sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

A arca de Noé brasileira

No dia 1º de janeiro de 2003, zarpou, no lago Paranoá, em Brasília, a arca de Luiz Inácio para uma longa viagem, supostamente de quatro anos. Era uma cópia melhorada da arca de Noé. Os Noés brasileiros, da pós-modernidade, têm exigências que o humilde Noé bíblico não tinha.

Saiu lotada e bem abastecida, para indigestas buchadas e rabadas o tempo que durasse a viagem. Ia suprida para que, na própria arca, tivesse início um programa social de "fome zero", que morreria de inanição política.

Apesar das certezas quanto à cor da arca, houve confusão quanto aos rumos. Uns queriam ir para a esquerda, de vermelho rubro, outros, com base num manifesto ao povo brasileiro, queriam ir para a direita, de um vermelho indeciso, de amansar empresário e classe média.

Na hora de atracar, como estava previsto nos bons costumes políticos, ousaram seguir adiante, apesar dos riscos já indicados pelo mensalão. E assim foram indo, até que o excesso de lotação e de desvios afundasse a arca, antes de chegar ao porto seguro de sempre. A arca foi resgatada e enviada a um conceituado estaleiro de arcas presidenciais para os reparos devidos, trocada a cor do vermelho desbotado, preparando-a para novas tripulações e novas viagens.


Espécimes selecionados, os últimos de uma raça quase fossilizada, foram embarcados para preservar o que restava do tempo em que o mundo era mundo. Foi a arca posta a navegar, sob novo comandante. Zarpou no dia 1º de janeiro de 2019.

Como em 2003, essa tampouco achou o rumo, já passados dois meses de navegação. Talvez tenha faltado GPS, perdão, astrolábio na arca. Ou a velha bússola dos rumos e da razão.

Pelo menos não faltará o principal item da nova dieta presidencial. A despensa da arca está bem abastecida com latas de leite condensado. A viagem poderá ser cansativa, mas será doce. Nada de comidas pesadas e gordurosas. A tripulação e o país terão que emagrecer para que a navegação prossiga. A começar pelos aposentados, que dizem pesar muito.

O primeiro problema dessa arca é que tem uma única cabina de comando, mas tem um número excessivo de comandantes, embora só um tenha sido eleito. Nesse caso, todos querem levar a arca para a direita, mas cada qual tem a direita que merece. Existe a direita mística, a direita subserviente ao irmão do norte, a direita pseudofilosófica e, claro, como todas as direitas (e algumas esquerdas), a direita despistada. O que conforta é que o lago é pequeno e os destinos não são muitos. Sempre se chega ao mesmo lugar. A menos que o barco afunde.

Deus é brasileiro, mas há aí um pequeno problema. No barco há adeptos radicais de facções religiosas especializadas em profetizar o passado. Um deles é católico ultramontano. Outra é evangélica exaltada. Poderão descobrir que cada um de nós, com nossas diferenças, eles também, é apenas expressão de alteridade, criada na mediação mesmo de quem não gostamos.

Resta saber qual Bíblia será referência nos desacordos. Temo que a maravilhosa e erudita tradução da versão conhecida como Bíblia de Jerusalém não conste do que, já se percebeu, é a exígua biblioteca de bordo. O mais provável é que tenham levado para lá a Bíblia da popular e arcaica tradução de João Ferreira d'Almeida, do século XVII.

Não sei se tiveram o cuidado de excluir edições mais recentes com erros de impressão, coisa da lucrativa indústria da pressa. E, talvez, para contrapor, uma versão da vulgata, não vá o ultramontanismo cair no engano de se valer de alguma tradução de herege. Terão, ainda, que decidir se vão orar ou rezar. Não importa. O que esperamos é que Deus não os ouça nas intolerantes ideologias que se infiltraram em sua fé simples e sincera

Parece que houve problemas quanto à cor da arca: azul ou rosa? Deve ter havido mais urros do que sussurros para se chegar a um acordo quanto à cor. Partido cromático sempre se divide quanto ao que importa, perdendo-se nas fantasias de um senso comum sem conteúdo. E a pátria da arca que pague o pato.

De qualquer modo, não vazou nenhuma informação confiável quanto à cor dos cômodos da arca. Nem se os meninos ficarão separados das meninas, o que é lícito considerar, devido à relevância que uma tripulante deu ao assunto quanto ao poder da cor na definição da sexualidade das novas gerações.

Enfim, a arca do Paranoá vai navegando, como Deus é servido. Chegará a algum porto, que talvez não seja o do destino. Mas sempre haverá o corpo de bombeiros de Brasília, de prontidão, para salvar eventuais náufragos de aventuras políticas. A grande curiosidade é a relativa a que cor terá a arca quando atracar. E se o Brasil ainda será verde e amarelo e, propriamente, brasileiro e cidadão. Ou apenas um país sem cor nem graça.
José de Souza Martins

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