O presidente Jair Bolsonaro aproveitou, ontem, a entrega de casas populares no Distrito Federal para anunciar que desembarca, amanhã, em Chapecó, município de 225 mil habitantes em Santa Catarina, distante 550 quilômetros de Florianópolis.
Motivo da visita: o “trabalho excepcional” feito pela prefeitura de Chapecó no combate à pandemia. Um trabalho, segundo ele, que deu liberdade aos médicos para prescreverem o tratamento precoce da doença. O ministro da Saúde irá com ele.
Chapecó está com 100% das UTIs lotadas. Acumula mais mortes por 100 mil habitantes do que o país e o Estado. Dos 537 mortos pelo vírus, mais de 410 foram registrados somente este ano. Em fevereiro último, o sistema de saúde entrou em colapso.
Apesar disso, o prefeito João Rodrigues (PSD) garante que a doença “está 100% controlada”. O que tem, segundo ele, “são as UTIs lotadas”. Mesmo assim, em Chapecó, cidade onde “a economia bomba”, é “proibido falar em lockdown".
Bolsonaro vai sentir-se em casa.
terça-feira, 6 de abril de 2021
A falsa crise e a crise permanente
Militares — ao menos os de alta patente — não respaldam o golpismo de Jair Bolsonaro. Ok. Vá lá. Respaldam, porém, o governo por meio do qual Bolsonaro exercita seu golpismo. Isso é um fato. Serei generoso a respeito. Admitamos que tenha havido, entre os generais que embarcaram na canoa do capitão, os que desconhecessem a figura. (Falei que seria generoso.) Passados dois anos, contudo: se ficam, endossam. Se ficam, ante tudo quanto há, acumpliciam-se. Se ficam e se ficaram, os que saíram anteontem, de súbito democratas: cúmplices.
O governo é militar — e já vai tarde o tempo, um Pazuello de distância, em que se poderia reverter essa associação. É orgânica, embora tenha como marca a produção de cloroquina em laboratórios do Exército. São cerca de 6 mil os militares (quase a metade, da ativa) incorporados à administração federal, em ministérios, inclusive os palacianos, e estatais. E é com assento neste corpo, na projeção de força que esta estrutura musculosa insinua, que o presidente da República fala — e continua a falar —em “meu Exército”.
O governo é militar — e autocrático. O presidente não se tornou este populista-autoritário na semana passada; e foi por ser o que é que atraiu tantos generais-helenos. A dança das cadeiras se dá em torno — e em função — de Bolsonaro. Um general vai; outro vem. As Forças Armadas, o Exército acima de todas, permanecem.
Estão todos felizes nesta parceria; o que não exclui reacomodações eventuais.
Sim: houve tensão no processo que resultou na queda de Azevedo e Silva. Não ficou claro o que Bolsonaro lhe teria pedido que ainda não tivesse entregado; sendo o ex-ministro da Defesa aquele, e não posso crer que obrigado, que sobrevoara, com o presidente, em helicóptero militar, uma manifestação golpista, e que continuaria no cargo mesmo depois de o chefe haver discursado em ato antidemocrático defronte ao QG do Exército. O que mais queria Bolsonaro? O que mais quererá, que Azevedo e Silva não topou dar, e que Braga Netto — dedução lógica —toparia? (Sempre haverá quem tope, ou general Ramos não se teria transformado neste Carlos Marun fardado.)
Houve alguma tensão. Mas não a crise que se quis difundir — e que só faz o jogo do presidente. O que quer que tenha sido: nada que mudasse a relação de Bolsonaro com os militares. Nada nem sequer próximo de estremecer uma sociedade que — diga-se —tende a se aprofundar no novo arranjo. Ou, com Braga Netto na Defesa, teremos menos militares no governo? Ou, sob Braga Netto, não seria mais fácil esperar que esse número aumentasse?
Que crise será esta em que os partícipes todos engordam? Ora: só uma — um falso problema — que fosse forjada; e boa para todos os envolvidos.
O general demitido saiu plantando, com eficiência, que sua débâcle derivava de não ter aceitado pressão por apoio político — por mais apoio político, né? — das Forças Armadas ao governo. E, desse modo, sem maiores questionamentos, foi para casa beatificado, um guerreiro em defesa da democracia e das Armas como instituições de Estado; como se não tivesse assinado, nos 31 de março de 2019 e 2020, ordens do dia cujas exaltações ao golpe de 1964 foram mais intensas que a de 2021.
Virou herói. Contou sua história, não foi chamado a detalhá-la ao Senado e virou santo, assim como Bolsonaro virara defensor da vacinação em massa. E ficaram todos felizes: o democrata (desde a véspera) e o golpista (sem dentes para dar golpe); os perigos obscuros sugeridos por Azevedo e Silva alimentando o terrorismo — banguela — do presidente.
Era tudo de que Bolsonaro precisava. Uma crise artificial— conflito forjado — para demonstrar força, que não tem, num período em que vai obviamente isolado, desprovido de recursos políticos para robustecer o governo que não os oferecidos por Arthur Lira. Puro truque: fabricar um confronto para exibir quem manda, quem tem poder, enquanto, no mundo real, o Centrão derruba o ministro das Relações Exteriores, sequestra o Orçamento e chega ao Planalto tomando a articulação política.
Bolsonaro neste momento: um fraco, um sozinho, que tem os filhos como recursos humanos, e que estica a corda a cada vez que tem essa miséria exposta. Arma-se um perigoso ciclo de instabilidade, que aguça — aí, sim — a crise real. Uma crise permanente. Porque o fraco, naturalmente, mostra fraqueza —e essa fraqueza evidente faz com que o fraco, sendo ele Bolsonaro, precise mostrar força. Assim giramos... Azevedo e Silva serviu de escada para que o presidente desfilasse seu poder imaginário: aquele que demite os comandantes militares, que faz e acontece, sendo o mesmo que entrega latifúndios de seu governo em busca de sustentação e blindagem.
A questão é lógica: ou Bolsonaro é mito ou precisa receber Valdemar da Costa Neto no Planalto. Isso implica uma pane em sua base de apoio fundamental, em resposta a que, para agradá-la, tem de radicalizar. E então radicaliza, com nova rodada de ataques aos tiranos governadores e mais referências ao “meu Exército” (fantasia que Azevedo e Silva fez parecer real) — ataques, entretanto, que não serão chancelados pelo sócio (de capital crescente) Centrão. Eis o ciclo da desgraça, da progressiva corrosão republicana. A crise constante. O nosso buraco. Contratado um país que, estando paralisado, não terá como andar tão cedo.
O governo é militar — e já vai tarde o tempo, um Pazuello de distância, em que se poderia reverter essa associação. É orgânica, embora tenha como marca a produção de cloroquina em laboratórios do Exército. São cerca de 6 mil os militares (quase a metade, da ativa) incorporados à administração federal, em ministérios, inclusive os palacianos, e estatais. E é com assento neste corpo, na projeção de força que esta estrutura musculosa insinua, que o presidente da República fala — e continua a falar —em “meu Exército”.
O governo é militar — e autocrático. O presidente não se tornou este populista-autoritário na semana passada; e foi por ser o que é que atraiu tantos generais-helenos. A dança das cadeiras se dá em torno — e em função — de Bolsonaro. Um general vai; outro vem. As Forças Armadas, o Exército acima de todas, permanecem.
Estão todos felizes nesta parceria; o que não exclui reacomodações eventuais.
Sim: houve tensão no processo que resultou na queda de Azevedo e Silva. Não ficou claro o que Bolsonaro lhe teria pedido que ainda não tivesse entregado; sendo o ex-ministro da Defesa aquele, e não posso crer que obrigado, que sobrevoara, com o presidente, em helicóptero militar, uma manifestação golpista, e que continuaria no cargo mesmo depois de o chefe haver discursado em ato antidemocrático defronte ao QG do Exército. O que mais queria Bolsonaro? O que mais quererá, que Azevedo e Silva não topou dar, e que Braga Netto — dedução lógica —toparia? (Sempre haverá quem tope, ou general Ramos não se teria transformado neste Carlos Marun fardado.)
Houve alguma tensão. Mas não a crise que se quis difundir — e que só faz o jogo do presidente. O que quer que tenha sido: nada que mudasse a relação de Bolsonaro com os militares. Nada nem sequer próximo de estremecer uma sociedade que — diga-se —tende a se aprofundar no novo arranjo. Ou, com Braga Netto na Defesa, teremos menos militares no governo? Ou, sob Braga Netto, não seria mais fácil esperar que esse número aumentasse?
Que crise será esta em que os partícipes todos engordam? Ora: só uma — um falso problema — que fosse forjada; e boa para todos os envolvidos.
O general demitido saiu plantando, com eficiência, que sua débâcle derivava de não ter aceitado pressão por apoio político — por mais apoio político, né? — das Forças Armadas ao governo. E, desse modo, sem maiores questionamentos, foi para casa beatificado, um guerreiro em defesa da democracia e das Armas como instituições de Estado; como se não tivesse assinado, nos 31 de março de 2019 e 2020, ordens do dia cujas exaltações ao golpe de 1964 foram mais intensas que a de 2021.
Virou herói. Contou sua história, não foi chamado a detalhá-la ao Senado e virou santo, assim como Bolsonaro virara defensor da vacinação em massa. E ficaram todos felizes: o democrata (desde a véspera) e o golpista (sem dentes para dar golpe); os perigos obscuros sugeridos por Azevedo e Silva alimentando o terrorismo — banguela — do presidente.
Era tudo de que Bolsonaro precisava. Uma crise artificial— conflito forjado — para demonstrar força, que não tem, num período em que vai obviamente isolado, desprovido de recursos políticos para robustecer o governo que não os oferecidos por Arthur Lira. Puro truque: fabricar um confronto para exibir quem manda, quem tem poder, enquanto, no mundo real, o Centrão derruba o ministro das Relações Exteriores, sequestra o Orçamento e chega ao Planalto tomando a articulação política.
Bolsonaro neste momento: um fraco, um sozinho, que tem os filhos como recursos humanos, e que estica a corda a cada vez que tem essa miséria exposta. Arma-se um perigoso ciclo de instabilidade, que aguça — aí, sim — a crise real. Uma crise permanente. Porque o fraco, naturalmente, mostra fraqueza —e essa fraqueza evidente faz com que o fraco, sendo ele Bolsonaro, precise mostrar força. Assim giramos... Azevedo e Silva serviu de escada para que o presidente desfilasse seu poder imaginário: aquele que demite os comandantes militares, que faz e acontece, sendo o mesmo que entrega latifúndios de seu governo em busca de sustentação e blindagem.
A questão é lógica: ou Bolsonaro é mito ou precisa receber Valdemar da Costa Neto no Planalto. Isso implica uma pane em sua base de apoio fundamental, em resposta a que, para agradá-la, tem de radicalizar. E então radicaliza, com nova rodada de ataques aos tiranos governadores e mais referências ao “meu Exército” (fantasia que Azevedo e Silva fez parecer real) — ataques, entretanto, que não serão chancelados pelo sócio (de capital crescente) Centrão. Eis o ciclo da desgraça, da progressiva corrosão republicana. A crise constante. O nosso buraco. Contratado um país que, estando paralisado, não terá como andar tão cedo.
Bolsonaro e o mito de Sísifo
O consagrado escritor francês Albert Camus foi um existencialista, para quem o homem vive em busca de sua essência, do seu sentido, e encontra um mundo desconexo, ininteligível, guiado por religiões e ideologias políticas. Num de seus ensaios filosóficos, Camus classifica Sísifo, um dos grandes personagens da mitologia grega, como um herói absurdo. “Tanto por causa de suas paixões como por seu tormento. Seu desprezo pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida lhe valeram esse suplício indizível no qual todo seu ser se empenha em não terminar coisa alguma. É o preço que se paga pelas paixões desta terra”, resumiu.
Os deuses condenaram Sísifo a rolar incessantemente uma rocha até o cume de uma montanha, de onde a pedra se precipitava por seu próprio peso. “Imaginaram que não haveria punição mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança”, afirma Camus, que publicou O Mito de Sísifo em 1942. Nessa obra, destaca o mundo imerso em irracionalidades. “Ou não somos livres, e o responsável pelo mal é Deus todo-poderoso, ou somos livres e responsáveis, mas Deus não é todo-poderoso”, questionava.
Àquela época, em plena Segunda Guerra Mundial, o mundo parecia mesmo absurdo: a guerra, a ocupação da França, o triunfo aparente da violência e da injustiça, tudo se opunha ao humanismo e à ideia de civilização. O trabalho de Sísifo, ao empurrar incessantemente uma pedra até o alto da montanha, até ela tornar a cair, é uma analogia perfeita com o esforço empreendido por profissionais da saúde, prefeitos e governadores para combater a pandemia do novo coronavírus: a covid-19. Entretanto, esse não é um trabalho inútil e sem esperança, como no caso do mito grego. É uma batalha que acabará sendo ganha, apesar de tudo.
Como disse Camus, porém, “sempre houve homens para defender os direitos do irracional”. O problema é quando se trata de um governante, como o presidente Jair Bolsonaro, que combate as medidas de isolamento social e mobiliza seus aliados para sabotar os esforços dramáticos que estão sendo realizados para evitar que a pandemia mantenha sua escalada, que pode chegar a mais de 500 mil mortos em julho, segundo estimativas dos principais centros de estudos epidemiológicos do mundo.
Luiz Carlos Azedo
Os deuses condenaram Sísifo a rolar incessantemente uma rocha até o cume de uma montanha, de onde a pedra se precipitava por seu próprio peso. “Imaginaram que não haveria punição mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança”, afirma Camus, que publicou O Mito de Sísifo em 1942. Nessa obra, destaca o mundo imerso em irracionalidades. “Ou não somos livres, e o responsável pelo mal é Deus todo-poderoso, ou somos livres e responsáveis, mas Deus não é todo-poderoso”, questionava.
Àquela época, em plena Segunda Guerra Mundial, o mundo parecia mesmo absurdo: a guerra, a ocupação da França, o triunfo aparente da violência e da injustiça, tudo se opunha ao humanismo e à ideia de civilização. O trabalho de Sísifo, ao empurrar incessantemente uma pedra até o alto da montanha, até ela tornar a cair, é uma analogia perfeita com o esforço empreendido por profissionais da saúde, prefeitos e governadores para combater a pandemia do novo coronavírus: a covid-19. Entretanto, esse não é um trabalho inútil e sem esperança, como no caso do mito grego. É uma batalha que acabará sendo ganha, apesar de tudo.
Como disse Camus, porém, “sempre houve homens para defender os direitos do irracional”. O problema é quando se trata de um governante, como o presidente Jair Bolsonaro, que combate as medidas de isolamento social e mobiliza seus aliados para sabotar os esforços dramáticos que estão sendo realizados para evitar que a pandemia mantenha sua escalada, que pode chegar a mais de 500 mil mortos em julho, segundo estimativas dos principais centros de estudos epidemiológicos do mundo.
Luiz Carlos Azedo
'Poder já está em nossas mãos', diz Zero Três ao negar que queira ditadura
Quando encontra um espaço baldio entre as orelhas, o poder costuma subir à cabeça. Foi o que ocorreu com o deputado Eduardo Bolsonaro. Alvo de duas representações no Conselho de Ética por ter defendido a volta do AI-5, o filho Zero Três do presidente da República disse que os Bolsonaro não têm interesse na restauração da ditadura, porque "o poder já está em nossas mãos".
Numa entrevista que concedeu em 2019, Eduardo Bolsonaro declarou que, se a esquerda brasileira radicalizar, "a gente vai precisar ter uma resposta. E a resposta pode ser via um novo AI-5." O Ato Institucional número 5 foi o mais draconiano instrumento da ditadura militar. Produziu, entre outras atrocidades, o fechamento do Congresso. Um deputado que jura respeitar a Constituição ao tomar posse deveria ter algum respeito pelo menos à inteligência alheia.
Ao se defender no Conselho de Ética, o Zero Três não teve como desdizer o que dissera. A entrevista foi gravada em vídeo. Saiu-se, então, com a tese segundo a qual a ditadura não interessa a quem já dispõe do poder.
"Já sendo eleito presidente da República, o menos interessado em que o país vire uma ditadura é o próprio presidente Jair Bolsonaro", disse o herdeiro do capitão. "Em igual conta, eu também, deputado federal mais votado da história do país. E muitos aí dizem que eu deveria ser cassado. Uma total violação do nosso sistema representativo. Sou o menos interessado também em ter qualquer tipo de ditadura, porque o poder já está em nossas mãos."
Eduardo Bolsonaro ainda não notou. Mas seu pai tornou-se um presidente da cota do centrão. Não é Bolsonaro que passou a ter uma base congressual. O centrão é que voltou a ter o presidente. De resto, ainda que se admitisse, para efeito de raciocínio, que os Bolsonaro estão no poder seria necessário realçar que falta-lhes alguma coisa qualquer que possa ser chamada de governo.
Ficou para a semana que vem a decisão do Conselho de Ética sobre o pedido de cassação do mandato de Eduardo Bolsonaro por quebra de decoro parlamentar. A punição é improvável. Relator do caso, o deputado Igor Timo (Podemos-MG) já recomendou o arquivamento. Nada mais previsível.
Mal comparando, o Zero Três faz lembrar um personagem secundário da peça Júlio César, de Shakespeare. Açulados por Marco Antonio, os plebeus saem à caça dos assassinos de César. Encontram Cinna. Alguém grita: "Matem-no, é um dos conspiradores!" Ouve-se uma voz ao fundo: "Não, é apenas Cinna, o poeta." E ecoa no ar uma sentença: "Então, matem-no pelos maus versos".
O mandato de Eduardo Bolsonaro deveria ser passado na lâmina até por conta dos seus "maus versos". Mas um Congresso que convive com deputada acusada de mandar matar o marido e com senador pilhado com dinheiro na cueca... um Congresso assim é capaz de absorver qualquer absurdo.
Numa entrevista que concedeu em 2019, Eduardo Bolsonaro declarou que, se a esquerda brasileira radicalizar, "a gente vai precisar ter uma resposta. E a resposta pode ser via um novo AI-5." O Ato Institucional número 5 foi o mais draconiano instrumento da ditadura militar. Produziu, entre outras atrocidades, o fechamento do Congresso. Um deputado que jura respeitar a Constituição ao tomar posse deveria ter algum respeito pelo menos à inteligência alheia.
Ao se defender no Conselho de Ética, o Zero Três não teve como desdizer o que dissera. A entrevista foi gravada em vídeo. Saiu-se, então, com a tese segundo a qual a ditadura não interessa a quem já dispõe do poder.
"Já sendo eleito presidente da República, o menos interessado em que o país vire uma ditadura é o próprio presidente Jair Bolsonaro", disse o herdeiro do capitão. "Em igual conta, eu também, deputado federal mais votado da história do país. E muitos aí dizem que eu deveria ser cassado. Uma total violação do nosso sistema representativo. Sou o menos interessado também em ter qualquer tipo de ditadura, porque o poder já está em nossas mãos."
Eduardo Bolsonaro ainda não notou. Mas seu pai tornou-se um presidente da cota do centrão. Não é Bolsonaro que passou a ter uma base congressual. O centrão é que voltou a ter o presidente. De resto, ainda que se admitisse, para efeito de raciocínio, que os Bolsonaro estão no poder seria necessário realçar que falta-lhes alguma coisa qualquer que possa ser chamada de governo.
Ficou para a semana que vem a decisão do Conselho de Ética sobre o pedido de cassação do mandato de Eduardo Bolsonaro por quebra de decoro parlamentar. A punição é improvável. Relator do caso, o deputado Igor Timo (Podemos-MG) já recomendou o arquivamento. Nada mais previsível.
Mal comparando, o Zero Três faz lembrar um personagem secundário da peça Júlio César, de Shakespeare. Açulados por Marco Antonio, os plebeus saem à caça dos assassinos de César. Encontram Cinna. Alguém grita: "Matem-no, é um dos conspiradores!" Ouve-se uma voz ao fundo: "Não, é apenas Cinna, o poeta." E ecoa no ar uma sentença: "Então, matem-no pelos maus versos".
O mandato de Eduardo Bolsonaro deveria ser passado na lâmina até por conta dos seus "maus versos". Mas um Congresso que convive com deputada acusada de mandar matar o marido e com senador pilhado com dinheiro na cueca... um Congresso assim é capaz de absorver qualquer absurdo.
Homens pequenos
Quem atentar para o número de vezes em que a defesa da liberdade está sendo utilizada para a consumação de atos nocivos à sociedade dará razão ao Marquês de Maricá (Rio, 1773-1848): “Quando em um povo só se escutam vivas à liberdade, a anarquia está à porta e a tirania pouco distante”. A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Nunes Marques de liberar os cultos religiosos presenciais no auge da pandemia — certamente para agradar ao presidente Bolsonaro — foi errada em todos os sentidos, mesmo que a liberdade religiosa seja usada para a defesa da tese.
O “novato”, como o qualificou o decano do Supremo, ministro Marco Aurélio Mello, foi contra a deliberação do próprio STF, que já decidira que prefeitos e governadores têm a prerrogativa para decidir sobre as restrições durante a pandemia. No afã de atender aos evangélicos, foi além do pedido da Associação Nacional de Juristas Evangélicos, que estava preocupada com decretos estaduais e municipais que proibiram a realização de cultos evangélicos até mesmo para transmissão pela internet, o que é um absurdo.
Nunes Marques liberou completamente os cultos presenciais, com algumas restrições, como distanciamento entre os fiéis e uso de máscara. O ministro Gilmar Mendes, que é o relator de duas ações no Supremo sobre o tema, rejeitou ontem o pedido do PSD de São Paulo contra a decisão do governo de São Paulo de proibir os cultos presenciais. Para o ministro, “em cenário tão devastador, é patente reconhecer que as medidas de restrição de cultos coletivos, por mais duras que sejam, são não apenas adequadas, mas necessárias ao objetivo maior de realização de proteção da vida e do sistema de saúde”.
O plenário do Supremo julgará o caso amanhã, e deverá manter a proibição, deixando claro que os atos pela internet podem ser realizados. Para dar um toque patético ao caso, o procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao Supremo que tire a relatoria do ministro Gilmar Mendes e a passe ao ministro Nunes Marques, autor da autorização mais realista que o rei. O que uma disputa de vaga do Supremo, que pode ser decidida a favor de um candidato “terrivelmente evangélico”, não faz? Decisões monocráticas estão transformando o STF em 11 Supremos. Cada ministro tem uma ideia na cabeça e exerce seu direito de liminar, fazendo vista grossa para decisões do colegiado.
Outro uso cinicamente ampliado do que seja liberdade individual está na insistência do presidente Bolsonaro na defesa de “tratamento precoce” no combate ao coronavírus da pandemia. Ele ontem voltou a dizer que a “liberdade dos médicos deve ser total” na prescrição de remédios que possam minorar os efeitos da Covid-19. Só que não existe esse remédio, segundo orientação da Organização Mundial da Saúde. Já há decisão formal de que a cloroquina não deve ser usada, pelo alto risco, inclusive de morte. A Anvisa já detectou nove mortes devido ao uso da cloroquina ou hidroxicloroquina.
Também o novo ministro da Defesa, general Braga Netto, excedeu-se no uso da palavra “liberdade” quando disse em discurso: “As Forças são fiéis às suas missões constitucionais, de defender a pátria, garantir os poderes constitucionais e as liberdades democráticas”. Já a Constituição, em seu artigo 142, diz que as Forças Armadas destinam-se “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais, e, por iniciativa de qualquer destes, a lei e a ordem”.
Portanto, nenhuma referência na Constituição ao papel das Forças Armadas na defesa “das liberdades democráticas”. Basta que cumpram suas missões constitucionais que estarão a salvo, sem que o artigo 142 seja distorcido para validar intervenções militares, como querem bolsonaristas de vários calões. Uso mais uma vez o Marquês de Maricá para terminar: “Os grandes empregos desacreditam e ridicularizam os pequenos homens”.
Paixão sem Aleluia
Silone escreveu uma peça teatral tirada de seu livro "Pão e vinho" e que me parece muito superior ao livro. É uma peça em que entram cristianismo e comunismo; mas tudo isso através da vida, e de uma vida simples. Não tenho dúvida de que qualquer dia essa peça será representada no Brasil, e como não sou crítico de teatro (nem de filosofia), deixo honradamente ao leitor o trabalho de julgá-la.
Lembrei-me disso hoje por causa de um padre que há no drama. É um padre que parece não estar funcionando muito bem da cabeça. Cai na pior heresia. Ele acredita, por exemplo, na Sexta-Feira da Paixão. Mas não acredita no Sábado de Aleluia. Vejam que tremendo espírito de porco há nessa tese. Cristo não morreu, nem, portanto, ressuscitou. Cristo está morrendo. Sua agonia se prolonga. Ele agoniza ao longo dos minutos e dos séculos, torturado pela nossa maldade, pelos nossos erros tão negros. Cada ruindade que fazemos é um espinho em sua carne. Ele está sempre morrendo.
Contada assim, por um cronista leviano, essa história parece não ter importância. Mas vivida por um espírito crente é profundamente patética. É intolerável. O ano inteiro será de Paixão, sem nenhuma aleluia. O bom cristão, que tanto se compunge na sexta-feira, mas sempre, através das lágrimas, tem um olho aberto para o desafogo no sábado, teria de viver numa eterna sexta-feira. Ó tu que jogas pif-paf, ó mulher de olhos claros que emudeceste na Paixão o riso claro como trinado de canário, e todavia jogas pif-paf no sábado, larga essas cartas. Cessa a música dos bailes, o cálido murmúrio do amor no portão, e assim também o berro do esporte, a gargalhada do cinema: e que se cale o assobio profano: Cristo está em plena agonia, tu o torturas, com teu prazer.
Não são os pecados de cada homem que mais angustiam o padre louco de Silone. São os pecados sociais. É a opressão e a exploração do homem pelo homem que o amarga. Ele vê em Cristo a lição de igualdade e justiça. O Diabo age através da mais-valia, atrás do lucro... Não é diante do ministério da Fazenda, mas diante de Deus que o capitalista tem de prestar contas dos lucros extraordinários.
É forte, mas talvez muitos prefiram...
Cúpula militar acende alerta sobre bolsonarismo e agora tenta calcular perdas e ganhos
Novembro de 2014. Um grupo de aspirantes a oficial do Exército brasileiro cruza com Jair Bolsonaro nos jardins da Academia Militar das Agulhas Negras. Começam a gritar: “Líder, líder, líder...”. Ele cumprimenta agradecido e improvisa algumas palavras diante das dezenas de jovens com uniforme de gala e quepe.
“Precisamos mudar esse país. Alguns vão morrer pelo caminho, mas em 2018 estou disposto, se Deus permitir, tentar jogar para a Direita esse país! (...) O Brasil é maravilhoso, temos de tudo aqui. Está faltando é político!”. Os militares aplaudem com entusiasmo, como mostra o vídeo publicado no YouTube por um dos filhos do atual presidente.
Quando Bolsonaro falou aos cadetes começava o quarto mandato do Partido dos Trabalhadores. Na Presidência, Dilma Rousseff, que entrou na história como a primeira presidenta. Mas também era uma guerrilheira que foi torturada durante a ditadura e impulsionadora da Comissão da Verdade. A corrupção do PT aflorava. A operação Lava Jato acabava de nascer.
Esse momento —as palavras, o público, o cenário— ajuda a entender a crise que explodiu surpreendentemente nesta semana entre o presidente mais ligado aos militares desde que o Brasil recuperou a democracia, em 1985, e a cúpula das Forças Armadas. Poucas vezes se viu o ultradireitista mais à vontade do que em um quartel cercado de militares, mas na terça-feira destituiu sem consideração o ministro da Defesa. Em um efeito dominó, no dia seguinte os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica renunciaram em uníssono.
Outro ponto fundamental é o alerta lançado por um dos demissionários, o general Edson Leal Pujol, comandante em chefe do Exército, há quatro meses: “Não queremos ser parte da política de governo e do Congresso, assim como que a política entre em nossos quartéis”. A crise aberta, inédita, disparou as procuras no Google do Brasil de “o que é um golpe de Estado”.
Bolsonaro, reformado do Exército como capitão há 33 anos, “avança cada vez mais em seu projeto de transformar as Forças Armadas em instrumento de Governo. Deu os primeiros passos em 2014, quando visitou a academia militar para começar sua pré-campanha”, diz o professor Eduardo Heleno, da Universidade Federal Fluminense (sem parentesco com o ministro-general de mesmo sobrenome). A crise desmedida desta semana é consequência da “politização dos militares, um fenômeno que Bolsonaro impulsiona, e a militarização da política, que não começou com ele”, acrescenta o especialista do Instituto de Estudos Estratégicos.
Deputado medíocre, em 2014 Bolsonaro era um nostálgico da ditadura famoso por suas grosserias misóginas e homofóbicas. Retornava à academia localizada entre o Rio de Janeiro e São Paulo onde se formou. Durante anos esteve proibido de pisar os quartéis por indisciplina. Abandonou o Exército após ser absolvido em um tribunal militar de instigar a soldadesca ao protesto, mas saiu sem honras. O ditador Ernesto Geisel chegou a dizer sobre ele em 1993: “É um caso completamente fora do normal, é até um mau militar”.
Pensar que conseguiria chegar a presidente era uma loucura. Um delírio. Mas soube ler a conjuntura, também nos quartéis, onde fez campanha eleitoral. O Bolsonaro candidato germinou em meio a uma onda gigantesca de desencanto com a política, agitada pelo discurso contra a corrupção e o ressurgimento do ódio ao PT. Capitalizou a irritação com os partidos, com a política tradicional. Como por mágica, conseguiu se vender como candidato antissistema apesar de levar metade da vida de uniforme verde oliva e outra metade na política pedindo melhorias salariais à tropa.
As Forças Armadas que agora afirmam guardar zelosamente o papel que a Constituição outorga a elas pressionaram sem pudor o Supremo Tribunal Federal com uma publicação no Twitter durante a campanha eleitoral de 2018. Era uma frase trabalhada que foi lançada na véspera de os juízes decidirem se permitiriam a candidatura ou não de Lula. “Eu asseguro à Nação que o Exército Brasileiro acredita que compartilha o desejo de todos os cidadãos de repudiar a impunidade e respeitar a Constituição, a paz social e a Democracia, assim como vigiar suas missões institucionais”, tuitou à época o comandante em chefe do Exército, o general Eduardo Villa Boas. O resultado é conhecido. O Supremo não habilitou Lula, que foi preso. E Bolsonaro disparou nas pesquisas.
Vários colegas da academia militar que chegaram ao generalato o acompanharam na corrida à presidência. Todos formados na Guerra Fria, quando o grande inimigo era o comunismo. Já no poder, além do general vice-presidente com quem foi eleito, trouxe vários outros para ministros. Juntos começaram a recrutar militares para o Governo, centenas e centenas que espalharam por todos os órgãos. Hoje presidem 15 empresas estatais (incluindo a Petrobras), e dirigem outras 92. Por volta de 3.000 militares na ativa e outros tantos na reserva ostentam cargos governamentais, segundo as contas de Heleno.
“Precisamos mudar esse país. Alguns vão morrer pelo caminho, mas em 2018 estou disposto, se Deus permitir, tentar jogar para a Direita esse país! (...) O Brasil é maravilhoso, temos de tudo aqui. Está faltando é político!”. Os militares aplaudem com entusiasmo, como mostra o vídeo publicado no YouTube por um dos filhos do atual presidente.
Quando Bolsonaro falou aos cadetes começava o quarto mandato do Partido dos Trabalhadores. Na Presidência, Dilma Rousseff, que entrou na história como a primeira presidenta. Mas também era uma guerrilheira que foi torturada durante a ditadura e impulsionadora da Comissão da Verdade. A corrupção do PT aflorava. A operação Lava Jato acabava de nascer.
Esse momento —as palavras, o público, o cenário— ajuda a entender a crise que explodiu surpreendentemente nesta semana entre o presidente mais ligado aos militares desde que o Brasil recuperou a democracia, em 1985, e a cúpula das Forças Armadas. Poucas vezes se viu o ultradireitista mais à vontade do que em um quartel cercado de militares, mas na terça-feira destituiu sem consideração o ministro da Defesa. Em um efeito dominó, no dia seguinte os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica renunciaram em uníssono.
Outro ponto fundamental é o alerta lançado por um dos demissionários, o general Edson Leal Pujol, comandante em chefe do Exército, há quatro meses: “Não queremos ser parte da política de governo e do Congresso, assim como que a política entre em nossos quartéis”. A crise aberta, inédita, disparou as procuras no Google do Brasil de “o que é um golpe de Estado”.
Bolsonaro, reformado do Exército como capitão há 33 anos, “avança cada vez mais em seu projeto de transformar as Forças Armadas em instrumento de Governo. Deu os primeiros passos em 2014, quando visitou a academia militar para começar sua pré-campanha”, diz o professor Eduardo Heleno, da Universidade Federal Fluminense (sem parentesco com o ministro-general de mesmo sobrenome). A crise desmedida desta semana é consequência da “politização dos militares, um fenômeno que Bolsonaro impulsiona, e a militarização da política, que não começou com ele”, acrescenta o especialista do Instituto de Estudos Estratégicos.
Deputado medíocre, em 2014 Bolsonaro era um nostálgico da ditadura famoso por suas grosserias misóginas e homofóbicas. Retornava à academia localizada entre o Rio de Janeiro e São Paulo onde se formou. Durante anos esteve proibido de pisar os quartéis por indisciplina. Abandonou o Exército após ser absolvido em um tribunal militar de instigar a soldadesca ao protesto, mas saiu sem honras. O ditador Ernesto Geisel chegou a dizer sobre ele em 1993: “É um caso completamente fora do normal, é até um mau militar”.
Pensar que conseguiria chegar a presidente era uma loucura. Um delírio. Mas soube ler a conjuntura, também nos quartéis, onde fez campanha eleitoral. O Bolsonaro candidato germinou em meio a uma onda gigantesca de desencanto com a política, agitada pelo discurso contra a corrupção e o ressurgimento do ódio ao PT. Capitalizou a irritação com os partidos, com a política tradicional. Como por mágica, conseguiu se vender como candidato antissistema apesar de levar metade da vida de uniforme verde oliva e outra metade na política pedindo melhorias salariais à tropa.
As Forças Armadas que agora afirmam guardar zelosamente o papel que a Constituição outorga a elas pressionaram sem pudor o Supremo Tribunal Federal com uma publicação no Twitter durante a campanha eleitoral de 2018. Era uma frase trabalhada que foi lançada na véspera de os juízes decidirem se permitiriam a candidatura ou não de Lula. “Eu asseguro à Nação que o Exército Brasileiro acredita que compartilha o desejo de todos os cidadãos de repudiar a impunidade e respeitar a Constituição, a paz social e a Democracia, assim como vigiar suas missões institucionais”, tuitou à época o comandante em chefe do Exército, o general Eduardo Villa Boas. O resultado é conhecido. O Supremo não habilitou Lula, que foi preso. E Bolsonaro disparou nas pesquisas.
Vários colegas da academia militar que chegaram ao generalato o acompanharam na corrida à presidência. Todos formados na Guerra Fria, quando o grande inimigo era o comunismo. Já no poder, além do general vice-presidente com quem foi eleito, trouxe vários outros para ministros. Juntos começaram a recrutar militares para o Governo, centenas e centenas que espalharam por todos os órgãos. Hoje presidem 15 empresas estatais (incluindo a Petrobras), e dirigem outras 92. Por volta de 3.000 militares na ativa e outros tantos na reserva ostentam cargos governamentais, segundo as contas de Heleno.
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