segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Afronta à cidade e ao cidadão

Faltam menos de três meses para a escolha dos prefeitos e vereadores das 5.570 cidades do país. Nem parece, tamanha a apatia em relação às eleições.

Muitos tentarão culpar a pandemia. Mas os males endêmicos são outros: sistema eleitoral cruel, criado para manter o eleito longe do eleitor, e o voto obrigatório, que desobriga partidos e candidatos de se empenhar em campanhas de convencimento.

Hoje, o embate real, com participação ativa do eleitorado, só ocorre em pequenos municípios onde os candidatos pertencem à comunidade. Um privilégio restrito a apenas 15,5% da população que, segundo o IBGE, vivem em locais com menos de 20 mil habitantes.


Mais da metade dos brasileiros moram em cidades com mais de 100 mil habitantes e 30,2% em aglomerações de mais de 500 mil. Nelas, poucos são os eleitores que conhecem as propostas do político a quem dão o seu voto. Menor ainda é o grupo que lembra em qual vereador votou ou que cobra as promessas não cumpridas pelos postulantes. Não à toa, o voto distrital, puro ou misto, seria a solução para aproximar o eleitor do eleito.

O sistema misto poderia ter sido experimentado neste ano caso a proposta de José Serra (PSDB-SP), que chegou a ser aprovada no Senado, tivesse logrado êxito na Câmara. A ideia era aprimorar a representação testando o distrital na escolha de vereadores em cidades com mais de 200 mil eleitores. Depois, estendê-lo ou não ao pleito de deputados estaduais e federais.

Não vingou à época e tem chances mínimas de ser adotado por mexer na política rasa e de compadrio, nas quais o voto é tratado como troca de favores, e no poder hereditário – avô, pai, filhos, netos, bisnetos se elegendo pelo sobrenome. Tem-se assim gerações de políticos unidos pelo umbigo sem qualquer compromisso com o eleitor. O então deputado Jair Bolsonaro e seu zeros são um exemplo modelar dessa perversa distorção.

Tida e havida como mãe de todas, a reforma política de 2017 foi tímida. Avançou no estabelecimento da cláusula de barreira (que já deveria ter sido implantado anos atrás, mas foi suspensa pelo STF) para impedir a proliferação infinita de partidos políticos, e no fim das coligações para eleições proporcionais, que têm sua estreia neste ano.

Voto distrital ficou no caminho e o facultativo nem mesmo entrou na pauta. Ou seja, a reforma de 2017 ficou longe de aprimorar a relação entre representantes e representados, esses últimos só lembrados nas campanhas eleitorais.

Absurda e hipócrita, a obrigação de ir às urnas deforma o caráter cívico do voto, sendo cada vez mais driblada pela justificativa ou pela multa irrisória (em 2018 foi de R$ 3,50). Números do TSE dão conta de que um terço (32,5%) dos eleitores não compareceram ao segundo turno das eleições municipais de 2016, realizado em 57 cidades.

Há outros fatores que pesam no desinteresse do eleitor. Não é de hoje que o debate municipal, que deveria ser mobilizador por envolver o cotidiano do cidadão, vem perdendo terreno. E tende a piorar.

Quanto mais a polarização nacional se acirra, menos espaço há para questões locais. No embate internético, elas são esmagadas pela satânica mistura do terraplanismo de ideias, notícias falsas e demolição de adversários nas redes sociais, canal que passou a monopolizar a comunicação política.

Questões como postos de saúde, creches, pavimentação, calçadas, transporte público têm audiência baixíssima em um ambiente no qual a sedução se faz com apelos de baixo calão e pela destruição do outro que ousa expor um pensamento diferente.

Político algum nega a essencialidade da eleição municipal para garantir o mandato do deputado, do governador e do presidente da República que se encontrarão com as urnas daqui a dois anos. Até por esse motivo, para muitos deles é melhor que o eleitor vote no candidato aliado sem saber muito sobre ele.

Os adeptos dessa cartilha põem suas fichas na nacionalização do pleito, jogando às favas planos de governo e soluções para problemas locais.

Essa é a aposta dos dois polos extremados – à direita e à esquerda. Farão de tudo para transformar a disputa municipal em um embate entre os pró e os anti-Bolsonaro. Com isso, se safam de firmar compromissos. Desprestigiam as cidades e desrespeitam o eleitor.

Nem um livro a menos

Nunca me esqueci daquele dia. Era novembro de 2013, e em Vigário Geral acontecia a semana de encerramento da Flup (Festa Literária das Periferias). De quarta a domingo, a favela esteve cheia de atividades literárias. Com distribuição de livros, peças de teatro, saraus, além das discussões teóricas na tenda principal.

Eu devia estar voltando de alguma atividade, pois cheguei com a palestra já iniciada. Uma pesquisadora traçava um panorama do mercado editorial brasileiro. Os números no telão abrangiam cerca de três décadas e eram implacáveis: entre os romances publicados, menos de 3% foram escritos por negros ou negras. Lembro de olhar em volta, me perceber cercado de pessoas negras de várias idades que, assim como eu, almejavam a carreira literária. Na hora tive certeza, só havia duas opções: ou estávamos todos nos iludindo naquele processo de formação ou o mercado editorial seria obrigado a mudar para nos receber.





Nos últimos sete anos, apesar de ainda estarmos bem distantes da justiça, muita coisa mudou. Surgiram muitas novas editoras, como a Malê, que é especializada em literatura produzida por pessoas negras e que a cada dia ganha mais espaço e público. Além disso, tivemos o fortalecimento de editoras como a Pallas e a Kapulana que já se dedicavam à literatura africana e toda a diáspora. E a mudança não parou por aí. Um número muito maior de pessoas negras passou a publicar em grandes editoras. Conceição Evaristo recebeu enfim seu merecido reconhecimento em nível nacional. A Flip teve por três anos consecutivos sua lista de mais vendidos encabeçada por pessoas negras.

Esse salto monumental está diretamente ligado a uma outra mudança: de público. Depois de décadas de luta dos movimentos negros, uma série de políticas públicas como a lei de cotas, o ensino da história afro-brasileira nas escolas, os pontos de cultura, entre outras, foram implantadas e possibilitaram essa mudança no público consumidor. A Flup é também um grande exemplo nesse sentido, mais do que “apenas” formar autores nas favelas, o projeto também sempre se preocupou em formar novos leitores.

Lembro de uma resenha que escrevi na “Folha de S. Paulo” sobre o “Efetivo variável”, segundo romance de Jessé Andarilho. Enquanto escrevia o texto, encarava como um trabalho normal. Só quando vi nossos nomes naquelas páginas de jornal, tive a dimensão do significado daquele momento. Pensei em nossos pais, crias de favelas como nós. Quais eram as chances do meu pai escrever uma resenha num jornal importante sobre um livro publicado pelo pai do Jessé na maior editora do país? Percebem o tamanho da mudança numa única geração?

Me faltam dedos nas mãos para contar os amigos próximos que tiveram suas vidas transformadas pela literatura, e que hoje são os próprios agentes da transformação. Seja por suas publicações, seja pelos projetos de leitura, bibliotecas comunitárias, sempre num exercício contínuo de abertura das perspectivas.

A proposta de uma taxa de 12% em cima dos livros com a desculpa de que se trata de um “produto da elite”, nada mais é que a resposta racista de quem sabe muito bem o impacto social provocado pelo empoderamento através da leitura, de quem morre de medo de ver o Brasil mudar.

Geovani Martins

Texto indignado contra a boçalidade de certos grupos da população

Quatro sombras escuras pairam sobre um país solar que nunca puderam ser dissipadas pela nossa consciência e inconsciência coletivas: a sombra do genocídio dos povos originários. Os donos primeiros destas terras. De seis milhões que eram, sobra apenas um milhão. A maioria por não suportar o trabalho escravo ou pelas doenças dos invasores contra as quais não possuíam nem hoje possuem imunidade. A sombra da colonização que depredou nossas terras e florestas e nos tornou sempre dependentes de alguém de fora, impedidos de forjar nosso próprio destino.

A sombra da escravidão, nossa maior vergonha nacional, por termos transformado pessoas trazidas de África em escravos e carvão a ser consumido nos engenhos de cana de açúcar. Jamais vistas como pessoas e filhos e filhas de Deus mas como “peças” a serem compradas e vendidas, construíram quase tudo o que existe neste país. E hoje, tidos por preguiçosos e presos, compõem mais da metade de nossa população, jogados nas periferias; suportam o ódio e o desprezo antes imposto aos seus irmãos e irmãs das senzala e agora transferidos a eles com uma violência tal como mostrou o sociólogo Jessé Souza (A Elite do Atraso: da Escravidão à Lava Jato, 2007 p.67) até perderem o sentido de sua dignidade.

A sombra das elites do atraso que sempre ocuparam o frágil Estado, usando-o para seu benefício. Nunca forjaram um projeto de nação que incluísse a todos, apenas, com as artes perversas da conciliação entre os endinheirados, apenas um projeto só para eles. Não bastava desprezar os marginalizados, mas rachar-lhes as cabeças, caso se levantassem, como ocorreu várias vezes na sua heroica história da resistência e da rebeldia.



Quando um sobrevivente dessa tribulação, por caminhos de pedras e de abismos, chegou a ser presidente e fez alguma coisa para ajudar a seus irmãos e irmãs, logo criaram as condições perversas para destruir sua liderança, excluindo-o da vida pública e, por fim, a ele e a sua sucessora apeá-los do poder. Essa sombra ganhou contornos de “procelosa tempestade e noturna sombra” (Camões) sob o atual governo que não ama a vida, mas exalta a tortura, louva os ditadores, prega o ódio e larga o povo à sua própria sorte, atacado letalmente por um vírus, contra o qual não tem nenhum projeto de salvamento e, desumano, se mostra incapaz de qualquer gesto de solidariedade.

Estas sombras, por serem expressão de desumanização, se aninharam na alma dos brasileiros e brasileiras e raramente puderam conhecer a luz. Agora criaram-se as condições ideológicas e políticas para serem lançadas ao ar como lavas de um vulcão, feitas de boçalidade, de violência social generalizada, de discriminações, de raiva e de ódio de grandes porções da população. Seria injusto culpar a elas. As elites do atraso se internalizaram em suas mentes e corações para fazer que se sintam culpadas de sua sorte e acabem por fazerem seu o projeto deles que, na verdade, é contra eles. O pior que pode acontecer é o oprimido internalizar o opressor com o projeto enganoso de bem estar, sempre lhes sendo negado.

Sérgio Buarque de Holanda em seu conhecido As Raízes do Brasil (1936) difundiu uma expressão mal interpretada em benefício dos poderosos, de que o brasileiro é “o homem cordial” pela lhanesa de seu trato. Mas teve um olho observador e crítico para logo acrescentar que “seria engano supor que essa virtude da cordialidade, possa significar “boas maneiras” e civilidade (p.106-107) e arremata: “A inimizade bem pode ser cordial como a amizade, pois, que uma e outra nascem do coração” (p.107 nota 157).

Pois, no atual momento o “cordial da incivilidade” brasileiro irrompe do coração, mostrando a sua forma perversa de ofensa, calúnia, palavras de baixo calão, fake news, mentiras diretas, ataques violentos a negros, pobres, quilombolas, indígenas, mulheres, LGBTs, políticos de oposição, feitos inimigos e não adversários. Irrompeu, violenta, uma política oficial, ultraconservadora, intolerante, com conotações fascistoides. As mídias sociais servem de arma para todo tipo de ataque, de desinformação, de mentiras que mostram espíritos vingativos, mesquinhos e até perversos. Tudo isso pertence ao outro lado da “cordialidade” brasileira hoje exposta à luz do sol e à execração mundial.

O exemplo vem do próprio governo e de seus fanáticos seguidores. De um presidente se esperaria virtudes cívicas e o testemunho pessoal de valores humanos que gostaria vê-los realizados em seus cidadãos. Ao contrário, seu discurso é eivado de ódio, desprezo, de mentiras e de boçalidade na comunicação. É tão inculto e tacanho que ataca o que é mais caro a uma civilização: sua cultura, seu saber, sua ciência, sua educação, as habilidades de seu povo e o cuidado da saúde e da riqueza ecológica nacional.

Nunca tanta barbárie, nos últimos 50 anos, tomou conta de algum país, como no Brasil, aproximando-o ao nazifascismo alemão e italiano. Estamos expostos à irrisão mundial, feitos país pária, negacionista do que é consenso entre os povos. A degradação chegou ao ponto de o chefe de Estado fazer o humilhante rito de vassalagem e de submissão ao presidente mais bizarro e “estúpido” (P. Krugman) de toda a história norte-americana.

A nossa democracia sempre foi de baixa intensidade. Atualmente se transformou numa farsa. Pois a constituição não é respeitada, as leis são atropeladas e as instituições funcionam somente quando os interesses corporativos são ameaçados. Então a própria justiça se torna conivente face a clamorosas injustiças sociais e ecológicas. Como a expulsão de 450 famílias que ocupavam uma fazenda abandonada, transformando-a em grande produtora de alimentos orgânicos; arranca crianças agarradas a seus cadernos e lhes arrasa a escola; tolera o desmatamento e as queimadas do Pantanal e da floresta amazônica e o risco de genocídio de inteiras nações indígenas, indefesas face ao covid-19.

É humilhante constatar que não haja da parte das mais altas autoridades a coragem patriótica para encaminhar, dentro da legalidade jurídica, a destituição ou o impeachment de um presidente que mostra sinais inequívocos de incapacidade política, ética e psicológica para presidir uma nação das proporções do Brasil. Podem fazer-se ameaças diretas à mais alta Corte, de fechá-la. Fazer proclamas à volta ao regime de exceção com a repressão estatal que implica e nada acontece por razões arcanas.
Elemento de classe

As oposições, duramente difamadas e vigiadas, não conseguem criar uma frente compartilhada para opor-se à insensatez do poder atual.

A brutalização nas relações sociais e especialmente entre o povo simples não deve ser imputada a ele, mas às classes oligárquicas do atraso. Elas lograram internalizar neles seus preconceitos e visão obscurantista de mundo. Estas classes nunca permitiram que vingasse aqui um capitalismo civilizado, mas o mantêm como um dos mais selvagens do mundo. Com os apoios dos poderes estatais, jurídicos, midiáticos e policiais para abaterem qualquer oposição organizada. A “racionalidade econômica” se revela desavergonhadamente irracional pelos efeitos maléficos sobre os mais desvalidos e para as políticas sociais destinadas aos socialmente mais sofridos.

Este é um texto indignado. Há momentos em que o intelectual se obriga, por razões de ética e de dignidade de seu ofício, a deixar o lugar do saber acadêmico e vir à praça e externar sua iracúndia sagrada. Para tudo há limites suportáveis. Aqui ultrapassamos a tudo o que é dignamente suportável, sensato, humano e minimamente racional. É a barbárie instituída como política de Estado, envenenando as mentes e os corações de muitos com ódios e rejeições. Levando à frustração e à depressão milhões de compatriotas, num contexto dos mais atrozes. E que tira de nosso meio pelo vírus invisível mais de 100 mil entes queridos. Calar-se equivaleria render-se à razão cínica que, insensível, assiste o desastre nacional. Pode-se perder tudo, menos a dignidade da recusa, da acusação e da rebeldia cordial e intelectual.