quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023
É Flórida
Jair Bolsonaro continua na Flórida, abanando-se com o formulário em que pediu visto de turista às autoridades americanas já que seu passaporte "diplomático" caducou. Há dias, um dos zeros, indagado sobre quando seu pai pretendia voltar, respondeu: "Não sei. Pode ser amanhã, pode ser daqui a seis meses, pode não voltar nunca. Ele está desopilando".
Desopilando? Olha a corrida ao dicionário. Segundo o Houaiss, desopilar é "desobstruir, aliviar, desentupir, descarregar". Opilar, por sua vez, significa "obstruir um conduto natural". Logo, Bolsonaro está com um conduto natural obstruído e precisa desentupi-lo, daí seu turismo na Flórida. A imagem é repulsiva para ser lida no café da manhã, mas, pelo menos, Bolsonaro está fazendo isso longe. E, se uma de suas opções é não voltar nunca, imagine o grau da obstrução que o acomete.
Desopilar é também "alegrar-se, desanuviar, espairecer, rejubilar-se". Mas o que haverá de tão alegre hoje na Flórida para Bolsonaro? Não será a companhia de seu amigo Donald Trump, já que, para Trump, Bolsonaro vale agora menos que o papel amassado da embalagem do seu chiclete. E não que Bolsonaro esteja precisando de dinheiro, mas a possibilidade de fazer "palestras para empresários", a R$ 50 mil por palestra, também se frustrou —como turista nos EUA, ele não pode prestar serviço remunerado. Por que então Bolsonaro não as faz de graça, para desopilar?
E como imaginar Bolsonaro entregando-se a outra acepção da palavra, "rejubilar-se"? Ele não tem muitas razões para se rejubilar. Os americanos veem com asco a sua presença no país. Anguillara Vêneta, a cidade da Itália que o tornou cidadão honorário, quer apagar essa mancha de sua história. E até sua mulher, Michelle, já o deixou para trás e voltou. Só lhe resta armar um cercadinho e falar para os pacóvios brasileiros na Disney.
Bolsonaro não tem escolha. É Flórida.
Desopilando? Olha a corrida ao dicionário. Segundo o Houaiss, desopilar é "desobstruir, aliviar, desentupir, descarregar". Opilar, por sua vez, significa "obstruir um conduto natural". Logo, Bolsonaro está com um conduto natural obstruído e precisa desentupi-lo, daí seu turismo na Flórida. A imagem é repulsiva para ser lida no café da manhã, mas, pelo menos, Bolsonaro está fazendo isso longe. E, se uma de suas opções é não voltar nunca, imagine o grau da obstrução que o acomete.
Desopilar é também "alegrar-se, desanuviar, espairecer, rejubilar-se". Mas o que haverá de tão alegre hoje na Flórida para Bolsonaro? Não será a companhia de seu amigo Donald Trump, já que, para Trump, Bolsonaro vale agora menos que o papel amassado da embalagem do seu chiclete. E não que Bolsonaro esteja precisando de dinheiro, mas a possibilidade de fazer "palestras para empresários", a R$ 50 mil por palestra, também se frustrou —como turista nos EUA, ele não pode prestar serviço remunerado. Por que então Bolsonaro não as faz de graça, para desopilar?
E como imaginar Bolsonaro entregando-se a outra acepção da palavra, "rejubilar-se"? Ele não tem muitas razões para se rejubilar. Os americanos veem com asco a sua presença no país. Anguillara Vêneta, a cidade da Itália que o tornou cidadão honorário, quer apagar essa mancha de sua história. E até sua mulher, Michelle, já o deixou para trás e voltou. Só lhe resta armar um cercadinho e falar para os pacóvios brasileiros na Disney.
Bolsonaro não tem escolha. É Flórida.
Irresponsabilidade é geral
A gente permitiu que isso acontecesse no nosso tempo no nosso país, debaixo da nossa guarda porque todos nós, brasileiros, nós somos responsáveis pelo que está acontecendoSonia Bridi
Não são somente ‘índios’
Se fossem somente os ianomâmis, seria uma tragédia, mas é muito mais que isso. É o destino trágico das “populações indígenas integradas” ao sistema brasileiro. É uma repetição cruel do que ocorreu com os africanos que aqui foram máquinas de trabalhar como escravos. De fato, os que chamamos de “índios” são representantes de outras humanidades. São manifestações do humano, hoje em estado de tortura física e moral. Na experiência de quem se dedicou ao assunto, é o preço do cruel rito de passagem que vai do isolamento à integração sempre mutiladora, senão genocida, quando essas “humanidades indígenas” são canibalizadas por nosso mundo “civilizado”.
Quando falo em humanidades, penso no conceito de cultura de E. B. Tylor, de 1871! Nessa definição, cultura não é alta ou boa educação e belas-artes — é algo definidor da condição humana como “aquela totalidade complexa, que inclui conhecimento, crença, arte, lei, moralidade, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como um integrante da sociedade”.
Quando etnólogos falam em “Línguas e culturas indígenas do Brasil”, como fez num livro indispensável Darcy Ribeiro em 1957, eles redefinem radicalmente as coletividades humanas chamadas vulgarmente de “tribos” e “raças”, pois o cultural é sabedoria, moral e costumes habituais — que se faz coletivamente sem pensar —, mas não é inato. É, como tudo o que nos distingue como humanos, aprendido por meio de um sistema de relações sociais.
Note bem, em 1871 Tylor nos tirou da tirania das taras raciais e racistas (usadas até hoje como classificadores de coletivos humanos) para ler as diferenças de costumes como uma totalidade — como um cosmo que, ao lado do idioma, chega de fora para dentro. Tylor deu um passo decisivo contra suposições biológicas usadas para explicar diferenças.
Quando, então, falamos da atual tragédia ianomâmi, estamos de fato nos referindo à agonia de liquidar um modo alternativo de ser humano. Nesse sentido, ser “índio” não é apenas ser um autóctone ou um grupo ancestral que revela seu primitivismo andando nu... É ser, como nós, uma “humanidade plena”, que vivencia a vida de modo alternativo, mas de nenhuma maneira fora dos quadros gerais do que chamamos de “condição humana”.
“Índios” são como a gente, a menos que se lhes atribua algum traço racista imutável. Eles são vitimados pelas mesmas doenças e violências, como qualquer outro grupo humano (devo lembrar a agressão russa à Ucrânia?). Pois, como parceiros da nossa flutuante e contraditória humanidade, eles, tal como nós, pagam um preço descabido por seu modo de ser e agir.
A tragédia dos ianomâmis leva-me aos anos 1960, quando comecei a estudar essas sociedades e, em 1961, vivi três meses com os gaviões na mata paraense.
Não tenho espaço para exprimir o que vi e pesquisei, exceto para reiterar o dramático processo de contato intercultural desse grupo de língua jê com os extratores de castanha locais, descrito no livro “Índios e castanheiros”, escrito com Roque Laraia, um texto de juventude incapaz de descrever os horrores que testemunhei.
Como assinalei no meu diário, os “índios” não passavam um dia sem falar em morte e reafirmar que morreriam. Felizmente, tal profecia não ocorreu, mas a extinção como um destino e a perda irreparável de uma experiência humana alternativa poderia ter ocorrido. Tal foi o caso de muitas dessas culturas que não tivemos o cuidado de sequer pensá-las como esplêndidas experiências de viver na floresta com uma tecnologia engenhosa, mas não engenheira, marcada muito mais pela reciprocidade que pela troca na qual um lado tira vantagem do outro. Algo mais do que claro no caso ianomâmi, a que se devem acrescentar o assalto a seu território, o roubo de suas riquezas, a violação de suas almas por catequistas — e a infame indiferença de administradores. É preciso a tragédia para agirmos e, quem sabe, ir da extinção para um ato de benevolência.
Quando falo em humanidades, penso no conceito de cultura de E. B. Tylor, de 1871! Nessa definição, cultura não é alta ou boa educação e belas-artes — é algo definidor da condição humana como “aquela totalidade complexa, que inclui conhecimento, crença, arte, lei, moralidade, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como um integrante da sociedade”.
Quando etnólogos falam em “Línguas e culturas indígenas do Brasil”, como fez num livro indispensável Darcy Ribeiro em 1957, eles redefinem radicalmente as coletividades humanas chamadas vulgarmente de “tribos” e “raças”, pois o cultural é sabedoria, moral e costumes habituais — que se faz coletivamente sem pensar —, mas não é inato. É, como tudo o que nos distingue como humanos, aprendido por meio de um sistema de relações sociais.
Note bem, em 1871 Tylor nos tirou da tirania das taras raciais e racistas (usadas até hoje como classificadores de coletivos humanos) para ler as diferenças de costumes como uma totalidade — como um cosmo que, ao lado do idioma, chega de fora para dentro. Tylor deu um passo decisivo contra suposições biológicas usadas para explicar diferenças.
Quando, então, falamos da atual tragédia ianomâmi, estamos de fato nos referindo à agonia de liquidar um modo alternativo de ser humano. Nesse sentido, ser “índio” não é apenas ser um autóctone ou um grupo ancestral que revela seu primitivismo andando nu... É ser, como nós, uma “humanidade plena”, que vivencia a vida de modo alternativo, mas de nenhuma maneira fora dos quadros gerais do que chamamos de “condição humana”.
“Índios” são como a gente, a menos que se lhes atribua algum traço racista imutável. Eles são vitimados pelas mesmas doenças e violências, como qualquer outro grupo humano (devo lembrar a agressão russa à Ucrânia?). Pois, como parceiros da nossa flutuante e contraditória humanidade, eles, tal como nós, pagam um preço descabido por seu modo de ser e agir.
A tragédia dos ianomâmis leva-me aos anos 1960, quando comecei a estudar essas sociedades e, em 1961, vivi três meses com os gaviões na mata paraense.
Não tenho espaço para exprimir o que vi e pesquisei, exceto para reiterar o dramático processo de contato intercultural desse grupo de língua jê com os extratores de castanha locais, descrito no livro “Índios e castanheiros”, escrito com Roque Laraia, um texto de juventude incapaz de descrever os horrores que testemunhei.
Como assinalei no meu diário, os “índios” não passavam um dia sem falar em morte e reafirmar que morreriam. Felizmente, tal profecia não ocorreu, mas a extinção como um destino e a perda irreparável de uma experiência humana alternativa poderia ter ocorrido. Tal foi o caso de muitas dessas culturas que não tivemos o cuidado de sequer pensá-las como esplêndidas experiências de viver na floresta com uma tecnologia engenhosa, mas não engenheira, marcada muito mais pela reciprocidade que pela troca na qual um lado tira vantagem do outro. Algo mais do que claro no caso ianomâmi, a que se devem acrescentar o assalto a seu território, o roubo de suas riquezas, a violação de suas almas por catequistas — e a infame indiferença de administradores. É preciso a tragédia para agirmos e, quem sabe, ir da extinção para um ato de benevolência.
Parte de nós
É feio reconhecê‑lo, mas a maioria das pessoas não faz distinções e rejeita os matizes. Ainda mais feio e triste é admitir a excessiva influência dos governantes na percepção que temos dos seus países e dos seus povos. Não serve de muito o facto de, quando Trump foi eleito presidente, há um par de anos, ter perdido o sufrágio popular por uma diferença de dois milhões de votos, se não estou mal lembrado, e de só o injusto sistema eleitoral americano lhe ter permitido a investidura. Desde então, a nossa ideia dos Estados Unidos mudou para pior, e essa péssima ideia afecta a totalidade dos seus cidadãos. Embora saibamos que uma grande parte da nação detesta Trump e sofre com ele mais do que qualquer estrangeiro, a mancha torna‑se também extensiva às suas vítimas. Há pouco tempo, declinei um convite de Harvard porque — expliquei‑o a quem me escrevia — “não porei os pés no seu país enquanto Trump continuar em funções”. O professor em questão era tão contrário ao seu presidente como eu ou mais, mas a minha decisão — pessoal, insignificante — é irreversível, como foi a de não ir lá durante os mandatos de Bush Jr., que cumpri estritamente. Assim se eu, que procuro ter em conta os matizes, reajo desta maneira drástica, como não reagiriam assim tantos que nem sequer o procuram? Pelo seu lado, a Grã‑Bretanha foi sempre um dos meus países favoritos, e a minha anglofilia declarada valeu‑me um desprezo significativo em Espanha. Desde a votação do Brexit, no entanto, as minhas simpatias foram minguando. Sei que os partidários do abandono da União Europeia foram poucos mais do que os desejosos de ficar, e que, além disso, muitos destes últimos, confiando em que os despropósitos e as mentiras flagrantes não prevaleceriam, se abstiveram despreocupadamente. Tenho bastantes amigos ingleses e escoceses, e todos eles estão horrorizados ou desesperados. Não tomei a mesma decisão — pessoal, insignificante — que a respeito dos Estados Unidos (custa‑me mais, e o Brexit ainda não teve lugar), mas tenho escassa vontade de visitar um lugar que sempre me alegrou e atraiu. Os governantes, com efeito, têm mais peso do que o desejável, e quando são oprobriosos contagiam todos com o seu opróbrio. É por isso que é tão irresponsável e nocivo o que os dirigentes independentistas catalães estão a fazer há seis anos. Deixando de parte outras considerações, conseguiram que no resto de Espanha nasça e cresça uma animadversão indiscriminada contra “os catalães”, quando, dos seis ou sete milhões que são, só dois (segundo os cálculos mais interessados) apoiam esse procés de laivos racistas, ultrarreacionários e antidemocráticos, por muito que os seus promotores encham cinicamente a boca com a palavra “democracia” e que o idiótico PEN os anime a troco de dádivas. Durante estes seis anos acumularam insultos, desprezo, calúnias e agravos sem fim contra “os espanhóis”, com especial sanha contra madrilenos, andaluzes e estremenhos. Por sorte, a reacção tem sido exígua, lenta e nada exaltada. Mas é óbvio que a paciência se erode e que a exasperação está a aumentar. Aos Mas, Puigdemont, Junqueras, Torra, Rovira, Artadi, Rufián e companhia, isso não lhes dá cuidado; de facto, anseiam por mais exasperação. O certo é que, até mesmo se um dia a sua anelada República fosse um facto e a Catalunha independente, a geografia, casmurra, não mudaria, e continuaríamos a ser vizinhos. Será aconselhável irritar deliberada e sistematicamente o vizinho, sobretudo quando este é o nosso principal cliente? Quando é aquele a quem solicitaríamos auxílio em caso de catástrofe natural ou de atentado terrorista massivo? Quando temos séculos de convivência e de solidariedade ininterruptas, apesar das fricções inegáveis? Quanto tempo será preciso para que se restabeleça a confiança perdida e a estima deteriorada? Uma vez que nos consideramos compatriotas e que estamos muito misturados, é neste caso ainda mais necessário não perdermos de vista os matizes e fazermos um esforço contínuo por recordar que os usurpadores mencionados não são, em absoluto, “os catalães”, mas antes — graças a um outro sistema eleitoral injusto — indivíduos que, devido a uma maioria parlamentar artificial, tomaram como reféns todos os seus concidadãos. Há quatro ou cinco milhões que não fazem nada senão sofrer, e a eles não podemos virar‑lhes as costas nem abandoná‑los à sua sorte, são a maioria. Conheço muitos assim, catalanófonos. Passo parte do ano na sua terra e, madrileno que sou, e tendo‑me pronunciado publicamente não contra o independentismo (defenda cada um o que queira), mas contra este independentismo totalitário e a mal, nunca me senti rejeitado nem me vi desprezado, nem em privado nem na rua. Antes pelo contrário. Agora que começa o julgamento dos políticos acusados de delitos, o tom do ruído subirá mais. A difamação da democracia espanhola não conhecerá limites nem escrúpulos. As ofensas multiplicar‑se‑ão. Ser‑nos‑á dito que não se passou aquilo a que vimos. Os que fomentam o ódio aplicar‑se‑ão com afinco. Justamente agora é preciso não perder de vista que “os catalães” não são os que vociferam, increpam e caluniam, seja de que maneira for. Continuam a ser parte de nós, como o foram sempre, ainda que para os usurpadores e seus acólitos nós já não sejamos parte deles. Isso não nos deve importar. São muitos, mas os menos.
Javier Marías, “Será o cozinheiro boa pessoa?”
Javier Marías, “Será o cozinheiro boa pessoa?”
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