segunda-feira, 25 de março de 2024

A ‘burcarização’ da política

Em “Submissão”, Mohammed Ben Abbes, apoiado por uma frente ampla política, é eleito presidente da França. Até a vitória, mostra-se tipo cordato, democrático, embora desde o início não esconda as garras — sua chapa chama-se Fraternidade Muçulmana. Logo coloca em marcha suas crenças religiosas, explicitadas em políticas de governo, apesar de o Estado ser laico. Por estar ancorado em convicções como liberdade de expressão e opinião, mesmo em defesa de quem tenha laivos ditatoriais, o eleitorado tolerou o santo e agora ajoelha no milho.

É a burcarização da sociedade.

O romance de Michel Houellebecq, de 2015, pode ser visto como distopia, à semelhança de “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley. Mais fácil entendê-lo como alarme dirigido aos liberais radicais. Defensores contumazes da circulação de ideias, formam uma turma que por vezes morre pela boca. A liberdade irrestrita de manifestação não tem limites? Estão aí as redes sociais como exemplo da terra sem a lei dos homens, onde reinam lunáticos e jagunços, em campanha permanente contra o asseio.


Na ficção de Houellebecq, autor provocativo aos olhos dos identitários, a vitória do candidato muçulmano deu-se a despeito de todos os sinais de que governaria à luz dos ditames de sua religião. Havia uma soberba intelectual de que as regras democráticas estariam imunes a pistoleiros. Tá. Parece ingênuo pensar que a política seja algo limpo e honesto. A sociedade não é constituída apenas por anjos.

Fora da boa ficção, a História está aí com seu mundo terreno e infernos em rotação. Não esqueça que o nazismo chegou ao poder pelas urnas; as milícias hitleristas já perseguiam os judeus nas ruas de Munique e Berlim. Ali havia eleitores entusiasmados com os crimes — e brigariam se chamados de antissemitas. Noutro diapasão, mais tupiniquim e sem ser bazófia, Bolsonaro jamais escondeu ser homofóbico, misógino e golpista. Foi eleito. Há 60 anos ocorria em São Paulo a Marcha da Família com Deus pela Liberdade com milhares de fiéis pedindo golpe militar. Por longos anos, relembro, aqueles pais de família e senhoras constritas acharam normal seus adversários serem torturados, mortos ou sequelados. Quem liga para isso? Não se tratava de gente que pensasse como eles. Para o inferno!

Até que um dia elegem algum Mohammed Ben Abbes, e seus filhos acabam no pau de arara.

Houellebecq é escritor, cria histórias e personagens. Sua escrita incomoda a esquerda e a direita porque traz sempre uma contemporaneidade amarga e ácida, incômoda, difícil de digerir sem um esgar. Arte que não mexe com o estômago não é arte, escrevia outro pensador francês, Roland Barthes. “Submissão”, claro, foi acusado de intolerância com a religião, de cevar preconceitos (você conhece o tatibitate). Por acaso, o lançamento do livro foi simultâneo ao atentado contra o semanário satírico Charlie Hebdo. Doze pessoas foram mortas. O jornal costumava ironizar Maomé e seus fiéis. Em torno dos assassinatos e do enredo da obra, a França se perguntou: é certo brincar com a crença alheia? É meu direito discordar do catecismo? Ou achar engraçado quem jejua em dia santo? Quantas virgens ganharei? Por fim: não crer em Deus não é algo a respeitar?

A literatura brasileira contemporânea parece mais preocupada em seguir uma toada engajada — e em fazer justiça pelas próprias mãos. É mais o “espírito do tempo e menos uma individualidade própria”. Tem muito Itamar Vieira Junior e pouco Reinaldo Moraes para criar personagens neopentecostais usurpadores da fé e da poupança popular. Eu vos direi, se dizem cristãos atados ao Velho Testamento, portanto ainda antes de Jesus.

Ao criar a França muçulmana, Houellebecq talvez tenha pensado no Brasil. Aqui evangélicos eleitos com o dinheiro do fundo eleitoral atrasam a política pública de saúde, a liberdade individual das mulheres e até o currículo escolar; evocam Jesus para combater a descriminalização da maconha. Na pandemia, esconjuraram o “fique em casa”. Nunca acredite em dízimo digital!

Mas nenhum escritor imaginaria o seguinte enredo: um ditador sul-americano, aquele que encarcera os adversários políticos, ganha apoio à sua reeleição de um pastor-empresário-empreendedor. Aleluia. Em troca, como acontece no Brasil, abocanha isenções fiscais.

Pensamento do Dia

 


Vontade

Li "Guerra e Paz" tardiamente, intimidada tanto pelas mais de 1.500 páginas da obra-prima de Tolstói quanto pelo glossário de nomes, sobrenomes e apelidos do romance.

O príncipe Nicolai Andreiévitch Bolkónski pode aparecer como o Príncipe, ou Nicolai, ou Andreiévitch ou Bolkónski; pai de outro príncipe, Andrei, também Bolkónski, que além de atender pelas mesmas alcunhas do genitor, volta e meia é chamado de Nicolaiévich, filho de Nicolai.

Para não se perder no enredo, é aconselhável ter uma tabela periódica dos personagens à mão. Uma vez vencida a dificuldade, no entanto, "Guerra e Paz" se revela um daqueles amigos inesquecíveis, dos quais o leitor sente saudade mesmo antes de virar a última página.

O que a minha ignorância não contava era que, ao fim da saga, Tolstói arrematasse o livro com uma tese sobre a vontade inarredável dos povos. Segundo a teoria, Napoleão seria mero agente de uma ânsia coletiva da população de se mover para o leste, assim como a resistência de Kutuzov e a subsequente vitória de Wellington, em Waterloo, seria o contrafluxo desse impulso, em direção ao oeste.


As guinadas da história seriam causadas menos pela ambição, estratégia ou o poder de heróis revolucionários, generais e imperadores e mais pelo somatório dos ínfimos desejos da manada de Zé Ninguéns.

"Chegando ao infinitamente pequeno, a Matemática, a mais exata das ciências, […] adota o novo método da totalização das incógnitas infinitamente pequenas. […] Se o objetivo da História é o estudo do movimento dos povos e da Humanidade, e não descrever episódios da vida de alguns homens, ela deve […] pesquisar as leis comuns a todos os elementos de liberdade infinitamente pequenos, iguais e indissoluvelmente ligados entre si."

A tentativa de Tolstói de submeter a história aos infinitesimais da matemática lhe valeu críticas de aberração determinista, charlatanismo, farsa e fatalismo, partidas de filósofos e escritores peso-pesado, que apesar de o admirarem como artista desprezaram-no como pensador.

Quem sou eu para discordar de Flaubert e Turgueniev? Mas meu catastrofismo enxerga valor na afirmação do gênio. Há impulsos incontroláveis que nos movem e nos impelem, muitas vezes, na direção do infortúnio.

Tolstói morreu em 1910 e não viveu as duas grandes guerras do século 20, que elevaram ao absurdo a oscilação para leste e oeste descrita pelo escritor.

As tensões que levaram a Europa ao autoaniquilamento já estavam latentes no século 19. O nacionalismo, o antissemitismo arraigado, o expansionismo, a disputa pela supremacia do continente, o temor da Rússia, a corrida armamentista, a Revolução Industrial, o endividamento das nações, a desigualdade social e a insurreição da plebe.

A velha ordem, calcada no valor da terra e na hierarquia monárquica e religiosa, feneceu e a Europa se viu ameaçada pela instabilidade social e política, além de regida por uma economia volátil, que desconhecia fronteiras.

A insegurança fez germinar, no estômago de cada europeu, a necessidade de eliminar o inimigo, fosse ele o vizinho, o país fronteiriço, o partido oposto, o miserável do gueto ou o seguidor de outro deus. Uma sanha que, atravessado o século, encontraria em Adolf Hitler a sua mais completa tradução.

Hoje, assim como no século 19, vivemos o fim do mundo como o conhecemos, abatidos por um sentimento de falência e medo. Munidos de smartphones, manifestamos nosso pânico, raiva e incerteza na nuvem, num perpétuo estado de plebiscito que glorificou o extremismo.

Tarcísio de Freitas não posa de mito e bem poderia ter dado uma declaração vaselina ao rebater as críticas feitas à truculência da ação da polícia na Operação Verão, na Baixada Santista, mas não. Depois de ressaltar o apoio que recebeu dos empresários, o governador mandou para o raio que os parta os descontentes, arrematando com um "não estou nem aí".

De fato, exausta e descrente de uma solução factível para o problema crônico da miséria e da segurança pública, parte relevante do eleitorado flerta com a possibilidade do extermínio sumário das Faixas de Gaza do país.

Tolstói tem lá sua razão. Não são Putin, o Hamas, Netanyahu, Trump, Erdogan, Kim Jong-un, Noriega, Maduro, Messias, Braga Netto, Heleno, Milei e o Chega, somos nós mesmos e a nossa velha pulsão de morte.

Beijar os nomes

Quando na Argentina se inaugurou o memorial às vítimas da ditadura, as mães que eram nossas guias mostravam-nos, poderia dizer-se que com o orgulho com que as mães costumam falar dos seus filhos: “Olha, este é o meu filho, ali está o de Juan Gelman, este é um sobrinho…”. Eram simplesmente nomes gravados na pedra, nomes beijados mil vezes, eu próprio os beijei, como se beijavam em Madrid os nomes das vítimas do pior atentado ocorrido na Europa hoje, 11 de Março, cinco anos depois de um dia que dificilmente poderemos esquecer porque o terror cavou bem fundo, até ao coração da sociedade espanhola. Para conseguir, seguramente, que desprezássemos mais as suas causas e, de uma vez para sempre, o método que empregam, o terror como único argumento, malditos sejam.

Hoje via as mães abraçadas, as vítimas contemplando-se, querendo, talvez, ver no olhar dos outros o olhar dos seus desaparecidos. Recordei que há tempos tinha dito que essa imagem era lacerantemente bela. Pilar pede que a recupere. Com o meu abraço às vítimas e o meu beijo aos nomes escritos na nossa memória.

Em Espanha, solidarizar-se é um verbo que todos os dias se conjuga simultaneamente nos seus três tempos: presente, passado e futuro. A lembrança da solidariedade passada reforça a solidariedade de que o presente necessita, e ambas, juntas, preparam o caminho para que a solidariedade, no futuro, volte a manifestar-se em toda a sua grandeza. O 11 de Março não foi só um dia de dor e de lágrimas, foi também o dia em que o espírito solidário do povo espanhol ascendeu ao sublime com uma dignidade que profundamente me tocou e que ainda hoje me emociona quando o recordo. O belo não é apenas uma categoria do estético, podemos encontrá-lo também na acção moral. Por isso direi que poucas vezes, em qualquer lugar do mundo, o rosto de um povo ferido pela tragédia terá tido tanta beleza.

José Saramago, "O caderno"

Sob o domínio do medo

A história universal nos vai repassando inúmeros fatores de medo que extrapolam os indivíduos, tomam corpo coletivo e produzem consequências: medo da guerra, da fome, da peste, da morte, dos terremotos, de assalto, do diabo, das bruxas, do estrangeiro, da mulher, da solidão, medo do fim do mundo.

O noticiário diário está carregado de manifestações equivalentes. Por toda parte chegam reações hostis ao grande afluxo de imigrantes e de refugiados. O candidato republicano à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, quer aniquilá-los. As levas de africanos diariamente despejados no litoral da Europa vêm fortalecendo movimentos xenofóbicos em países que se julgavam culturalmente avançados e livres de preconceitos selvagens desse tipo.


Na Alemanha – e não só por lá – carros elétricos começam a ser depredados porque se espalha o medo de que o produto chinês está acabando com a indústria automobilística local e, com isso, ameaçando o emprego de milhões.

Na França e na Espanha, os agricultores tomaram estradas e avenidas nas grandes cidades com seus tratores e máquinas agrícolas, porque não conseguem competir com o alimento importado. Os avanços em direção à substituição de combustíveis fósseis por energia limpa, que pareciam inquestionáveis e inexoráveis nos países industrializados, vão sendo ameaçados por manifestações e por novas leis que exigem se não a reversão, pelo menos o alargamento dos prazos desse processo.

As redes sociais estão repletas de mensagens de ódio e de medo porque as pessoas se sentem cada vez mais derrubadas, empobrecidas e ameaçadas nos seus direitos. Espalha-se o sentimento que o francês chama de “malaise”, um mal-estar generalizado, muitas vezes destituído de sintomas claros.

As consequências não se restringem aos debates e às manifestações nos Parlamentos, na academia, nas praças públicas ou, mesmo, ao esperneio dos que se sentem prejudicados. Por toda parte, aparecem os profetas de toda espécie de apocalipse, dispostos a explorar esses sentimentos e essa energia social acumulada para seus projetos totalitários, supostamente salvadores. Culpam as políticas verdes, a excessiva tolerância das autoridades para com os imigrantes e as pautas identitárias. Querem alastramento do protecionismo comercial e se rebelam contra o que entendem como aniquilamento do seu presente. Essa é a principal razão pela qual os partidos de extrema direita estão se fortalecendo na Europa e nos Estados Unidos.

A saída para isso é mais democracia, e não menos. Mas em certas horas, como agora, é difícil encontrar quem escute mensagens assim.

As forças da desordem

O triunfo do Chega nas recentes eleições em Portugal não foi uma surpresa. Porém, doeu a muitos como se fosse. A ideia romântica de que Portugal estaria, de alguma forma mágica, protegido do avanço da ultradireita, caiu por terra com escândalo e fragor.

Como em tantos outros países, incluindo o Brasil, a ascensão da ultradireita prejudicou em primeiro lugar os movimentos conservadores tradicionais. Antes de Donald Trump ser um nome conhecido no mundo, havia em Portugal uma direita urbana e civilizada, com personalidades amáveis e de grande cultura, respeitadas por toda a gente, como Diogo Freitas do Amaral, Francisco Lucas Pires ou Adriano Moreira.

A meia centena de deputados do Chega que agora acede ao belo edifício do Parlamento português, no tradicional bairro de São Bento, não tem proximidade alguma, nem ideológica, nem sociológica, nem civilizacional, com aquelas personalidades. São uma coleção disparatada de oportunistas, charlatães, desordeiros, e pequenos delinquentes, com poucos princípios e escassa cultura política (estou sendo generoso). Não chegam ao Parlamento com o objetivo de propor soluções. O seu único propósito, porque só isso sabem fazer, é tumultuar. Enfim, são agentes da desordem.


O fortalecimento global da ultradireita é, em larga medida, responsabilidade da esquerda. Enquanto a direita perdia a civilidade, a esquerda perdia os sonhos. Pior: perdia a capacidade de sonhar, dividindo-se em lutas tribais e debatendo aos gritos o sexo dos anjos. Ao mesmo tempo, os problemas do planeta agigantavam-se, com o aquecimento global aprofundando as desigualdades entre os países do norte e do sul, e as novas tecnologias sofisticando velhas mentiras.

Numa democracia saudável é importante que exista espaço para a direita e para a esquerda, para convergências, para divergências e até, diante da singularidade e magnitude de alguns dos problemas que enfrentamos hoje, para ideias e movimentos inteiramente originais. Agentes da desordem, porém, não servem à democracia. São uma doença dos sistemas democráticos e precisam ser identificados e tratados como tal.

Estas forças da desordem constituem, além de tudo o resto, paradoxos deprimentes. O Chega, por exemplo, pretende fechar a porta aos emigrantes. Entre os seus novos deputados, contudo, destaca-se um brasileiro, e um ex-imigrante português. O brasileiro, que é negro, produziu há poucos dias um bizarro discurso, defendendo uma Europa só para os brancos, e uma África só para os negros. O colega, tentando ultrapassá-lo em ingenuidade, confessou que durante muito tempo foi imigrante ilegal num outro país europeu.

Para travar esta onda seria necessário que os democratas, de esquerda e de direita, se juntassem na defesa da democracia. O novo primeiro-ministro português, o social-democrata Luís Montenegro, afirmou durante toda a campanha eleitoral não estar disponível para alianças com o Chega. A esquerda deveria apoiá-lo, incentivá-lo, acarinhá-lo, ao invés de esperar que Montenegro venha a ser defenestrado através de um golpe palaciano no seio do seu próprio partido, ou que o governo tropece e caia, de pura fraqueza, ao virar da esquina. Infelizmente, o mais certo é que caia. Então, as forças da desordem voltarão a ganhar.