo bolsas para garantir a permanência dos filhos na escola ou para os adultos serem alfabetizados. Isso é um keynesianismo produtivo e social.

Enquanto no keynesianismo tradicional dos países ricos o governo transfere renda para o beneficiado não produzir mercadoria, e o mercado oferece os bens privados para os pobres, que já contam com os serviços públicos básicos, no keynesianismo produtivo e social o governo promove incentivos sociais, transferência de renda condicionada à produção dos bens e serviços cuja oferta elimina a pobreza.

Passada a pandemia do coronavírus, o populismo vai defender a manutenção das atuais rendas criadas como emergência, sem aproveitar o poder mobilizador dessa transferência para que se produza o que os pobres precisam, em troca da renda. Mas, para que o pobre se beneficie plenamente, é preciso que o custo seja feito com responsabilidade. Quem defendeu a Ciência no enfrentamento da epidemia do coronavírus deve respeitar a aritmética fiscal, porque sem ela os pobres e os jovens pagarão depois o que receberem agora. Com a inflação e a dívida pública, como tem sido feito há décadas. Por isso, para ser eficiente e justo na guerra pela abolição da pobreza, o keynesianismo ético deve ser produtivo, social e responsável.

Homo strepitans

E por acaso ele se cala? Por acaso considera o excepcional desses dias a ponto de conter sua natureza estrepitosa? Considera nada, cala-se nada. Veja os da prefeitura, mal o sol nasce, pondo uma serra elétrica para rasgar o ar da manhã bem debaixo das nossas janelas. O vizinho fazendo um prédio inteiro de gente confinada amargar o gemido da sua furadeira. Do outro lado da rua, faz já quatro dias, alguém corta um piso de cerâmica com outra serra. Então esse trabalho de estorvar lhes vale a vida? Querem se sobrepor ao nosso silêncio, querem arranhar toda pretensão de paz alheia, ensurdecer a alegria incomum dos pássaros nas tardes incomumente despoluídas. Parece um impulso tão colado a esse homem que já faz parte constitutiva de seu ser. Não é o excesso de energia sem vazão de uma criança a jogar bola dentro de um apartamento, não é a fome da alma em lançar música aos quatro ventos, não é de vida represada esse barulho da cidade aparentemente sem movimento. É de uma suprema indiferença. De um diabólico prazer, talvez. Que lhe interessam os céus de repente estonteantes de vermelhos e lilases? Ele não irá parar por nada, a menos que o corpo não aguente. “Viva a cloroquina!”, gritavam os que faziam festa, semana passada, na casa da esquina. O deboche dessa gente comparsa da morte aliciando seu exército de suicidas. Gritam, grunhem, profissionais dos infernos, produzem a trilha sonora da nossa loucura num diligente envenenamento. Se a paz não for de todos, não será de ninguém, é o que parecem dizer também. Que esses dias, afinal, são de guerra, mesmo dentro da primeira manhã cheia de pássaros. Ele, esse homem-serra, homem-martelo, indiferente, está aí para nos lembrar que, sim, mal amanhece, é guerra.

Brasil genocida


Bolsonaro contra todos

O presidente Bolsonaro, insistindo em politizar o combate à Covid-19, continua defendendo a retomada da economia sem base em dados reais, e admite candidamente que se a situação piorar ele será responsabilizado: “É um risco que corro”, disse, como se fosse um herói correndo riscos para salvar o emprego dos mais pobres.

Mas o risco não é dele, não, o risco é nosso, de todo o povo brasileiro, especialmente daqueles mais pobres que supostamente estaria defendendo. Na sua cruzada contra os governadores e os demais poderes da República, Bolsonaro acusa o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, de querer derrubá-lo em conluio com o Supremo Tribunal Federal.

Já havia se lamentado publicamente pelo fato de o STF ter dado aos governadores e prefeitos autonomia para definir regras de defesa sanitária em seus estados e municípios. Num populismo descarado, critica as medidas repressivas dos governos, para fazer com que os recalcitrantes cumpram o isolamento social ficando em casa.


As autoridades têm o poder, dado pela Constituição, de tomar medidas legais contra aqueles que põem em risco a vida da coletividade, tanto que o Código Penal considera crime “infringir determinação do poder publico destinada a impedir a introdução ou propagação de doenças contagiosas”.

Embora ressalvasse que não estava querendo incentivar a desobediência civil, incentivou na prática ao dizer que “prisões ilegais devem ser rechaçadas”. Talvez tenha sido um mero erro de português, mas não há maneira de rechaçar uma ação repressora sem um enfrentamento.

Bolsonaro posa de defensor dos direitos individuais, logo ele, que defende a tortura e a ditadura, vem agora falar em direito de ir e vir, em liberdades individuais. Não passa de uma jogada política arriscadíssima dele, que resolveu acelerar o processo de confronto com os outros poderes da República.

Claramente, sente a necessidade de se impor diante dos outros poderes, e não se conforma com a ideia de que existem limites numa democracia. A briga com o Congresso já é muito longa, mas na quinta-feira, em entrevista à CNN, sugeriu que o deputado Rodrigo Maia queria uma negociação na base da corrupção, e que o Congresso só o deixa trabalhar se fizer concessões não republicanas.

Com isso, joga o povo contra o Congresso e os governadores, numa disputa política que pode nos levar a um beco sem saída. Na democracia, não há como governar contra todas as instituições e todos os poderes. Creio que o espírito reformista continuará prevalecendo, mas o caminho que Bolsonaro está escolhendo para negociar com o Congresso indica mais um erro de estratégia.

Ele está chamando ao Planalto líderes do centrão, oferecendo cargos em troca de apoio parlamentar. Dificilmente conseguirá montar uma maioria estável dessa maneira, e talvez já seja tarde demais para isso. A previsão de que o pico da pandemia ainda está por vir fragiliza sua tentativa de abrir a economia em curto prazo, pois esse gesto temerário poderá deteriorar ainda mais sua imagem pública.

A perspectiva de crescimento do número de infectados e de mortes isolará o país se oficializarmos uma política sanitária contrária às orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS). O presidente Bolsonaro falou em abrir as fronteiras do país, mas do jeito que as coisas vão, temo que os países fronteiriços é que controlarão a entrada e saída pelo Brasil, com receio da medidas de relaxamento sanitário.

Uma coisa é preparar um planejamento para a volta gradativa à normalidade, outra é decidir esse passo sem cumprir as exigências mínimas da própria OMS, que prevê capacidade do sistema de saúde de testagem para controle da transmissão; minimizar surtos em asilos de idosos; administrar a importação dos casos; engajamento da sociedade e prevenção no trabalho e escolas.

Caso aconteça uma saída da quarentena não negociada com toda a sociedade, e apoiada pela maioria, estaremos diante de um impasse constitucional, pois nem o Congresso nem o Supremo aprovarão. Impasse fomentado por Bolsonaro com segundas intenções – de ganhar cada vez mais poderes.

Mortos não dão voto

Mil óbitos são tão importantes como se fossem 200.000. Não podemos minimizar essa situação
Carmen Zanotto (Cidadania-SC)

Um governo ainda pior do que parece

São tantos e tão frequentes os disparates e impropérios ditos pelo presidente Jair Bolsonaro que o país passou a considerá-los normais. Mesmo multiplicadas nestes tempos de coronavírus, as asneiras diárias já nem mais espantam. Mas conseguem, como se calculadas fossem, encobrir o quanto o governo é inepto, pernicioso, ruim.

A gravidade da Covid-19 – 2,2 milhões de infectados e 160 mil mortos no mundo, 2,2 mil no Brasil em apenas um mês, hospitais abarrotados e falta generalizada de equipamentos -, somada aos desatinos cotidianos do presidente, costuma ocupar quase 100% do noticiário. Deixam em segundo plano, longe dos holofotes ou relegados ao pé de página, os absurdos praticados no dia a dia de seu governo.

A começar pela mentira deslavada do presidente quanto à recuperação econômica, que já não acontecia antes do vírus. Afirmar que “estávamos praticamente voando no último trimestre” é desfaçatez, burrice ou ambos. O PIB de 2019 foi de apenas 1,1%, muito aquém do que o seu Posto Ipiranga prometia entregar. E o primeiro trimestre deste ano fechou em março, mês já impactado pelo coronavírus.

A lorota ajuda Bolsonaro a manter o discurso de que a economia pode matar mais do que o vírus, assim como outras sandices - “tem de enfrentar o vírus, não adianta se acovardar, ficar em casa” - o auxiliam a manter o ibope junto ao seu público. Servem ainda para exacerbar a personalidade egocêntrica, alguém incapaz de enxergar além de seu umbigo, nem quando a vida das pessoas está em jogo. “É um risco que corro. Se agravar, vem para o meu colo.”

Felizmente, as instituições, Justiça e Parlamento, e a sociedade têm posto freio no presidente em todas as aloprações que dizem respeito ao coronavírus.

O problema é o resto.



Enquanto o país dirigia os olhos para a exoneração de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde, o governo demitia o presidente do CNPq, João Luiz Filgueiras de Azevedo, que vinha combatendo o esvaziamento do Conselho. Três dias antes, o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, afastava Olivaldi Azevedo, diretor do Ibama, que conduzia uma megaoperação contra madeireiros ilegais em reservas indígenas no sul do Pará.

Para confirmar a sequência de absurdos que regem o bolsonarismo, os dirigentes foram expurgados por excesso de competência, algo incompatível com esse governo.

Na área ambiental são desastres atrás de desastres.

Números do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontam que os alertas de desmatamento na floresta amazônica cresceram 29,9% em março. Uma terra arrasada que alcança 326,51 km² contra 251,3 km² do mesmo mês do ano passado. Também em março, dois jovens morreram baleados em um garimpo ilegal em Aripuanã, a 976 km de Cuiabá. Por lá testemunhas afirmam que a fiscalização faz corpo mole porque aguarda a legalização da área.

Em fevereiro, Bolsonaro assinou projeto de lei autorizando a mineração e a geração de energia em reservas indígenas. Na época, disse que se pudesse confinaria ambientalistas na região amazônica para que eles deixassem “de atrapalhar os amazônidas de dentro das áreas urbanas”. Já defendera na sua live semanal que o índio tinha evoluído, cravando a máxima: “Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós”.

Pouca atenção se dará também ao fato de Bolsonaro ter revogado portarias do Comando Logístico do Exército (Colog) de rastreamento, identificação e marcação de armas de fogo e munições. A canetada supressiva endereçada a um restritíssimo grupo de fãs do clã, serve como luva ao crime organizado, interessado em ocultar a origem de sua artilharia. Mas teve destaque no Twitter do presidente e de seus filhos, como se fosse algo de grande valia para os brasileiros.

É preciso seguir as recomendações ditadas pela ciência, é preciso ficar em casa para reduzir a velocidade de contágio do vírus e evitar a explosão do sistema de saúde. Mas é igualmente preciso manter o índice de indignação. Não deixar a barbaridade ser tratada com complacência e impedir que o desatino seja corriqueiro, normal.

Acima de tudo é preciso estar sempre alerta para não sucumbir diante de um governo obtuso, que tem a desconstrução e o ódio como balizas. Não só no combate à Covid-19, mas em todas as áreas.

Problemas grandes, líderes pequenos

Henry Kissinger pensa que o mundo não será o mesmo depois do coronavírus. “Estamos passando por uma mudança de época”, diz o famoso diplomata, para depois nos alertar que “o desafio histórico para os líderes de hoje é gerir a crise e ao mesmo tempo construir o futuro. Seu fracasso nessa tarefa pode incendiar o mundo.”

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, disse que a relação entre as grandes potências nunca foi tão disfuncional quanto agora, acrescentando que o coronavírus “está revelando dramaticamente que devemos nos unir e trabalhar juntos ou seremos derrotados pela pandemia”. Segundo Martin Wolf, o prestigioso colunista inglês: “Esta é a maior crise que o mundo enfrenta desde a Segunda Guerra Mundial e também é o desastre econômico mais grave desde a depressão dos anos trinta. O mundo chegou a este momento quando existem enormes divisões entre as grandes potências e quando o nível de incompetência nos mais altos níveis governamentais é espantoso”.

Há muitas coisas que não sabemos. Quando teremos uma vacina? Qual será o impacto do vírus nos países pobres onde a superlotação é a norma e ficar em casa sem trabalhar é impossível? O que acontece se a covid-19 vai e vem em diferentes ondas? Mas a pergunta mais preocupante é se aqueles que nos governam estarão à altura. Martin Wolf conclui: “Não conhecemos o futuro. Mas sabemos como deveríamos tentar moldá-lo. Conseguiremos fazer isso? Essa é a pergunta. Tenho muito medo da resposta”.

Falar mal dos líderes políticos é normal. Assim como criticar sua gestão. Mas é preciso ter cuidado com o desdém pelos Governos. A disputa política faz com que a inaptidão e a corrupção daqueles que nos governam sejam exageradas. Governar, vamos reconhecer, é difícil, e está ficando cada vez mais difícil. O poder se tornou mais fácil de obter, mas também mais difícil de usar e, portanto, mais fácil de perder. Às vezes parece que não há como um líder sair bem depois de dirigir um país. Em vez disso, vemos frequentemente líderes honestos e bem-intencionados cujas reputações foram massacradas por seus críticos. E, como sabemos, neste século os ataques políticos são potencializados pelas redes sociais, os bots, os trolls e outras ervas daninhas cibernéticas. É aconselhável sermos cautelosos e prudentes ao criticar nossos governantes.

Tenho tudo isso em mente ao pensar nos líderes que estão no comando do mundo hoje. Apesar dessa cautela, no entanto, é inevitável concluir que o atual grupo de líderes é, de fato, com algumas exceções, patético e perturbador.

Quando a crise financeira global eclodiu em 2008, quem estava no comando do G20 era Gordon Brown, o então primeiro-ministro britânico. Este ano é a vez do rei da Arábia Saudita, que devido à idade avançada e saúde precária delegou o papel ao filho Mohammad bin Salman. Sim, ele mesmo. O que mandou esquartejar um jornalista que o criticava. Este é o líder que deve convocar, mobilizar e coordenar a comunidade internacional para enfrentar o coronavírus e suas consequências econômicas.

Nos EUA, o Conselho Nacional de Economia é a principal fonte de ideias e políticas econômicas do presidente. Desde a sua criação, em 1993, foi liderado por alguns dos economistas norte-americanos de maior prestígio. Donald Trump nomeou Lawrence Kudlow, cuja credencial mais conhecida para o cargo foi ter sido comentarista de assuntos econômicos na televisão. Este não é um caso isolado. O Governo Trump não se destaca pela capacidade e experiência de seus altos funcionários.

Na Europa o panorama em relação à confiança suscitado pelos que hoje estão no poder tampouco é muito inspirador. Uma das coisas de que precisamos dos governantes nestes tempos é que tenham bom senso. Quanta certeza sobre o futuro dão a você as ações e o bom senso mostrado até agora por Boris Johnson, Viktor Orbán, Pedro Sánchez, Pablo Iglesias e Luigi Di Maio? No mundo em desenvolvimento, Jair Bolsonaro, Andrés Manuel López Obrador e Daniel Ortega estão no noticiário por terem negado a pandemia; o presidente filipino, Rodrigo Duterte, por ter ameaçado matar aqueles que não respeitassem a quarentena, e Narendra Modi por usar a desculpa do vírus para aprofundar a discriminação contra os muçulmanos na Índia.

Não quero romantizar o passado, nem sugerir que os líderes de antes sempre foram melhores. Houve de tudo. Tivemos Hitler e Churchill, Mao e Mandela. Mas não há dúvida de que essa pandemia surpreendeu o mundo em momentos de grande fragilidade institucional. As crises fecham muitas portas, mas também abrem outras. Esta crise terá muitas consequências inesperadas. Talvez uma delas seja uma forte reação contra os governantes pequenos e a chegada de líderes que estejam à altura dos grandes problemas que temos.

Pensamento do Dia


A fome como bandeira nas janelas da Colômbia

Nestes dias de cidades adormecidas e silenciosas, as janelas dos bairros mais pobres da Colômbia gritam por ajuda. Pedaços de pano, fantasias infantis ou camisetas vermelhas foram amarrados em paus e pendurados como bandeiras, como o mais doloroso SOS da pobreza e da fome.

Começou em Soacha, nos arredores de Bogotá, o lugar onde moram cerca de 50.000 deslocados pelo conflito armado; o município onde anos atrás o Exército pegou um grupo de garotos pobres, vestiu-os como guerrilheiros e os assassinou; a cidade onde residem milhares de migrantes venezuelanos e na qual 36% da população vive em extrema pobreza. Soacha é hoje, na esteira do coronavírus, um enorme amontoado de trapos vermelhos.
Em Bogotá, janelas exibem panos vermelhos como pedido de ajuda
“Se você vê um pano vermelho na porta de seu vizinho, isso significa um pedido de solidariedade”, diz um anúncio da prefeitura de Soacha, idealizadora dessa estratégia, que revela a desigualdade do confinamento.

− Boa tarde, vizinha − diz uma mulher no vídeo da campanha, aproximando-se de dois idosos. − É que vi seu paninho vermelho e trouxe uma ajudinha.

− Obrigado, que Deus a abençoe − responde outra, que beija um saco de arroz.

A Colômbia é um país patriota. A bandeira é exibida por todo motivo: nas celebrações da independência do país, nos feriados, nas vitórias da seleção. Assim que o coronavírus começou a se espalhar, María Juliana Ruíz, mulher do presidente Iván Duque, pediu que a população pendurasse na janela a bandeira tricolor em sinal de entusiasmo para superar a pandemia. Mas a realidade transformou os panos vermelhos na bandeira que tremula agora. Basta olhar o edifício da Praça La Hoja, no centro de Bogotá. Um prédio de 14 andares onde vivem vítimas do conflito armado cujas janelas estão infestadas de trapos vermelhos, como se fossem um grande grito de fome.

A imagem se repete nos bairros populares de Medellín, onde soam os panelaços e a pessoas saem com bandeiras brancas pintadas de vermelho; na quente Ciénaga (no departamento de Magdalena), no norte do país; ou nas ladeiras confusas da área de Ciudad Bolívar, na capital, onde têm ocorrido protestos populares e repressão policial. Ou no bairro de Bosa Porvenir, também em Bogotá, onde dezenas de pessoas tiraram os panos vermelhos das janelas e saíram com eles às ruas para protestar, agitando-os e cantando o hino da Colômbia. “Somos uma família de nove pessoas e não estamos em nenhuma lista do Governo, tenho uma mulher grávida e duas crianças em casa e não tenho nada para alimentá-las. Por isso estou aqui”, dizia uma mulher enquanto sacudia uma camisa vermelha de pontos brancos.

O ponto em comum é que nessas casas residem pessoas que geralmente vivem de bicos, na informalidade − como 45% dos colombianos −, e com a quarentena obrigatória não podem sair para buscar seu sustento. Como disse o prefeito de Soacha, Juan Carlos Saldarriaga, “podem morrer mais pessoas de fome do que pelo coronavírus”. Mas não são as únicas a usar os panos vermelhos. A prefeitura de Envigado, o município mais rico da Colômbia, pendurou um na entrada de sua sede administrativa. “Nós nos unimos a essa iniciativa popular para pedir uma ajuda mais ágil do Governo nacional e dos empresários”, disse o prefeito Braulio Espinosa.

A chamada “estratégia do pano vermelho”, para promover a solidariedade entre a população, é em si mesma um sinal de protesto. O Governo de Iván Duque anunciou um subsídio de 160.000 pesos (210 reais) e a prefeitura de Bogotá, um de 423.000 pesos (524 reais) a 350.000 famílias. Essa ajuda não foi oferecida a todos os necessitados e, para aqueles que a receberam, o prolongamento da quarentena faz com que seja insuficiente. “Quando íamos chegando, as pessoas gritavam: ‘Chegou o pessoal do censo, ponham o pano vermelho para ver se nos dão alguma coisa’”, contou um jovem funcionário da prefeitura de Bogotá que esteve nas ruas de terra de Cazucá, em Ciudad Bolívar. Lá, como em muitos cantos da Colômbia, os mais vulneráveis parecem estar presos entre duas lajes de cimento que os vão deixando sem ar.

Como ocorre com os símbolos que nascem do povo, os caminhos do pano vermelho são imprevisíveis. Algumas vezes, lembra o velho pano dessa cor que identificava os liberais na Colômbia. Outras vezes, essa ideia de identificar as moradias traz à memória a letra D, de demolição, que o Governo chavista de Nicolás Maduro pintava nas casas dos colombianos deportados da Venezuela.

Assim como o lenço branco das mães da Praça de Maio na Argentina e o verde do direito das mulheres de decidir, o pano vermelho caminha para se tornar a bandeira da desigualdade que ficou exposta com o coronavírus e ultrapassa as fronteiras da Colômbia.

A chance desperdiçada

Onde você estava e o que fez quando o coronavírus matou tanta gente?
Bolsonaro desperdiçou a chance de poder responder que estava na presidência e que liderou o país na penosa luta contra o maior flagelo que se abateu sobre a humanidade neste início de século

Agora é pra valer

‘Tudo sob controle... Não sabemos de quem”, gracejou o vice-presidente Hamilton Mourão para jornalistas à saída da cerimônia de posse do novo ministro da Saúde. Comentário ligeirinho, espirituoso e ferino de quem sabe que não pode ser demitido do cargo pelo presidente da República. Nesta toada a autofagia em Brasília avança mais rápido do que o coronavírus. Em tempos normais, os embates intestinos no poder federal talvez fossem o mais alarmante para este momento de calamidade. Em tempos anormais como agora, eles consomem o resquício de lucidez que o país algum dia achou que tinha.


Quem fica mais nu a cada dia não é apenas o chefe da nação que se pensava rei — é o Brasil cru, sem fantasia, que vai emergir da pandemia. “Vai ser a devastação de uma raça chamada favela”, alerta Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas (Cufa), do Data Favela e da FHolding. Athayde nada tem de incendiário. Ele se faz ouvir por conhecer o universo do qual fala. Em recente entrevista ao “Jornal do Commercio”, elencou as duas únicas opções para os 13,5 milhões que moram em favelas no Brasil — correr ou morrer afogado. “A favela está se contaminando. É gente que não pode parar, mas que ninguém vê...”, disse, referindo-se à base da pirâmide de serviços essenciais sem a qual o resto do país em quarentena entra em colapso. Athayde preferiria não falar de convulsão social, mas adverte que “as pessoas não vão morrer de sede do lado de uma caixa d’água porque ela tem dono”. E conclui: “A pior crise é a crise de perspectiva. A favela não quer desordem, sabe que é ela quem vai tomar o tiro de borracha. Mas ela perde a capacidade de sonhar. Por não ter mais nada, vai fazer o quê?”

Uma amostra do horizonte social se estreitando pode ser visto na tumultuada disponibilização do auxílio emergencial de R$ 600 para os trabalhadores informais mais vulneráveis. Pela previsão inicial do governo, o total de beneficiados alcançaria 51,4 milhões, número já corrigido para mais de 70 milhões, ou 40% da força de trabalho nacional em idade adulta. É tentacular o tamanho desse Brasil carente de rede de amparo que agora sai da invisibilidade e se posta em filas de até 10 horas em frente a agências da Caixa Econômica Federal. É todo um povo fora dos cadastros do governo, ou cujos dados são precários, irregulares, e que sempre viveu na berlinda da cidadania. Uma parcela de povo que tinha mais o que fazer do que regularizar sua pendência eleitoral. Voto obrigatório também dá nisso.

A operação de fazer chegar R$ 600 a esse mundão invisível é das mais complexas, sem dúvida. Como supor que ela seria alcançável apenas via internet, realizável através do preenchimento de um aplicativo de cadastramento? Na aflição de perder a vez, quem ficou horas tentando contornar as dificuldades do sistema tratou de se garantir correndo inutilmente para agências físicas da Caixa e da Receita, formando muralhas humanas hospitaleiras ao vírus. Quem sempre recebeu migalhas confia pouco em promessas.

Mais tarde do que cedo, o fluxo emergencial haverá de se regularizar, mas até lá a Covid-19, nascida na China mais de quatro meses atrás e aportada no Brasil em fevereiro, terá feito outras tantas vítimas. Que haverão de se somar ao passivo social da era anterior ao coronavírus — entre outros, uma fila de espera no INSS de 1,6 milhão de pedidos de benefícios aguardando análise.

O temido colapso das redes públicas de saúde agora bate com impiedade à porta do Brasil. Metade dos leitos de UTI do país, ou quase a metade, está instalada em hospitais privados. Considerando-se que 75% dos brasileiros dependem exclusivamente do SUS, e que é esta faixa da população que começa a ser ceifada pelo vírus, a tragédia anunciada se instala pra valer.

A história já comprovou que ser humano (do verbo ser, não do substantivo “ser humano”) é uma atividade coletiva. Veremos o quanto. A partir desta semana a brutalidade da disseminação da Covid-19 no Brasil começa a exibir suas entranhas. Com a nau em Brasília em modo disfuncional.

O dia seguinte

Peste (1898), Arnold Bocklin
Domingo. Buenos Aires.

As pessoas se lançaram aos supermercados em uma debandada de guerra nuclear. Eu também vou. Para comprar areia para o banheiro das gatas. Não há fila porque é um supermercado chinês, mas estaria igualmente vazio se fosse de italianos ou de espanhóis, só que os chineses têm a má sorte que a nacionalidade se note em seus rostos. À noite eu telefono para o meu pai. Ele está furioso. Ele é apenas 19 anos mais velho do que eu. Diz que meu irmão e seus funcionários querem trancá-lo em casa por medo de que os contagie. Digo a ele que não é por eles, mas por ele, que é ele que não deve ser infectado. Ele grita, indignado: “Eles têm medo, eu não! É uma guerra contra os velhos, um vírus perfeito para aniquilar estorvos”. Penso naquela frase que martelam: “É perigoso para os idosos, não tanto para os jovens”, no alívio que muitos devem sentir ao pensar “Ah, eu tenho 45, 32, 20”. Nos “salvos?” pelo acaso das datas. Tudo o que parecia sólido é menos sólido do que o ar.

Até dias atrás falávamos do avanço da direita, da xenofobia, do nacionalismo, de Trump e de Bolsonaro como as bestas negras. Agora, em um cenário de guerra química, nas varandas da Itália o hino nacional é cantado e até os mais hereges se sentem transtornados de patriotismo, atordoados de emoção, cantando “Estamos prontos para morrer, a Itália chamou”. Os cidadãos clamam a seus Governos que lhes impeçam de viajar, que os vigiem, que fechem as fronteiras, que expulsem os estrangeiros, que a polícia patrulhe. A quarentena obrigatória transformou a delação em orgulho cidadão, a suspeita em solidariedade: “Denunciou o vizinho porque não cumpria a quarentena”. O confinamento é vivido como alívio, o controle social como dever. A distância com o outro como “sinal de amor”.

“Isto é uma marca da peste”, dizia meu avô quando lhe perguntava sobre um buraco que tinha na testa. Ele era sírio. Na Síria tivera “a peste negra”. É provável que tenha sido a mesma que matou a família da minha avó, também síria, que uma manhã de seus 12 anos, foi à missa –eram cristãos ortodoxos– e, quando voltou, “um ar ruim tinha vindo” e descobriu que os irmãos e a mãe estavam mortos. Para salvá-la, a avó a colocou em um navio com destino à Argentina e nunca mais souberam uma da outra. Ela falava daquela manhã fatídica com um pranto que me envergonhava. Se agora minha avó tivesse 12 anos, não teria nenhum lugar para se esconder. Nenhum lugar para ir.

O homem com quem vivo mencionou há alguns meses, quando matavam camelos na Austrália para que não acabassem com a água necessária para apagar incêndios, a frase “rifle sanitário”. Encontro um artigo de 2009, assinado pelo engenheiro Saúl A. Ubici, de Bahía Blanca. Diz que o rifle sanitário tem como objetivo “eliminar animais perigosos para deter o avanço da doença (…) consiste na eliminação pura e simples dos doentes, por precaução. Uma espécie de eutanásia sem consulta para evitar males maiores”. O artigo fala de vacas com febre aftosa.

Não sei que peste meu avô teve, qual delas matou a família da minha avó. Não lamento não ter perguntado a eles. Fico feliz em tê-los acompanhado na agonia, em ter podido mentir-lhes: “Não se preocupe, amanhã você estará melhor”. Fico feliz que eles não tenham morrido como agora fazemos morrer os idosos: sozinhos, talvez com que lembranças, com que medos.

Todos os meus amigos estão longe: na Espanha, no Chile, no México. Penso naquele poema de Borges: “Quem nos dirá de quem, em nosso espaço, / Sem sabê-lo, nos temos despedido?”.

Teremos um mundo depois disso. Mas que mundo teremos depois disso?
Leila Guerriero

Os 'dinossauros'

Ninguém sabe como os dinossauros foram extintos. Entre 208 e 144 milhões de anos atrás, esses animais dominavam os ambientes de terra firme: eram herbívoros, em sua maioria, mas havia algumas espécies carnívoras que se alimentavam de anfíbios, insetos e até mesmo de outros dinossauros. No final do período Cretáceo, foram extintos juntos com diversas outras espécies de animais e plantas. Uma das teorias sobre essa extinção é a de que certos movimentos sofridos pelos continentes provocaram mudanças nas correntes marítimas e também no clima do planeta. Isso teria feito a temperatura baixar, o que causou invernos mais rigorosos. Outra, de que um asteroide colidiu com a Terra e provocou uma catástrofe, com terremotos, tsunamis e incêndios gigantes, que liquidaram a cadeia alimentar. Não existe nenhuma teoria de que tenham sido extintos por uma superbactéria ou um vírus mortal.

Já foram identificadas aproximadamente 3,6 mil espécies de vírus, que podem infectar bactérias, plantas e animais, bem como se instalar e causar doenças ao homem. Gripe, catapora ou varicela, caxumba, dengue, febre amarela, hepatite, rubéola, sarampo, varíola, herpes simples e raiva são as doenças viróticas mais conhecidas. Nenhuma delas se equipara, por exemplo, ao ebola, cuja letalidade é de 90%, ou ao HIV, que já foi de 100% e hoje está sob controle. Ambas não têm vacina reconhecida.

Uma epidemia acontece quando um determinado número de pessoas fica doente e o vírus se propaga exponencialmente. Para os epidemiologistas, o número mágico é 400 para cada 100 mil indivíduos. Esse é o rubicão natural de propagação de um vírus, a partir do qual, na linguagem dos sanitaristas, a epidemia “decola”. As gripes são as epidemias mais comuns, porque seus vírus sofrem permanentes mutações, exigindo campanhas anuais de vacinação. Os antibióticos são utilizados para combater infecções causadas por bactérias, que muitas vezes se propagam em simbiose com os vírus, mas não eliminam os vírus. Por isso, deveriam ter outro nome, talvez antibacterianos, o que facilitaria a vida dos médicos com seus pacientes, que não entendem a diferença entre uma coisa e outra e ficam querendo a medicação.

Os vírus são difíceis de combater. Como os tratamentos quimioterápicos para a infecções virais são limitados, descanso, hidratação e analgésicos são as alternativas mais comuns para reduzir os incômodos das doenças virais, exceto nas infecções respiratórias graves. A cura ocorre, entretanto, porque o sistema de defesa do organismo parasitado passa a produzir anticorpos específicos que combatem o vírus invasor das células. Os vírus são formados por proteínas diferentes daquelas no organismo parasitado, que acabam neutralizadas pelos anticorpos. Assim, caso o vírus invada o organismo novamente, a memória imunológica desencadeará rapidamente uma resposta imune específica contra o vírus, e a doença não se instalará novamente. Quando isso não ocorre, aí, sim, temos um grande problema pela frente.

Vários membros da família Coronaviridae infectam humanos e causam uma infecção respiratória discreta. Alguns membros desta família que infectam animais silvestres, quando transmitidos aos humanos, causam uma Síndrome Respiratória Aguda Severa (Sars), como é o caso do Sars-cov-1, da MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) e do Sars-cov-2, responsável pela atual pandemia denominada Covid-19. O vírus pulou dos morcegos para animais silvestres que, ao chegarem ao mercado de Wuhan, na China, infectaram os homens. As teorias de que os chineses comeram morcegos ou fabricaram o vírus para dominar o mundo são mentirosas e racistas, disseminadas com o propósito de promover uma nova “Guerra Fria” entre o Ocidente e a China.

O mundo já teve outras pandemias, como a gripe espanhola, que matou 50 milhões de pessoas, mas que nem de longe se propagou com a velocidade no novo coronavírus, devido à globalizaçao. No Brasil, estamos vivendo um momento dramático por causa disso, com o sistema de saúde pública em estresse, devido ao aumento rápido do número de casos, com mais de 200 mortes por dia. A situação é delicada: o presidente Jair Bolsonaro é contra a política de isolamento social adotada por governadores e prefeitos para reduzir a velocidade de propagação da doença e preparar o sistema de saúde para receber seu impacto. Substituiu o ministro Luiz Henrique Mandetta pelo oncologista Nelson Teich, no Ministério da Saúde, com o claro propósito de flexibilizar o regime de quarentena e retomar as atividades econômicas paralisadas em razão da epidemia. Acha que 70% da população terão a doença de forma branda, porém, poré,m devem voltar logo ao trabalho para não perderem os empregos. Diz o samba: “quem acha vive se perdendo.”

O risco de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) é real. Mesmo que ocorra a tragédia anunciada, de fato, não devemos temer o fim da espécie. A maioria das pessoas está desenvolvendo seu sistema imunológico para se defender do vírus e com ele conviver, como acontece com outras doenças. O problema é que essas pessoas transmitem o vírus para as demais, inclusive os nossos “dinossauros”, ou seja, os mais idosos, que adquirem lesão pulmonar grave devido à produção de moléculas inflamatórias (citocinas) pelo sistema imune inato e têm também problemas de coagulação, devido à reação inflamatória sistêmica (coagulação intravascular disseminada) ou à produção de anticorpos contra fosfolipídeos (síndrome antifosfolipide).

Enquanto não se tem uma vacina, esses sintomas estão sendo tratados com drogas utilizadas para combater outras doenças, como a cloroquina, usada contra a malária, e drogas anticoagulantes, em especial a heparina. Muitos, porém, não resistem. Ou seja, é melhor os “dinossauros” ficarem bem espertos, em casa.