sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Caça-palavras na cadeia não deve reduzir pena de Bolsonaro

Jair Renan deixou Balneário Camboriú para visitar o pai na cadeia em Brasília. “Tentei levantar o ânimo do meu velho”, declarou, ao sair da Polícia Federal. O Zero Quatro disse ter levado “alguns livros” para o capitão. A frase despertou a curiosidade dos repórteres, que quiseram saber os títulos escolhidos. “Trouxe um caça-palavras para ele”, informou o vereador.

O chefe do clã nunca foi conhecido pelo hábito da leitura. Apesar disso, sempre teve opiniões fortes sobre a cena editorial. No Planalto, tentou interferir no formato dos livros didáticos. “Os livros hoje em dia, como regra, é (sic) um montão, um amontoado de muita coisa escrita. Tem que suavizar aquilo”, ordenou, em janeiro de 2020.


Jair Bolsonaro acrescentou que os livros distribuídos nas escolas públicas passariam a estampar a letra do Hino Nacional e a bandeira do Brasil. Para sorte dos estudantes brasileiros, a patriotada foi esquecida. Ainda assim, o capitão fez um estrago e tanto no setor.

No último ano de mandato, enquanto raspava o caixa para tentar se reeleger, o ex-presidente bloqueou quase R$ 800 milhões do Programa Nacional do Livro e do Material Didático. A medida atrasou a compra de 70 milhões de livros para alunos e professores do ensino fundamental.

O obscurantismo marcou a relação do governo Bolsonaro com a cultura em geral e a literatura em particular. Por birra ideológica, o capitão se recusou a assinar os papéis necessários para a entrega do Prêmio Camões a Chico Buarque. “Conforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu prêmio”, devolveu o autor de “Estorvo”, ao receber o galardão com quatro anos de atraso.

O desprezo pelos livros não é só produto da estupidez do Cavalão. O anti-intelectualismo sempre foi uma arma eleitoral valiosa para a extrema direita. Ajuda a estigmatizar escritores, professores e artistas que teimam em criticar governantes autoritários.

Apesar da aversão às letras, Bolsonaro ainda pode contar com elas para sair mais cedo da cadeia. A lei brasileira garante a remição de pena para os detentos que leem. O problema, para o ex-presidente, é que as normas do Conselho Nacional de Justiça exigem a leitura de “obras literárias” e a entrega de resenhas de próprio punho. Não há previsão de benefício para quem escolhe passar o tempo fazendo cruzadinha no xadrez.

Todo mundo mente?


Certos poderes dedicam-se a substituir verdades visíveis por mentiras flagrantes, a fim de alimentar a retórica populista. 

Leonardo Padura



A cruz, a cerca e o fuzil

Durante décadas, a análise política brasileira acostumou-se a separar os grupos de pressão em Brasília. Falava-se da bancada ruralista que defendia os interesses do agronegócio, da bancada evangélica que defendia uma moral religiosa e da bancada da bala que pleiteava o endurecimento penal. Eram vizinhos de corredor no Congresso, trocando favores ocasionais. Contudo, quem observa o Brasil contemporâneo com as lentes do passado corre o risco de não enxergar o monstro que se formou na sala. Aquelas fronteiras desapareceram e o que se assiste hoje não é mais uma coligação de interesses, mas a fusão de identidades em um projeto de poder totalizante: a Teocracia Agropastoril Miliciana.

Este conceito, embora soe distópico, é a descrição mais precisa para um fenômeno onde o fundamentalismo religioso fornece o “software” ideológico, o agronegócio predatório provê o “hardware” financeiro e territorial, e o ambiente miliciano (que contaminou parte das polícias, tanto estaduais quanto federais) oferece o braço armado. O objetivo? A refundação do Estado brasileiro, não mais como uma república laica e democrática, mas como um domínio sagrado, vigiado e armado, onde a dissidência e o protesto são tratados não como oposição política ou luta por direitos, mas como adversários em uma “guerra espiritual”.

A gênese desse fenômeno remonta à consolidação da chamada “Bancada BBB” (Boi, Bala e Bíblia). O termo, cunhado ironicamente pela deputada Erika Kokay em 2015, descrevia uma articulação conservadora que começava a mostrar suas garras em pautas como a redução da maioridade penal e o Estatuto da Família. No entanto, a ironia do apelido envelheceu mal e o que era uma aliança tática eventual tornou-se muito mais orgânica.

Parlamentares como o Capitão Augusto (PR-SP) já rejeitam a nomenclatura fragmentada. Para eles, não há distinção entre o policial que atira, o pastor que prega e o fazendeiro que desmata; eles se autodenominam a “Bancada da Vida” ou do “Bem”. Essa mudança semântica parece simples, mas na verdade é crucial já que na política democrática, adversários debatem ideias, enquanto na teocracia miliciana, o “Bem” combate o “Mal”. E contra o mal absoluto, qualquer violência é permitida, qualquer lei humana é secundária e qualquer supressão de direitos é, na verdade, um ato de saneamento moral.

A tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 foi o cartão de visitas explícito dessa nova ordem, ali, a fusão se materializou: a “massa crítica” para a abolição do Estado de Direito foi financiada por empresários do agronegócio, inflamada por uma retórica religiosa de fim dos tempos e facilitada por uma omissão cúmplice das forças de segurança. Mas para entender como chegamos a esse ponto de ruptura, precisamos dissecar a anatomia dessa quimera, começando por sua alma.


Esqueça a velha Teologia da Prosperidade, focada apenas em fazer o indivíduo enriquecer através do dízimo, a força motriz da Teocracia Agropastoril Miliciana é a Teologia do Domínio. Importada do reconstrucionismo cristão norte-americano e adaptada ao neopentecostalismo brasileiro, essa doutrina postula que os cristãos têm um mandato divino para “ocupar” e governar as estruturas da sociedade antes que Cristo possa voltar.

A estratégia, conhecida como o “Mandato dos Sete Montes”, orienta os fiéis a tomarem o controle de sete áreas-chave: religião, família, educação, governo, mídia, artes e negócios. Sob essa ótica, um pastor eleito deputado não está lá apenas para representar seus fiéis, mas para submeter as leis dos homens à “Lei de Deus”. A laicidade do Estado é vista como um erro histórico a ser corrigido, uma brecha por onde o “inimigo” (a esquerda, os movimentos sociais, as religiões de matriz africana) entrou.

Essa visão de mundo cria o que pesquisadores chamam de Cristofascismo: um regime onde o autoritarismo político é sacralizado. A política deixa de ser o espaço da negociação para se tornar o palco da “Guerra Espiritual”. Opositores não são concidadãos com opiniões divergentes; são “filisteus”, “amalequitas” ou agentes demoníacos que precisam ser neutralizados para que a nação prospere.

É essa teologia que permite a um líder religioso subir à tribuna do Congresso e defender, com a Bíblia na mão, a retirada de direitos de minorias ou a posse de fuzis, argumentando que está cumprindo a vontade divina contra as forças do caos. A intolerância deixa de ser um preconceito pessoal e vira um projeto de santificação do território nacional.

Se a teologia fornece a justificativa moral, o agronegócio fornece o combustível material, mas não estamos falando do pequeno produtor rural. Falamos de um modelo de agronegócio financeirizado, tecnológico e expansionista que também passou por uma “conversão” teológica. O antigo slogan publicitário “Agro é Pop” foi subliminarmente substituído por “Agro é Santo”.

Em grandes feiras agrícolas no Centro-Oeste, a liturgia mudou e não é raro ver pastores abençoando colheitadeiras gigantescas e drones de última geração em cerimônias de ação de graças, onde a tecnologia de ponta é ungida como instrumento da providência divina para “alimentar o mundo”. A prosperidade da safra é vista como sinal da bênção de Deus; logo, qualquer entrave a essa produção, seja a demarcação de terras indígenas, a fiscalização ambiental ou leis trabalhistas, é uma afronta ao plano divino.

Essa sacralização do lucro cria uma blindagem ética perfeita para a predação. O desmatamento e a invasão de territórios tradicionais são ressignificados como a “sujeição da terra” ordenada no Gênesis. E para garantir essa expansão, o capital agrário não hesita em financiar a política radical. Investigações sobre os atos antidemocráticos revelaram que pelo menos 142 empresários do setor, concentrados em estados como Mato Grosso e Pará, financiaram a logística do caos em Brasília.

No campo, essa aliança se traduz nas Agromilícias. Grupos armados, muitas vezes compostos por ex-policiais ou agentes de segurança privada, atuam como exércitos particulares para “limpar” áreas de interesse, atacando indígenas e sem-terra. A violência no campo bate recordes, alimentada pela certeza da impunidade garantida por seus representantes no Congresso e pela bênção de seus líderes espirituais. Em alguns casos, “missões evangélicas” funcionam como ponta de lança, entrando em territórios indígenas para desestruturar a cultura local sob o pretexto de evangelização, abrindo caminho para a exploração econômica subsequente.

O terceiro e mais perigoso vértice desse triângulo é a captura ideológica das forças de segurança. A tese da Teocracia Agropastoril Miliciana alerta para um fato alarmante: a polícia brasileira está sendo catequizada para servir a Deus acima da Constituição.

O principal vetor desse movimento é o programa UFP (Universal nas Forças Policiais), da Igreja Universal do Reino de Deus. Sob o pretexto de oferecer assistência espiritual e palestras sobre ética e depressão, a igreja penetrou em batalhões e delegacias de todo o país. Em estados como São Paulo, a UFP chegou a ter acesso irrestrito a todas as guarnições, distribuindo livros de seus líderes e criando uma relação de dependência emocional com a tropa.

O perigo reside na dupla lealdade. Um policial que vê sua autoridade como uma concessão divina e seu pastor como um comandante espiritual tende a obedecer a diretrizes religiosas em detrimento da lei civil. Denúncias no Ministério Público apontam para a coação de policiais a frequentar cultos e a perigosa mistura de símbolos estatais com a logomarca da igreja.

Enquanto a polícia se “igrejifica”, a igreja se militariza. Projetos como os Gladiadores do Altar introduziram uma estética fascista no culto: jovens uniformizados, marchando em formação rígida, batendo continência e gritando palavras de ordem no altar. Embora a igreja alegue ser uma metáfora para a “batalha espiritual”, a semiótica é inequivocamente bélica. Prepara-se o imaginário do fiel para o confronto.

A consequência prática é a normalização do policial fardado no púlpito e do discurso de extermínio como caridade cristã. A “Bancada da Bala” trabalha no Congresso para legalizar o ativismo político de policiais, enquanto símbolos como a bandeira de Israel começam a ser usados não como homenagem diplomática, mas como insígnia de uma nação imaginária, guerreira e teocrática, que eles acreditam defender nas favelas brasileiras.

Se a teoria parece abstrata, a realidade do Rio de Janeiro oferece um vislumbre aterrorizante do futuro que este modelo propõe. No conjunto de favelas da Zona Norte conhecido como Complexo de Israel, liderado pelo traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, o “Peixão”, a teocracia miliciana já é realidade.

Ali, o crime organizado adotou o fundamentalismo como método de governo. Estrelas de Davi de néon brilham no topo dos morros, visíveis a quilômetros. A intolerância religiosa é a lei: terreiros de Candomblé e Umbanda são depredados, incendiados e seus sacerdotes expulsos sob a mira de fuzis. É o fenômeno do Narco-Pentecostalismo , onde o traficante se vê como um “ungido”, citando salmos enquanto executa rivais.

Embora o termo seja controverso e debatido por acadêmicos que temem a estigmatização dos evangélicos de periferia, a prática de domínio territorial baseada na supressão da diversidade religiosa e na aliança com setores corruptos da polícia (a faceta miliciana) é inegável. O Complexo de Israel é o microcosmo da Teocracia Agropastoril Miliciana: um território onde o Estado laico morreu, substituído por um regime de terror santificado, onde a Bíblia serve de escudo para o fuzil e o lucro do crime.

Enquanto o terror se espalha nas pontas (no campo com as agromilícias e na favela com o narco-pentecostalismo), o centro de comando opera em carpetes azuis, sob o ar-condicionado de Brasília. A atuação da “Bancada da Vida” no Congresso Nacional demonstra uma coordenação impressionante.

Os dados mostram que os interesses se cruzam perfeitamente. A indústria de armas até recentemente financiava tanto os líderes da bancada ruralista quanto os da bancada da bala e evangélica. O dinheiro cria a fidelidade. Quando o assunto é o Marco Temporal das terras indígenas, 88% da Frente Parlamentar Evangélica votou contra os povos originários, alinhando-se automaticamente aos interesses do agronegócio.

A lógica é de troca mútua de proteção. O ruralista quer a terra e a arma; o policial quer a excludente de ilicitude para usar a arma que já tem; o fundamentalista quer a imposição moral e a demonização do “outro”. Juntos, eles aprovam leis que enfraquecem o licenciamento ambiental, facilitam o acesso a arsenais de guerra e tentam criminalizar movimentos sociais, uma verdadeira institucionalização da barbárie.

O conceito de Teocracia Agropastoril Miliciana não é um exagero retórico; é um diagnóstico de urgência. O Brasil não está apenas “polarizado”, ele está sendo disputado por um projeto de poder que visa subverter os princípios fundadores da República.

Não se trata de demonizar a fé evangélica, que é plural e muitas vezes serve como rede de proteção social onde o Estado falha. Trata-se de denunciar o sequestro da fé por um projeto político autoritário. Não se trata de atacar a agricultura, vital para a economia, mas de expor a facção predatória que usa a religião para lavar a grilagem e o sangue indígena. Não se trata de criticar a segurança pública, mas de apontar a contaminação das forças policiais por ideologias que transformam o cidadão em inimigo a ser abatido.

O avanço desse modelo representa o maior risco à democracia brasileira desde a redemocratização. Se a “cruz, a cerca e o fuzil” continuarem a avançar sem resistência, o Brasil corre o risco de se tornar um imenso “Complexo de Israel”: um país onde a liberdade é privilégio de quem reza para o deus certo, vota no candidato armado e lucra com a terra arrasada. A teocracia não está chegando; ela já está operando, votando e atirando. Resta saber se as instituições democráticas terão força para reafirmar que o Brasil é um Estado laico, de todos, e não uma propriedade privada de uma milícia santa.
Roberto Uchoa

Chacina como estratégia política e tática eleitoral

Neste dia 28 de novembro, completa um mês a chacina mais letal da história do Brasil, com 121 pessoas mortas no Complexo do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro. A economia política do crime (EPC), que controla e regulamenta pela força das armas esses territórios, continua a operar normalmente nas localidades massacradas, infelizmente, como é o caso do Comando Vermelho (CV), com a permissão e a organização do poder e a violência estatal.

Julgo ser importante ressaltar esse contexto factual. Sim, é uma realidade, o CV permanece naquelas comunidades, a espoliar aquelas populações, a recrutar jovens negros e pobres para o universo da economia criminal, etc., pois, para a economia política capitalista do crime, aqueles jovens são descartáveis, buchas de canhão e afins. Portanto, nessa altura, parece ser bastante óbvio que a operação policial ordenada pelo governador bolsonarista Cláudio Castro teve um objetivo evidentemente político e eleitoral, seja de dimensão regional, seja nacional e também internacional.

No Brasil, existe um histórico de operações político-policiais antes de eleições visando a obteção de dividendos eleitorais e a sinalização de quais são os candidatos “linha dura no combate ao crime”. A criminalidade nas grandes metrópoles é uma realidade que atinge muitas pessoas, trabalhadores e empobrecidos. Um quarto dos brasileiros vive sob a “governança” da economia política do crime. A extrema-direita tem reiterado a mesma proposta de “guerra às drogas”, endurecimento penal e repressivo sem colher resultados. Mas esse tipo de operação espetacularizada e com uma estética da morte ganha votos.

É nesse contexto que devemos compreender a chacina de 28 de outubro. O governador do Rio de Janeiro esperava conquistar votos para se eleger senador e fazer o seu sucessor. Do um ponto de vista nacional, o bolsonarismo — com Jair Bolsonaro, agora, preso — procura se reorganizar e sair da defensiva recolocando a questão da segurança pública no centro da agenda política do país. Esse grupo identifica ser a segurança pública um dos pontos mais fracos da esquerda e do atual governo, e usa o famigerado eufemístico “consórcio da paz”.

A face internacional da operação policial no Rio foi o de criar um ambiente político e retórico, já que, em termos legais, parece ter ficado sem efeito. E passa por legitimar uma intervenção dos Estados Unidos da América Latina, inclusive no Brasil, para combater os “narcoterroristas”. Ou seja, reconfigurando a velha proposta da direita de “guerra às drogas” com uma envergadura global que fortaleça os interesses mais imediato da administração de Donald Trump no tabuleiro das relações internacionais.

Duas notas finais. Primeira: o erro do Governo Lula ao capitular à lógica eleitoral e ceder à gramática política e à estratégia da direita e extrema-direita foi o de enviar um projeto de lei “antifacção” (de cariz punitivista) para o Congresso. A proposta foi reescrita pela direita bolsonarista, numa derrota política para a esquerda governista. Isso parecia evidente, pois fazer política com demarcações, soluções e gramática impostas pelo neofascismo brasileiro é, por si só, já estar derrotado politicamente.

A outra passa pelas imagens que vimos pela televisão no dia seguinte à chacina. Familiares foram obrigados a resgatar os corpos dos mortos na operação policial. Desde a colonização, o Brasil tem sido marcado por histórias de chacinas de pessoas consideradas sub-humanas, retrato do racismo. A síntese desse imaginário racista brotou da boca do governador Cláudio Castro ao dizer que as únicas vítimas daquela operação foram os policiais.
Carlos Hortmann

O que é ser homem?

O estudo State of UK Men, publicado na semana passada por duas organizações promotoras da igualdade entre os géneros (Equimundo e Beyond Equality), mostra-nos bem o estado de confusão emocional e cultural em que vivem hoje em dia os rapazes e os homens no Reino Unido. Uma realidade que atravessa atualmente todo o mundo ocidental e que as mulheres sentem bem na pele.

O inquérito foi feito a adultos entre os 18 e os 45 anos e 88% dos homens nesta faixa etária acredita que “ser homem significa prover à sua família” ou “ser forte” (83%), neste caso a mesma percentagem dos que respondem que “ser homem” é também “partilhar o trabalho doméstico”. Alguma coisa se interiorizou, pelo menos na teoria.

O problema com o papel do provedor é que já não é preciso ir para a floresta caçar presas, nem ser o único sustento da família, já que a maior parte das mulheres trabalha fora de casa. O sustento da família há muito deixou de ser um papel definido pelo género e, deste ponto de vista feminino de onde escrevo, não haveria razão nenhuma para tanta desorientação. Numa família “tradicional” heterossexual, são os dois a dançar o tango, qual é a dificuldade?

O problema é que a independência financeira das mulheres trouxe um maior equilíbrio nas relações de poder – os homens já não podem dizer “em minha casa, as minhas regras” porque a casa é muitas vezes comprada em conjunto, paga pelos dois, com a luz, a água e o gás bem divididos, assim como as despesas de supermercado. O galo já não canta de galo e parece-lhe o fim do mundo que a galinha já não precise dele numa união que só valha pelo afeto e não pela dependência.

No mesmo inquérito, um em cada quatro homens diz que nunca ninguém se irá apaixonar por ele, 63% acreditam que ninguém quer saber se os homens estão bem hoje em dia e 62% reclamam que “as mulheres têm muitas expectativas sobre como os homens devem ser dentro das relações amorosas atualmente”. Ao mesmo tempo, mais de metade dos inquiridos (54%) não se incomodariam se o seu país tivesse “um líder forte que não se importasse com o Parlamento ou com eleições”, e metade apoia ideias red pill (movimento de apoio à “masculinidade dominante” e ao “privilégio masculino”), através de ideias como “a vida é mais difícil para os homens do que para as mulheres”.

Não, os homens não têm a vida assim tão facilitada, desde logo porque são (mal) educados para um mundo que já não existe. Criados como uns “reizinhos” dentro de casa, os rapazes podem ficar no sofá enquanto as suas irmãs são chamadas para pôr a mesa e lavar a loiça. Depois crescem e não há quem os aguente na tortura desequilibrada do dia a dia e do trabalho doméstico.

Vamos então culpar as mães que os educam? Também – não há aqui trincheiras de género e as crianças aprendem mais pelo exemplo do que pelas palavras no vento. Tal como as ideias ganham mais força quando o exemplo vem de cima, dos líderes eleitos em regimes democráticos ditos avançados que não se coíbem de chamar “piggy” a uma jornalista mulher, como fez Donald Trump há dias.

Ah, mas 68% dos homens britânicos têm medo de que a sua reputação seja destruída se disserem o que pensam. É a insegurança da masculinidade tóxica que prejudica todos, rapazes e raparigas. E isso não é de homem.