sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Brasil amado


Bispo rebate ofensiva do governo contra a Igreja: 'Igual, só vimos na ditadura'

A Igreja Católica não deve se intimidar com a ofensiva do Planalto contra a sua atuação na Amazônia. O ministro Augusto Heleno fez críticas a um seminário convocado pelo papa Francisco para discutir os problemas da região. Em vez de calar os bispos, aumentou a insatisfação do clero com o governo.

O jornal “O Estado de S. Paulo” revelou que relatórios da Abin descrevem a CNBB como “potencial opositora”. O general Heleno se referiu ao Sínodo da Amazônia como “interferência em assunto interno do Brasil”. Acrescentou que pretende “neutralizar” o evento religioso.

O bispo do Marajó, dom Evaristo Spengler, afirma que não cabe ao governo monitorar os debates da Igreja. Ele diz que o clero já suspeitou da presença de arapongas numa assembleia em Marabá. “Isso é um retrocesso que só vimos na ditadura militar”, protesta.


Dom Evaristo esclarece que o papa anunciou o seminário em 2017, muito antes da eleição de Jair Bolsonaro. Ele diz que a Igreja “não é neutra”, o que não significa que tenha partido. “A Igreja está do lado dos mais fracos, dos mais pobres, dos ribeirinhos e dos indígenas”, afirma.

Para o religioso, o discurso do governo esconde interesses econômicos. “Estão incentivando um modelo predatório de desenvolvimento, que extrai as riquezas da floresta e deixa a população na pobreza”, critica. “Querem construir hidrelétricas, abrir rodovias e permitir o avanço do agronegócio e das mineradoras”.

Desde a campanha, Bolsonaro trata ONGs e ambientalistas como inimigos. Ele acusa as entidades de atentarem contra a soberania nacional e planejarem a “internacionalização” da Amazônia. A pregação tem eco no núcleo militar do governo. “Isso é uma fantasia para justificar a exploração predatória da floresta. Estamos no tempo das fake news”, rebate dom Evaristo.
Na segunda-feira, o ministro do Meio Ambiente aumentou a tensão com a Igreja ao ofender a memória de Chico Mendes, assassinado em 1988. Segundo Ricardo Salles, o líder seringueiro usava a luta ambiental para “se beneficiar”.

A declaração revoltou a ala progressista do clero. “Querem desqualificar quem defende os povos da Amazônia”, afirma o bispo do Marajó.

Pobres...

Pobres,
que vos hei-de dizer?
Meus livros e meu Deus falaram-me de vós
Saí a vosso encontro para levar-vos meu amparo,
Mas deparei com vossos torsos curvos
Vossos joelho dobrados,
Vossos olhares de cães batidos
atentos às minhas mãos.
Que vos hei-de dizer?
Há entre nós a vossa mão, pedindo...

Ricos,
que vos hei-de dizer?
Eu vos amava.
Meus poetas e meus pintores falaram-me de vós,
Saí a vosso encontro para levar-vos os meus cantos
mas vos achei de colarinho duro,
duros também e arrogantes,
desconfiados de minhas mão pouco obedientes.
Que vos hei-de dizer?
Há entre nós o vazio de vossos olhos...
André Spire (1868-1949)

A arca de Noé brasileira

No dia 1º de janeiro de 2003, zarpou, no lago Paranoá, em Brasília, a arca de Luiz Inácio para uma longa viagem, supostamente de quatro anos. Era uma cópia melhorada da arca de Noé. Os Noés brasileiros, da pós-modernidade, têm exigências que o humilde Noé bíblico não tinha.

Saiu lotada e bem abastecida, para indigestas buchadas e rabadas o tempo que durasse a viagem. Ia suprida para que, na própria arca, tivesse início um programa social de "fome zero", que morreria de inanição política.

Apesar das certezas quanto à cor da arca, houve confusão quanto aos rumos. Uns queriam ir para a esquerda, de vermelho rubro, outros, com base num manifesto ao povo brasileiro, queriam ir para a direita, de um vermelho indeciso, de amansar empresário e classe média.

Na hora de atracar, como estava previsto nos bons costumes políticos, ousaram seguir adiante, apesar dos riscos já indicados pelo mensalão. E assim foram indo, até que o excesso de lotação e de desvios afundasse a arca, antes de chegar ao porto seguro de sempre. A arca foi resgatada e enviada a um conceituado estaleiro de arcas presidenciais para os reparos devidos, trocada a cor do vermelho desbotado, preparando-a para novas tripulações e novas viagens.


Espécimes selecionados, os últimos de uma raça quase fossilizada, foram embarcados para preservar o que restava do tempo em que o mundo era mundo. Foi a arca posta a navegar, sob novo comandante. Zarpou no dia 1º de janeiro de 2019.

Como em 2003, essa tampouco achou o rumo, já passados dois meses de navegação. Talvez tenha faltado GPS, perdão, astrolábio na arca. Ou a velha bússola dos rumos e da razão.

Pelo menos não faltará o principal item da nova dieta presidencial. A despensa da arca está bem abastecida com latas de leite condensado. A viagem poderá ser cansativa, mas será doce. Nada de comidas pesadas e gordurosas. A tripulação e o país terão que emagrecer para que a navegação prossiga. A começar pelos aposentados, que dizem pesar muito.

O primeiro problema dessa arca é que tem uma única cabina de comando, mas tem um número excessivo de comandantes, embora só um tenha sido eleito. Nesse caso, todos querem levar a arca para a direita, mas cada qual tem a direita que merece. Existe a direita mística, a direita subserviente ao irmão do norte, a direita pseudofilosófica e, claro, como todas as direitas (e algumas esquerdas), a direita despistada. O que conforta é que o lago é pequeno e os destinos não são muitos. Sempre se chega ao mesmo lugar. A menos que o barco afunde.

Deus é brasileiro, mas há aí um pequeno problema. No barco há adeptos radicais de facções religiosas especializadas em profetizar o passado. Um deles é católico ultramontano. Outra é evangélica exaltada. Poderão descobrir que cada um de nós, com nossas diferenças, eles também, é apenas expressão de alteridade, criada na mediação mesmo de quem não gostamos.

Resta saber qual Bíblia será referência nos desacordos. Temo que a maravilhosa e erudita tradução da versão conhecida como Bíblia de Jerusalém não conste do que, já se percebeu, é a exígua biblioteca de bordo. O mais provável é que tenham levado para lá a Bíblia da popular e arcaica tradução de João Ferreira d'Almeida, do século XVII.

Não sei se tiveram o cuidado de excluir edições mais recentes com erros de impressão, coisa da lucrativa indústria da pressa. E, talvez, para contrapor, uma versão da vulgata, não vá o ultramontanismo cair no engano de se valer de alguma tradução de herege. Terão, ainda, que decidir se vão orar ou rezar. Não importa. O que esperamos é que Deus não os ouça nas intolerantes ideologias que se infiltraram em sua fé simples e sincera

Parece que houve problemas quanto à cor da arca: azul ou rosa? Deve ter havido mais urros do que sussurros para se chegar a um acordo quanto à cor. Partido cromático sempre se divide quanto ao que importa, perdendo-se nas fantasias de um senso comum sem conteúdo. E a pátria da arca que pague o pato.

De qualquer modo, não vazou nenhuma informação confiável quanto à cor dos cômodos da arca. Nem se os meninos ficarão separados das meninas, o que é lícito considerar, devido à relevância que uma tripulante deu ao assunto quanto ao poder da cor na definição da sexualidade das novas gerações.

Enfim, a arca do Paranoá vai navegando, como Deus é servido. Chegará a algum porto, que talvez não seja o do destino. Mas sempre haverá o corpo de bombeiros de Brasília, de prontidão, para salvar eventuais náufragos de aventuras políticas. A grande curiosidade é a relativa a que cor terá a arca quando atracar. E se o Brasil ainda será verde e amarelo e, propriamente, brasileiro e cidadão. Ou apenas um país sem cor nem graça.
José de Souza Martins

Ou Bolsonaro abraça a dura realidade da política ou acabará devorado por ela

Não estamos nem na metade dos cem dias de graça concedidos aos governantes em início de mandato, e o presidente Jair Bolsonaro já está no centro de uma polêmica interna com seu partido, o PSL, e seus filhos, a qual poderia acabar por devorá-lo. Há até quem pense que estamos no princípio de um fim dramático.

Tudo porque o presidente começa a sentir na pele que uma coisa são os arroubos, promessas e receitas milagrosas de uma campanha eleitoral que prometia enterrar a velha política da corrupção e seus compadrios, e outra é a realidade dura e crua da situação brasileira. A política é não só a arte do compromisso, mas também ciência.

Tentar criar uma forma nova de governar foi o sonho de todas as grandes ideologias de esquerda e de direita que, ao final, acabaram devoradas por seus mesmos sonhos. Bolsonaro e seus fiéis seguidores acreditaram que seria fácil para eles, depois de derrotar os velhos partidos e chegarem ao Planalto, dar vida a uma aventura sem necessidade das antigas artes da política tradicional. Pouco importava que o partido que o aceitou como candidato, depois de ele transitar em sua longa vida do Congresso por outros sete ou mais, praticamente não existisse. Para que precisaria dele? Tinha seus filhos, as pessoas, as redes sociais, os robôs, a rua. Hoje, após o sucesso eleitoral, o pequeno PSL se tornou, imantado pelo poder, o maior do Congresso, mas é um caldeirão de tudo, sem história. Alguém o chamou de saco de gatos. E Bolsonaro parece disposto a sacrificá-lo.

O novo presidente parece querer continuar acreditando que o menos importante para ele é o partido. Que seu partido mais fiel seriam seus filhos. E parece disposto a sacrificar até aquele que o acolheu e o guiou durante toda a campanha, o advogado e amigo pessoal Gustavo Bebianno, então presidente do PSL e hoje ministro da Secretária Geral da Presidência. Acusado de suposta corrupção e aconselhado por seu filho Carlos, que o acusou publicamente de mentir, Bolsonaro pediu em público que fosse investigado com rigor. E os políticos clássicos sabem que não há nada mais perigoso do que transformar amigos em potenciais inimigos. A vingança é um dos ingredientes mais poderosos da política.

Bolsonaro iniciou seu caminho para a glória golpeado pela tragédia. Primeiro, a sua pessoal, ao ser vítima de um obscuro atentado contra sua vida, e depois as três tragédias sangrentas que comoveram o país, as três criminosas. A de Brumadinho com suas centenas de trabalhadores mortos e desaparecidos, a dos jovens do time do Flamengo, que acabou com seus sonhos, e a do helicóptero que estava impedido de transportar passageiros, mas mesmo assim nos roubou Ricardo Boechat, um dos jornalistas mais dignos e empenhados deste país.

A nova tragédia espreita agora a vida política de Bolsonaro. Ele terá de demonstrar que veio para relançar econômica e eticamente um país que parecia cansado dos políticos e de suas corrupções e que parecia ter perdido a esperança. A história, entretanto, deveria lhe servir de mestra. Nunca foi fácil, nem para os grandes líderes do mundo, tentar revoluções para mudar as coisas sem acabar caindo em resultados iguais ou piores.

Vocês se lembram, por exemplo, da simpática e enigmática fábula de A Revolução dos Bichos, do escritor inglês George Orwell? É a melhor metáfora que já se escreveu para mostrar como as revoluções destinadas a devolver o poder ao povo, fossem de esquerda ou de direita, acabaram em um estado autoritário e tirano ainda pior, como o stalinismo, o nazismo e o fascismo. Na parábola orwelliana, os animais de uma fazenda se rebelam contra seu dono humano e decidem se apropriar dela e criar uma maior igualdade entre todos. Dois porcos, considerados os mais inteligentes do curral, capitaneiam a revolta. Seguem-nos, felizes, a massa dos analfabetos e acríticos, como as galinhas e as ovelhas. Criam um novo credo com sete mandamentos. Entretanto, os novos líderes, os porcos Napoleão e Bola de Neve, acabam brigando. Napoleão atiça aos cachorros da fazenda contra Bola de Neve. Eclode a guerra. Os sete mandamentos vão desaparecendo, esquecidos. Manda só quem manda. Os animais da plebe, os sem poder, recorrem ao burro Benjamin, que era o único que sabia ler, para que lhes dissesse se havia sobrado de pé algum dos novos preceitos revolucionários que os líderes porcos haviam criado. Só um havia se salvado: “Todos os animais são iguais”, mas havia sido revisado assim: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”. Como desde o começo do mundo.

Na nova fazenda de Bolsonaro, já vai se definindo quem disputa o poder, embora a nova revolução também exigisse que sejam todos iguais. Vai ficando claro que alguns, em seu novo reino, começam a ser mais iguais que os outros. Mais poderosos. Entre esses mais iguais, com maior poder no mundo bolsonariano, aparecem nitidamente seus três filhos, também eles políticos, encarregados de dizer à massa de galinhas e ovelhas da fazenda que acreditem, que eles lhes introduzirão na nova era da política por estrear.

Na fazenda de Orwell figurava também o corvo, que representava a Igreja. Tentava fazer o papel de moderador, mas logo deve ter percebido que as coisas foram por outro caminho. Bolsonaro e família, todos religiosos, têm a Bíblia como centro de suas leituras. Nela, curiosamente, existe toda uma literatura de dramas e traições entre irmãos, entre pais e filhos. Querem algumas? Por exemplo, a de Jacó e Esaú. Jacó, com a cumplicidade de sua mãe, enganou a seu irmão Esaú e ficou com a herança do pai. Ou a dos 12 filhos de Jacó, neto de Abraão. José era o mais novo e o preferido. A inveja eclodiu entre os irmãos. Tentaram matá-lo. Depois o venderam como escravo a um mercado do Egito. E, antes deles, a trágica história com a qual a humanidade começa: o fratricídio de Caim contra Abel. O grito terrível de Caim: “Acaso sou eu o guardião de meu irmão?”.

Em tempos nos quais a cultura está em baixa, não seria nada mal que os políticos, velhos e novos, dessem um passeio pela literatura mundial, mãe da sabedoria. Entenderiam melhor que, ao final, não há nada de novo sob o sol. O importante é não esquecer isso na hora de querer convencer as pessoas de que há políticos que são menos iguais que os outros. Existem, talvez, os que ainda respeitam os valores de dignidade e liberdade das modernas e imperfeitas democracias, e aqueles preferem voltar aos velhos tempos do faroeste.

Pensamento do Dia


'Filhocracia'

O episódio em que Carlos Bolsonaro levou à execração pública um ministro de Estado deixou claro quem é que tem autoridade no Executivo – gente que pretende governar sem ter recebido um único voto para isso e que, por sua condição familiar, naturalmente tem sobre o presidente mais influência do que qualquer outro ministro, provavelmente mesmo aqueles qualificados de “superministros”. 

É lícito supor que, em momentos de crise – e o que não falta nesse governo recém-inaugurado é crise –, será aos filhos que Jair Bolsonaro dará ouvidos, e não a seus auxiliares. É a “filhocracia” instalada de vez no Palácio do Planalto.


O poder de Carlos Bolsonaro ficou evidente quando este se sentiu à vontade para, pelo Twitter, chamar publicamente o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gustavo Bebianno, de mentiroso. Segundo Carlos Bolsonaro, Bebianno mentiu ao dizer que havia conversado “três vezes” com Jair Bolsonaro sobre a crise instalada no governo por conta das suspeitas, levantadas por reportagens da Folha, de que o PSL – partido do presidente – desviou recursos do Fundo Partidário para candidaturas “laranjas” na eleição do ano passado. 

Seriam candidaturas constituídas apenas para receber o dinheiro e gastá-lo em gráficas e outros serviços pertencentes a dirigentes do partido. O ministro Bebianno presidia o PSL na época dos fatos.

Por meio de sua conta no Twitter, Jair Bolsonaro, ainda no hospital, passou adiante a mensagem do filho, corroborando-a. Isso tornou insustentável a permanência de Bebianno no governo. É como se Bolsonaro tivesse demitido seu ministro via Twitter, uma humilhação poucas vezes vista na história recente do País.

Como já alertamos neste espaço, governar não é tuitar – e o Twitter não é o Diário Oficial, onde se publicam as decisões administrativas do governo. Mas o presidente, estimulado pelos filhos, parece totalmente entregue à balbúrdia irracional das redes sociais, inclinando-se a tomar decisões de supetão, ao sabor de cliques e “likes”. Para delírio de seus seguidores no Twitter, Bolsonaro e filhos tentaram “lacrar” o ministro Bebianno – isto é, no jargão das redes sociais, pretenderam expor sua “mentira” com a divulgação de um áudio em que o presidente diz a Bebianno, por telefone, que não quer falar com ele.

É constrangedor que um presidente da República se comporte dessa maneira. Um chefe de governo cônscio de seu papel institucional teria simplesmente demitido seu ministro, sem transformar a crise num espetáculo online. Mais importante que isso, porém, é o fato de que Bolsonaro parece tratar assuntos de Estado como se fossem problemas domésticos. “É uma coisa de louco. É inimaginável uma coisa dessas. Tem de ter separação. Casa do presidente é uma coisa, palácio é outra”, disse a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), bolsonarista de primeira hora.

Essa confusão entre o governo e a família Bolsonaro tende a deixar todos os ministros em alerta – ninguém, ao que parece, está a salvo das intrigas promovidas pelos filhos do presidente. Ficou claro que Bolsonaro pai não hesitará em queimar publicamente quem quer que ouse contrariar qualquer um de seus filhos – mesmo um dos mais leais assessores do presidente, como Bebianno.

Essa bagunça é um preocupante indicativo da desarticulação do governo às vésperas de apresentar ao Congresso sua proposta de reforma da Previdência. Em condições normais já não seria nada fácil obter os votos para aprovar essa reforma. Diante do enfrentamento público do presidente com gente de seu partido e dentro do governo, motivado pelos interesses pessoais dos filhos, será muito mais difícil convencer parlamentares de outros partidos a se juntar à base. 

Assim, um governo que tem pouco mais de 40 dias parece precocemente envelhecido, consumido por lutas internas que, como num reality show, podem ser acompanhadas ao vivo pelas redes sociais.
Jair não é bom pai. Não soube ensinar a seus filhos os limites de comportamento que devem respeitar. E os meninos não são bons filhos. Não percebem que, agindo trefegamente, podem comprometer a Presidência do pai. Se a família tivesse lido Kant, saberia que o homem não é nada além daquilo que a educação faz dele.

Tempo


As curvas da história

A história da humanidade segue seu rumo, com avanços e retrocessos, em direção à eficiência e à justiça. O papel de políticos conservadores é dificultar essa marcha, como fizeram adiando a Abolição da Escravatura. O papel dos políticos progressistas é apressar a marcha rumo ao futuro. Mas a história faz curvas, independentemente da vontade dos políticos.

Nos últimos anos, o avanço técnico forçou uma curva com o surgimento do computador, da inteligência artificial, da robótica e das comunicações instantâneas. Outros movimentos fizeram o mundo ficar global na economia e a sociedade corporativizada na defesa de interesses individuais. Mas, apesar da clareza das mudanças, muitos ainda não percebem a curva feita pela história e continuam prisioneiros da ideia do avanço numa linha reta, o que já não existe.

Não entendem, por exemplo, que o Estado gigante defendido pela esquerda soviética e social-democrata ficou ineficiente na gestão e insensível às necessidades do povo. A curva da história fez o Estado gigante ser um dinossauro político. Apesar disso, muitos dos que se dizem progressistas continuam presos ao Estado burocrático, caro e divorciado do povo. Não entendem que a justiça social e o bem-estar só podem ser construídos sobre uma economia eficiente.

O desafio dos que buscam justiça social é desfazer a apartação que separa, de um lado, os incluídos e, de outro, os excluídos. O caminho para isso está na educação de qualidade igual para todos, com o filho do pobre estudando na mesma escola do filho do rico. Mas os que não perceberam a curva da história esquecem os analfabetos. Defendem a ilusão de universidade para todos, sem lutar pela educação básica de qualidade igual para todos e por uma reforma universitária para que os formandos estejam preparados para o dinâmico mundo do conhecimento em marcha.

A curva da história, que reduziu drasticamente a taxa de natalidade e aumentou a expectativa de vida, exige reforma no sistema previdenciário. Mas os progressistas, amarrados nostalgicamente às ideias do passado, no lugar de propostas que construam sustentabilidade para as próximas gerações, preferem ficar contra as reformas.

O socialismo soviético acabou porque o Partido Comunista não entendeu a curva da história, ficou prisioneiro de ideias que se divorciaram da realidade na segunda metade do século XX. O mesmo ocorre com a velha e tradicional esquerda brasileira, que não percebeu a revolução tecnológica e social do mundo global e informatizado, com o agravante da forte atração oportunista pelos votos dos eleitores seduzidos com falsas promessas.

Nesse ponto, esquerda e direita se unem, caindo na tentação populista, por oportunismo eleitoral ou por falta de conhecimento e de percepção da história e suas curvas. Foram muitos os erros que levaram os democratas progressistas brasileiros a sofrer derrota na última eleição, mas o maior foi não perceber a curva da história nas últimas décadas no mundo.

Bolsonaro fez de Bebianno seu 'boi de piranha'

Todo mundo já ouviu a expressão "boi de piranha". Surgiu no meio rural a partir da necessidade de atravessar o gado em rio infestado de piranhas. Para assegurar a passagem da boiada, sacrifica-se um boi já meio combalido. Esse boi é jogado na água para saciar o apetite das piranhas. E o resto do rebanho passa em segurança. A prática é muito comum também na política. Acaba de ser adotada por Jair Bolsonaro. O presidente jogou o ministro palaciano Gustavo Bebianno no rio para ser comido, enquanto outros personagens encrencados escapam.



O governo Bolsonaro tem 22 ministros. Sete ostentam algum tipo de suspeição. Repetindo: a suspeição ronda um terço da equipe do presidente que se elegeu como paladino da ética. Há um ministro condenado por improbidade administrativa, um denunciado por fraude em licitação e tráfico de influência, um investigado por transações suspeitas com fundos de pensão, uma citada em delação da JBS e um beneficiário confesso de caixa dois. Agora, mais dois ministros encrencaram-se no escândalo dos candidatos laranjas do PSL, o partido de Bolsonaro.

Considerando-se a humilhação solitária imposta a Gustavo Bebianno, o capitão não parece muito preocupado com a integridade do seu rebanho ministerial. Se foi capaz de eleger Bebianno, ex-coordenador de sua campanha, como boi de piranha, o presidente não hesitará em jogar outros ministros no rio. Chega-se, então, ao ponto: Bebianno virou comida de piranha para que o próprio Bolsonaro escape. Dito de outro modo: o presidente tenta salvar a pose de herói da cruzada anticorrupção.

A estratégia apresenta dois problemas. O primeiro é que Bolsonaro precisaria varrer muita coisa para baixo do tapete para continuar desfilando sua moralidade presumida. Isso incluiria o sumiço do enrosco do filho-senador Flávio Bolsonaro com o Coaf, do cheque que caiu na conta da primeira-dama e do empréstimo mal explicado do próprio Bolsonaro ao correntista atípico Fabrício Queiroz. O segundo problema é que a tática de Bolsonaro parte do pressuposto de que o Brasil é uma nação de bobos.