Nesse sentido, gostaria de compartilhar com os leitores o efeito que produziu em mim a leitura de “M —o filho do século”, de A. Scurati, que apresenta com meticulosidade de historiador o quadro político e social italiano em 1919/1920, quando estava despontando a figura de Mussolini. O que impressiona no relato é a percepção de que este representava a expressão de uma série de desejos latentes em parte da sociedade, fruto da situação do imediato pós-guerra e que indicavam sintomas de uma patologia social. O resto foi consequência. O final da história é conhecido, mas entre o cenário inicial retratado por Scurati e o fim, a Itália viveu os seus dias mais negros, durante 25 anos. O que vou reproduzir nos próximos parágrafos deveria provocar uma reflexão. Há vários traços distintivos daquela situação, entre os quais destaco os seguintes, sempre com a citação de trechos-chave, copiados do livro:
1) O combate à neutralidade (os “isentões!”): critica-se “os moderados e seu bom senso, a quem desde sempre devemos nossa desgraça” (página 11). E explicita-se: “A luta não admite uma terceira opção, nenhuma neutralidade. Nada de espectadores!” (p.37).
2) O ódio: a descrição que o livro aplica a vários dos personagens que compõem as figuras de proa do fascismo é inequívoca: como o líder, cada um deles é um “odiador profissional” (p.23). A descrição é complementada páginas mais tarde: “Entre eles e o passado, ergue-se um muro de ódio, desprezo e sangue” (p.62).
3) O culto à morte. Na descrição das lutas políticas entre grupos polarizados, chamando a atenção para o fato de que no núcleo do fascismo estava parte dos combatentes da Primeira Guerra — então desempregados. Scurati diagnostica: “É a relação diferente que os dois grupos têm com a morte o que cava um abismo entre eles” (p. 37). É nesse contexto que ele descreve a cena de um dos personagens, almoçando e insistindo, “entre uma bocada e outra, em verificar o funcionamento do seu revólver com o tambor carregado” (p.41).
4) o isolamento do líder. Há uma passagem especial, em que o autor descreve num capítulo a relação (ou falta dela) entre Mussolini e o resto das pessoas, cuja última frase é: “Uma distância intransponível o separa do gênero humano” (p.42).
5) O recurso às ameaças. Estas aparecem em diversas passagens, das quais destaco a seguinte proclamação afixada num muro de Milão na época, dirigida aos “combatentes vitoriosos que devem, e vão, dirigir sozinhos, custe o que custar, a nova Itália. Não provocaremos, mas, se formos provocados, acrescentaremos alguns meses aos nossos quatro anos de guerra” (p.43).
6) A rejeição da concórdia. Scurati cita a carta de um dos líderes intelectuais do movimento, na qual ele escreve, explicitamente, que “para mim e para os nossos pares, a paz é hoje uma desgraça” (p.50).
7) A confusão mental. Este é um dos traços mais marcantes da construção dos personagens. Diz o autor, acerca de um dos tipos: “é um fanático que não sabe viver sem elaborar planos de vingança”. E logo depois, sobre outro, registra: “não tem uma única ideia na cabeça e, por isso, é um ótimo orador” (p.62);
8) A crítica aos partidos: “Quem são os fascistas? O que eles são? São algo novo, inédito, um antipartido. Fazem antipolítica” (p.64).
9) O ressentimento: “Trata-se apenas de fomentar as facções, exasperar os ressentimentos” (p.64).
10) A falta de rumos: a massa de manobra do fascismo é composta por aqueles que “não têm noção de futuro, não sabem onde desaguar... Seu verdadeiro programa está contido na palavra ‘combate’” (p.64/65).
É um decálogo da catástrofe. “M” é, provavelmente, um dos livros que mais me impressionaram em quase cinco décadas como leitor. Recomendo a leitura.
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