terça-feira, 2 de junho de 2020

Brasil cai na real


Frágil América Latina

A vantagem temporária que a América Latina podia ter por receber a pandemia da covid-19 com atraso em relação à Ásia e à Europa está se dissolvendo rapidamente ao topar com os males endêmicos da região: a fragilidade dos sistemas sanitários, a fraqueza do conjunto das instituições e a amplitude da pobreza e da desigualdade. Cabe a isso somar o comportamento errático –em diferentes graus – de alguns de seus governantes, entre os quais se destacam Jair Bolsonaro no Brasil, Andrés Manuel López Obrador no México e Daniel Ortega na Nicarágua. O continente é nestes dias o epicentro da crise. Já foram registradas 50.000 mortes, mas é preciso levar em conta a clara subnotificação de contágios e óbitos. Na verdade, ninguém sabe qual é a profundidade da catástrofe.


É inegável que as cifras oficiais estão, atualmente, muito abaixo do que sofreram sociedades mais desenvolvidas. Mas convém não esquecer que a América Latina se encontra atualmente no meio da tempestade, sem que se aviste com clareza uma mudança de tendência. O México começou nesta segunda a relaxar o distanciamento, com todos seus Estados, menos um, ainda sob máximo risco de transmissão. Seu presidente iniciou no mesmo dia suas turnês políticas, uma péssima mensagem aos cidadãos de que já se voltou asa normalidade.

O Brasil é o quarto país do mundo com mais mortes. Supera os 500.000 contágios. Apesar disso, Bolsonaro aprofunda a sabotagem contra suas próprias autoridades sanitárias, a divisão da sociedade e o desprezo às medidas de proteção, um traço especialmente cruel da sua já complicada personalidade. O Peru atravessa seus piores momentos (antes foi o Equador), a Venezuela cavalga errante nesta enésima crise, e parte da América Central a compartilha com outras epidemias conhecidas. No outro extremo, tanto a Argentina como a Colômbia – especialmente Bogotá e sua prefeita, Claudia López – reagiram de forma imediata e eficiente.

O que está por vir é preocupante: mais contágios e mais mortes, mais desemprego, mais pobreza e mais desigualdade. E provavelmente, mais instabilidade política. A infraestrutura sanitária ainda não se paralisou como ocorreu em partes da Europa ou em Nova York, mas aqui também há matizes. O sistema em seu conjunto já é tão precário que, no México, por exemplo, um número desproporcional de doentes morre sem chegar a uma UTI ou a um leito com ventilador. E a volta à normalidade parece ser uma quimera quando 20% das escolas no México não têm água potável e 45% carecem de esgoto.

Quando os mortos reclamam...

Me deixa abismado e perplexo como alguém no meio de uma pandemia, com mais de 30 mil mortes, com a economia caindo 7%, alguém possa estar preocupado com eleição para Presidência da Câmara ou do Senado
Rodrigo Maia, presidente da Câmara

Decálogo da catástrofe

‘O ovo da serpente” é um filme magistral dirigido por I. Bergman, ambientado na Alemanha que sucedeu à Primeira Guerra Mundial. Ele expõe a origem insidiosa do mal e serve para entender as raízes do que aconteceu naquele país nos anos 30 e 40.

Nesse sentido, gostaria de compartilhar com os leitores o efeito que produziu em mim a leitura de “M —o filho do século”, de A. Scurati, que apresenta com meticulosidade de historiador o quadro político e social italiano em 1919/1920, quando estava despontando a figura de Mussolini. O que impressiona no relato é a percepção de que este representava a expressão de uma série de desejos latentes em parte da sociedade, fruto da situação do imediato pós-guerra e que indicavam sintomas de uma patologia social. O resto foi consequência. O final da história é conhecido, mas entre o cenário inicial retratado por Scurati e o fim, a Itália viveu os seus dias mais negros, durante 25 anos. O que vou reproduzir nos próximos parágrafos deveria provocar uma reflexão. Há vários traços distintivos daquela situação, entre os quais destaco os seguintes, sempre com a citação de trechos-chave, copiados do livro:


1) O combate à neutralidade (os “isentões!”): critica-se “os moderados e seu bom senso, a quem desde sempre devemos nossa desgraça” (página 11). E explicita-se: “A luta não admite uma terceira opção, nenhuma neutralidade. Nada de espectadores!” (p.37).

2) O ódio: a descrição que o livro aplica a vários dos personagens que compõem as figuras de proa do fascismo é inequívoca: como o líder, cada um deles é um “odiador profissional” (p.23). A descrição é complementada páginas mais tarde: “Entre eles e o passado, ergue-se um muro de ódio, desprezo e sangue” (p.62).

3) O culto à morte. Na descrição das lutas políticas entre grupos polarizados, chamando a atenção para o fato de que no núcleo do fascismo estava parte dos combatentes da Primeira Guerra — então desempregados. Scurati diagnostica: “É a relação diferente que os dois grupos têm com a morte o que cava um abismo entre eles” (p. 37). É nesse contexto que ele descreve a cena de um dos personagens, almoçando e insistindo, “entre uma bocada e outra, em verificar o funcionamento do seu revólver com o tambor carregado” (p.41).

4) o isolamento do líder. Há uma passagem especial, em que o autor descreve num capítulo a relação (ou falta dela) entre Mussolini e o resto das pessoas, cuja última frase é: “Uma distância intransponível o separa do gênero humano” (p.42).

5) O recurso às ameaças. Estas aparecem em diversas passagens, das quais destaco a seguinte proclamação afixada num muro de Milão na época, dirigida aos “combatentes vitoriosos que devem, e vão, dirigir sozinhos, custe o que custar, a nova Itália. Não provocaremos, mas, se formos provocados, acrescentaremos alguns meses aos nossos quatro anos de guerra” (p.43).

6) A rejeição da concórdia. Scurati cita a carta de um dos líderes intelectuais do movimento, na qual ele escreve, explicitamente, que “para mim e para os nossos pares, a paz é hoje uma desgraça” (p.50).

7) A confusão mental. Este é um dos traços mais marcantes da construção dos personagens. Diz o autor, acerca de um dos tipos: “é um fanático que não sabe viver sem elaborar planos de vingança”. E logo depois, sobre outro, registra: “não tem uma única ideia na cabeça e, por isso, é um ótimo orador” (p.62);

8) A crítica aos partidos: “Quem são os fascistas? O que eles são? São algo novo, inédito, um antipartido. Fazem antipolítica” (p.64).

9) O ressentimento: “Trata-se apenas de fomentar as facções, exasperar os ressentimentos” (p.64).

10) A falta de rumos: a massa de manobra do fascismo é composta por aqueles que “não têm noção de futuro, não sabem onde desaguar... Seu verdadeiro programa está contido na palavra ‘combate’” (p.64/65).

É um decálogo da catástrofe. “M” é, provavelmente, um dos livros que mais me impressionaram em quase cinco décadas como leitor. Recomendo a leitura.

Quem paga a conta da campanha de Bolsonaro à reeleição

E no final de outubro de 2022, se resistir até lá na presidência, e caso tenha sido candidato outra vez e reeleito no segundo turno, Jair Bolsonaro dirá que a sua campanha foi a mais barata de todas. Disse a mesma coisa ao se eleger presidente pela primeira vez.

Também pudera se disser. Nem Fernando Henrique Cardoso, nem Lula que o sucedeu, nem Dilma Rousseff se comportaram como candidatos à reeleição desde o primeiro dia em que puseram os pés no Palácio do Planalto. Só Bolsonaro, e ostensivamente.

Ele se recusa a descer do palanque desde que levou a facada em Juiz de Fora. Recuperou-se da facada em cima de um palanque virtual. Por falta de preparo e de gosto para as atividades do cargo, não governa. É candidato a não governar pela segunda vez.

Como tal, usa todo o aparelho estatal ao seu alcance para realizar o único objetivo que de fato o atrai. E ao fazê-lo, abusa do poder que lhe foi concedido. Quem paga a conta? Quem paga literalmente a conta? Os contribuintes que pagam impostos.

Quanto custa aos cofres públicos cada saída de Bolsonaro para tomar cafezinho e confraternizar com devotos nos arredores de Brasília? Cada saída mobiliza um grande contingente de seguranças, de carros e de outros equipamentos visíveis e ocultos.

No último domingo, para vencer os quatro quilômetros que separam os palácios da Alvorada e do Planalto, dois helicópteros da Força Aérea Brasileira foram postos à sua disposição. Ele dispensou o primeiro porque era completamente fechado. Quem o notaria?

Providenciou-se o segundo, com uma saída lateral que poderia ser escancarada, como foi, para que ele, do alto, pudesse ser visto e acenar para algumas centenas de bolsonaristas reunidos na Esplanada dos Ministérios. O Messias que vem do céu!

Uma vez na terra, depois de 20 minutos de cumprimentos aos manifestantes que pediam o fechamento do Supremo Tribunal Federal e uma nova intervenção militar no país, montou em um cavalo da Polícia Militar e cavalgou para ser filmado. Quase perdeu as rédeas do animal.

Quanto custou tudo isso? A despesa será debitada no cartão de crédito da presidência da República, mas jamais será conhecida. São despesas consideradas secretas. Se reveladas, poderiam pôr em risco a segurança do presidente. É isso o que dizem os áulicos.

Ao seu lado no helicóptero estava o general Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa. Não seria relevante monetizar o custo do passeio do general. Sua presença em um ato de apoio ao presidente candidato implica em custo político – e esse simplesmente não tem preço.

Está nos manuais: compete ao ministro da Defesa exercer a direção superior das Forças Armadas. Exército, Marinha e Aeronáutica tem seus comandantes. Mas eles se reportam ao general Azedo e Silva que, por sua vez, se reporta ao presidente da República.

Quantas vezes Bolsonaro já não proclamou que as Forças Armadas o apoiam? Ao exibir-se com o ministro que as dirige, em manifestação de cunho político e eleitoral, ele passa a mensagem de que conta com o apoio dos militares para governar e se reeleger.

Correu a informação de que Azevedo e Silva pegara carona no helicóptero de Bolsonaro para ir para casa. Como a desculpa soou absurda, o Ministério da Defesa informou que o general aproveitou o sobrevoo para observar as condições de segurança da Esplanada.

O Poder e a Mentira são indissociáveis. Especialmente neste governo onde um presidente tosco é flagrado mentindo toscamente quase todo dia. No passado, Bolsonaro emporcalhou a farda de soldado. Hoje, emporcalha a farda dos generais que se deixam emporcalhar.

Azevedo e Silva foi obrigado por seus companheiros de organização a emitir nos últimos 40 dias três notas oficiais para explicar o que fez ou o que deixou de fazer, o que disse ou o que quis dizer. Não será surpresa se mais uma nota vier por aí.

Pensamento do Dia


Bolsonaro usa recursos e símbolos

O presidente Jair Bolsonaro tem usado recursos públicos e símbolos militares para fazer campanha política. A eleição é só em 2022, mas ele jamais saiu do palanque. A ida a manifestações não é um ato da administração do país, é de um candidato. A armadilha em que o Brasil está é que ele, como presidente, pode requisitar helicópteros para fazer seus deslocamentos, mas teria que ser para o exercício do cargo. Evidentemente ele quer usar isso como símbolo de força e poder para estimular seus apoiadores, tanto que nesse domingo usou não um dos veículos da Presidência, mas da Aeronáutica.

Ele usa esses símbolos deliberadamente. Não é necessário helicóptero entre o Alvorada e o Planalto, pouco mais de quatro quilômetros distantes um do outro, cerca de cinco minutos de carro. Mas ele quis fazer sobrevoos exibicionistas. A bordo, levou o ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo, presença absolutamente inconveniente neste momento em que o país está diante de velhos fantasmas de rupturas institucionais que este governo reavivou. O general Azevedo tem dado sinais muito ruins.


A propósito da coluna de domingo, em que o historiador José Murilo de Carvalho disse que “os erros (do governo Bolsonaro) terão a cor verde-oliva”, um oficial general me disse o seguinte: “A imagem das Forças Armadas (do verde-oliva, mas não exclusivamente) foi afetada? Sim. Indelevelmente? Não.” Ele acha que a geração que chegou aos comandos agora aprendeu a conviver com a suposta “dubiedade” do artigo 142 da Constituição. “E saiu-se bem quando confrontada com os antagonismos naturais ocorridos no amadurecimento da democracia brasileira.” É verdade. Saiu-se bem. Até agora.

Os militares que estão no governo costumam minimizar as ameaças que o presidente tem feito às instituições falando em “arroubos” e “figuras de retórica”, ou então que “ele é assim mesmo”. Tomado ao pé da letra, significa que não se deve levar a sério o presidente da República. Para o vice-presidente Hamilton Mourão, na entrevista ao “Valor”, as ameaças que fez na semana passada — de não respeitar ordens judiciais — foram “um desabafo”. A nota do general Heleno, uma “retórica inflamada dos dois lados”.

Cada ato do presidente é filmado e divulgado para a sua rede social. Quem filma? Um servidor público. O helicóptero usado gasta combustível. Onde será debitado? No cartão corporativo secreto da Presidência. Toda a segurança tem que ser reforçada em torno dele no seu contato com os manifestantes. Quem paga todo esse aparato? O contribuinte. Domingo, ele montou cavalo da Polícia Militar. Queria passar a informação de que também as PMs estão ao seu lado.

As manifestações das quais o presidente participa fazem defesa de crimes. Pedem fechamento do Congresso e do Supremo e intervenção militar. A presença dele significa apoio. Os atos estão sendo investigados pela Procuradoria-Geral da República. Em resumo, Bolsonaro usa dinheiro público, símbolos das Forças Armadas e da Polícia Militar, o poder da Presidência para estimular manifestações contra a democracia, manter sua militância estimulada e fazer campanha eleitoral fora do seu tempo.

Os contra o presidente foram para a rua também no domingo. Não é aconselhável aglomeração, mas o presidente tem ido há sete semanas em atos que o reforçam. A resposta viria. Era previsível que haveria confronto. O temor que está no ar é o de que a Polícia Militar, diante de grupos em conflito, não tenha neutralidade. O deputado federal, ex-PM do Rio, Daniel Silveira (PSL-RJ), vice-líder do governo, postou uma mensagem com ameaça explícita. Depois de xingar os manifestantes contra o governo, ele disse que “tem muito policial armado, e um de vocês vai achar o de vocês. Na hora que vocês vierem, e tomar um no meio da testa ou no meio do peito e cair o primeiro...”

Na entrevista ao “Valor”, o vice-presidente Hamilton Mourão disse: “deixa o cara governar”. Bolsonaro não tem governado porque não quer. Ninguém o impede, a não ser ele mesmo. Poderia ter somado as forças políticas na luta contra o inimigo comum, o coronavírus. Mas politizou e escalou. Criou conflitos com governadores, ministros do Supremo, o presidente da Câmara e com seus ministros. Já tirou três nesta pandemia. Ele não quer governar, ele quer o conflito, a agitação e a propaganda. E o faz com dinheiro público.

Quem faz o que quer....

Comparar o nosso amado Brasil à “Alemanha de Hitler” nazista é algo, no mínimo, inoportuno e infeliz. A Democracia Brasileira não merece isso. Por favor, respeite o Presidente Bolsonaro e tenha mais amor à nossa Pátria!
Luiz Eduardo Ramos, general-ministro da Secretaria de Governo

Cão que late

O Brasil vive sob um governo falastrão. E nefasto. O presidente Jair Bolsonaro cospe besteiras, faz piadas ofensivas sem qualquer graça, arrota bravatas. Vai e volta em subidas e descidas de tom, agressões e desculpas, latidos sem mordida. É o gerador oficial de notícias falsas, portanto, sem condições morais de espernear quanto a investigações sobre falácias virtuais ou presenciais.

É ainda o patrocinador da barafunda institucional em que o país se meteu.

Do “nazismo é um movimento da esquerda”, passando pela “gripezinha” para definir a Covid-19 e outras tantas sandices, até um “Acabou, porra!”, como fosse iminente a ordem de pôr tanques nas ruas, Bolsonaro acelera a indústria da transformação de achismos e mentiras em verdades – cloroquina salva e vamos chegar a 800 mortes no máximo com esse vírus aí são prova disso.

Paralelamente, estende a outras instituições a baderna de seu governo.

Nos últimos dias, a Procuradoria-Geral da República encarnou o papel de Advocacia-Geral da União, que por sua vez se calou diante da usurpação de suas atribuições pelo Ministério da Justiça, defensor do governo na investigação incendiária promovida pela Corte Suprema para apurar a disseminação de notícias falsas.

Na sexta-feira, 29, o país assistiu a uma cena inédita: o ministro da Educação Abraham Weintraub ficou mudo. Arguido pela Polícia Federal, usou o direito ao silêncio. Logo ele, um boquirroto contumaz que pinta e borda nas redes e fora delas, que gostaria de ver todos “esses vagabundos na cadeia, a começar pelo STF”.

Calou-se tarde demais.

Weintraub personifica a identidade do governo. Agride tudo e todos que dele discordam, fala pelos cotovelos e mente descaradamente. Já acusou universidades de manter “extensas plantações de maconha”, divulgando fotos falsas, responde a processo por racismo pela desfeita aos chineses. Mentiu sobre o contingenciamento de verbas para o ensino superior e para a recuperação do Museu Nacional, no Rio, apresentando um vídeo patético em que aparece “cantando na chuva”.

Ainda que pareça imbatível, Weintraub não é o único. Outros auxiliares de Bolsonaro competem na diabólica disputa de produção de absurdos. De “meninas que enfiam a cruz na vagina” ao “rock como indutor das drogas, que induz ao aborto e ao satanismo”, só para citar alguns exemplos.

Muitos dos ditos têm lugar apenas no folclore. Mas as repetidas incitações à violência contra os poderes e a imprensa, multiplicadas geometricamente nas redes pela combinação fanáticos-robôs, e a presença constante do presidente em atos pró-fechamento do Congresso e do Supremo acenderam todos os alertas.

A reação irada de Bolsonaro e dos seus quanto às diligências do inquérito das fake news no âmbito do STF fez o amarelo virar vermelho e a sirene apitar.

Sem qualquer pudor, Eduardo, o filho 03, assegurou que haverá ruptura institucional no país: “o problema não é mais se, mas quando”. Isso em uma live em que o guru bolsonarista Olavo de Carvalho defendeu pena de morte para o ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito no STF.

Além do potencial para desnudar métodos de atuação e financiamento, o complexo sistema de difusão de notícias falsas nas redes pode desnudar o filhote Carlos. E colocar em xeque a própria eleição da chapa Bolsonaro-Mourão em processos já em curso no Tribunal Superior Eleitoral.

Antes de cutucar seus aliados, o governo já não dava a mínima para a pandemia cujo combate deveria liderar. Agora, todas as energias do presidente, incapaz de um único gesto humanitário ou de consolo às famílias atingidas pelo flagelo, estão canalizadas exclusivamente para a autodefesa. Bolsonaro, diga-se, sempre foi assim, mas a cada dia fica mais escancarado que o próprio umbigo é o foco exclusivo dos seus olhos.

No avesso das normas civilizatórias e da democracia, o presidente bagunça instituições públicas, defende armar o povo contra autoridades constituídas e prega a insurreição contra a Justiça, ameaçando não cumprir o que considera “ordens absurdas”.

O bicho pode até ser desdentado, do tipo que só ladra, como parlamentares e ministros do Supremo têm dito na tentativa de apaziguar ânimos. Mas a prudência exige vacina antirrábica, um contundente não ao ódio que o presidente e os seus espalham, o rechaço aos arreganhos autoritários e a união de todos que têm algum juízo.

O Ministério de Ontem

Tem dias que a gente acorda meio molenga, dá uma olhada nas notícias on-line, lê umas coisas nos jornais e fica tentando descobrir em que ano estamos. Está tudo tão antigo, tão ligado a ideias que pareciam mortas e enterradas, a ações já tentadas e vencidas em outros tempos, que, durante uns segundos, a gente pensa que segue amarrado a um sonho que não termina. Sonho, não. Pesadelo. 


Corre pelo mundo uma pandemia danada, matando gente em tudo que é continente. Na China, onde o vírus primeiro apareceu, parece que está tudo sob controle. O que não acontece ainda na Europa, que está quase chegando lá. No Sudeste Asiático e na Nova Zelândia estão os heróis da humanidade, intrépidos vencedores do vírus diabólico. Ele é o único inimigo que devíamos estar enfrentando com empenho, todos juntos, unidos e inseparáveis, porque pode acabar com todos nós, sejamos de que partido formos. De direita, de esquerda ou de todas as tendências de centro. O vírus só reina onde não se tem nenhuma consciência política disso, ali está a crise aguda. 

Na América do Norte, um presidente insensível, que só pensa na reeleição cada vez mais difícil, odiado por todo mundo que ainda crê na viabilidade do amor, resume sua participação na guerra contra o vírus a crises de mau humor com os que censuram suas mentiras virtuais. E, na parte de baixo do continente, a América do Sul inteira fecha suas fronteiras para o perigo que vem do Brasil, isolado dali e do mundo. De nosso país, é que podem chegar os perigos da Covid-19 para nossos vizinhos de língua espanhola, que já tiveram muita inveja de nós e de nosso jeitinho esperto de viver. Hoje, eles nos evitam, como se fôssemos apenas amantes protetores e fiéis do vírus diabólico. A porta aberta para que eles invadam a vizinhança. 

As notícias da manhã me levam a um mundo agendado por uma espécie de Ministério de Ontem, onde a política se repete numa evidente tentativa de golpe de Estado, comandado por gente doente e doida, desta vez eleita, mesmo que ocasionalmente e por engano. Eles não só não nos deixam pensar na luta contra o vírus, nos concentrarmos na defesa de todos nós contra a “gripezinha”, como agem contra toda tentativa de enfrentar o bichinho maldito. Como se o vírus não existisse e não estivesse atrás de nós, é tudo invenção desses comunistas. Enquanto isso, brincam de espingarda na gravata e gritos apopléticos de horror, cada vez que são apanhados em flagrante.

Como não temos partidos em que podemos confiar, com os quais nos identificamos e a eles seguimos, cada vez que temos uma eleição decisiva ficamos diante de escolhas que não sabemos por onde analisar. No meio do caminho, somos muitas vezes obrigados a topar a violência de um impeachment, afastando do governo, por meio de manobras de salão, quem foi eleito pela simpatia espontânea da população. Nas duas últimas vezes em que isso aconteceu na política brasileira, o eleitor já não tinha muita confiança em ter acertado em sua escolha. E isso foi o que nos salvou de uma crise mais longa e mais séria. 

O capitão foi eleito como uma reação da população aos 15 anos do oposto no poder, por causa de grave decepção popular. O número de eleitores arrependidos hoje é imenso. Arrependidos, não. Eleitores que simplesmente deploram não lhes ter sido dada opção mais sã e mais sólida, como alternativa. O primeiro sinal que tive do resultado futuro da eleição de 2018 foi-me dado pelos motoristas de táxi. Todos iam votar no capitão. Agora, antes da quarentena, todos afirmavam sua decepção com o voto que deram. Mas sempre acrescentando a pergunta melancólica: mas eu ia votar em quem? 

A nós, que prestamos mais atenção, sempre nos ocorreu o que podia acontecer. Ou ninguém se lembra que, graças aos apresentadores do “Jornal Nacional”, os espectadores não viram as páginas abertas da “cartilha sexual” que o Ministério da Educação do governo anterior havia preparado para as crianças, onde a chupeta tinha uma forma de pênis? Foi o casal de jornalistas que não deixou que o então candidato mostrasse a cartilha pervertida, típico objeto de fake news para as câmeras. Em grande parte, quem ganhou a eleição graças a esses disparates receia que eles sejam agora criminalizados.

Insisto que, se o cara foi eleito democraticamente, mesmo que por engano (a democracia, às vezes, também se engana), temos que respeitar esse resultado, sempre atentos ao que ele pode aprontar. Serão mais dois anos e meio de desacertos, sustos e ameaças. A não ser que ele pise na bola mais gravemente, o que se há de fazer?
Cacá Diegues

De volta às ruas, outra vez em defesa da democracia ameaçada

Quando será mesmo que o general Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, emitirá mais uma nota oficial para dizer em nome das Forças Armadas que elas não apoiam o governo do capitão que expulsaram dos seus quadros por indisciplina e conduta antiética, mas que apoiam, sim, a Constituição e a ela continuarão fieis?

Nos últimos 40 dias, ou menos do que isso, foram três notas oficiais com esse mesmo teor, cada uma mais vaga e ambígua do que a outra. O problema é que Azevedo e Silva virou um militante político bolsonarista, de resto como os demais generais ministros do governo, alguns postos originalmente ali para deter os excessos do presidente acidental.


Diga-se: os excessos e a fome de poder do mau militar, assim classificado pelo ex-presidente Ernesto Geisel, que no passado, planejou atentados à bomba contra quarteis para reivindicar aumento de salários para a soldadesca. Às escondidas dos seus superiores, ele complementava o seu soldo associando-se a garimpeiros no antigo Estado do Mato Grosso.

Agora, às claras, sob o estímulo da farda que um dia avacalhou com seus atos, Bolsonaro subverte a ordem que as Forças Armadas dizem que prezam, semeia o ódio entre os seus devotos e tenta abastardar as demais instituições da República. Nos fins de semana, a Praça dos Três Poderes, em Brasília, transformou-se em palco exclusivo dos seus delírios.

A essa altura, a quarta nota do general já não apascentará os espíritos inquietos dos que assistem ao avanço do autoritarismo sobre a democracia duramente reconquistada. Está viva na memória do país as muitas vezes que os militares bancaram aventuras golpistas – a mais recente, em 1964, a pretexto de salvarem a democracia ameaçada.

Por formação, são conservadores e elitistas. Sentem-se mais capazes do que os civis. Consideram-se responsáveis pelos destinos do país. Não engoliram até hoje o fracasso da ditadura de 64 e a humilhação de terem sido obrigados a voltarem à caserna. De volta ao poder com o ex-capitão, querem que ele governe por quatro e mais quatro anos.

São seus avalistas. Ou melhor: seus mantenedores. Sabem muito bem que os civis partidários de Bolsonaro poderão abandoná-lo de uma hora para a outra se o governo não resistir às dificuldades que enfrentará daqui para frente. E, por mais que digam o contrário, o fracasso do capitão será também o fracasso dos generais. Elementar.

Abominam essa hipótese, portanto. E se no momento reverenciam a Constituição, não é garantido que assim procedam caso se vejam outra vez forçados a bater em retirada. É improvável a ditadura de um capitão. Mas não é o regime forte liderado por um capitão que desperta em parcela do povo seus instintos mais primitivos e obscuros.

O único fato novo que desperta a esperança de que o avanço do autoritarismo ainda possa ser detido é o retorno às ruas dos que se limitavam a protestar nas redes sociais. Foi o que se viu, ontem, em algumas cidades. As ruas eram até então território exclusivo das milícias do capitão anarquista. Tudo indica que deixarão de ser a partir das próximas semanas.

A publicação de manifestos e de abaixo-assinados serve mais para marcar o tempo em que foram concebidos, e lustrar a biografia dos seus autores. Mas em certas ocasiões, é nas ruas, para o bem ou para o mal, que se escreve a história.