sexta-feira, 25 de julho de 2025

Pensamento do Dia

 


Os bajuladores que parasitam as altas estruturas do poder

Era de Mário Covas, que fora senador e foi governador de São Paulo, a frase: “Quem fica oito anos no Senado sem nunca ter posto a mão na maçaneta de uma porta para abri-la, nunca mais quer sair daqui”. Referia-se ele aos muitos bajuladores que parasitam as altas estruturas do poder no Brasil.

Covas era sintético e objetivo, conseguia expressar em poucas palavras, em frases simples e diretas, uma realidade política complexa, retrógrada e, de certo modo, antirrepublicana. Nelas conseguia dizer o que o Brasil era justamente por não conseguir ser o que deveria e poderia. Esse Brasil sempre no meio do caminho de uma estrada que nos desencaminhava apesar das valorosas caminhadas do povo brasileiro em direção ao destino de país do futuro, como o definiu Stefan Zweig.


Um dia, alguém deveria fazer um estudo e escrever um livro sobre as muitas frases feitas do nosso otimismo. Indícios de tentativas de uma definição de nossa identidade nacional que nos puxe para cima e promova nosso encontro como povo e nação.

Seria um ponto de partida para desenvolvermos uma consciência crítica de nossas dificuldades para chegar onde poderíamos e não conseguimos. É que no Brasil satanizamos nossa diversidade e nossas diferenças, a grande qualidade potencial de uma sociedade democrática, desafiada à inovação na construção social e política de sua realidade social.

Queremos ser grandes como nação nas fantasias infantis de que nosso céu é mais azul; nossas matas, mais verdes; nosso ouro, mais amarelo e reluzente. O céu azul dessa bravata vem se tornando mais cinza.

Testemunhei pessoalmente o terror de um caboclo do rio das Mortes, que se hospedou em minha casa quando foi enviado pela igreja a São Paulo para tratamento de um câncer no Hospital Antônio Prudente. Foi acolhido e tratado pelo dr. Drauzio Varella. Ficou internado. Depois dos primeiros exames, fui visitá-lo para saber como estava.

Maranhense, morador no sertão do Mato Grosso, estava assustado. São Paulo não tinha céu, disse-me. Olhava pela janela, do quarto, e era tudo cinzento. O céu não era azul. Mau sinal, pois o azul do céu, no imaginário do Brasil profundo, é a cor da casa de Deus e dos anjos. A frequente preferência de caipiras e sertanejos pela roupa azul é uma declaração de fé.

Cor como a vermelha só é aceita na bandeira do Divino Espírito Santo, a pombinha branca no meio decodificando a outra cor. É a bandeira da nova era depois do fim, o da fartura, da justiça e da liberdade. O avesso da realidade do Brasil da gente das maçanetas do poder.

Florestan Fernandes, em seus estudos sociológicos sobre a desigualdade racial no Brasil e o preconceito dela decorrente, definiu-nos como sociedade de castas. O povo distribuído por categorias sociais rígidas, de nascimento, prisão definitiva da condição social.

Não só o negro carrega a cor da escravidão como é prisioneiro dessa cor. Mas o branco é também prisioneiro da casta de sua brancura, prisioneiro de si mesmo porque privado da consciência da dimensão revolucionária de nossa diversidade desafiadora e criativa.

Nossos pardos, isto é, nossos índios, foram confinados no passado da Conquista, que não termina e da qual o país não se liberta. É cercado por agentes da pilhagem, de um modelo econômico e político, baseada no pressuposto de que o índio não é gente e que tudo que é dele é de quem vier depois e tomar dele o que dele é.

Impossível erguer um país sobre esses pilares do desencontro inconciliável, os do saque e da usurpação, que bloqueiam o reconhecimento do outro como igual nos direitos e nas possibilidades, como gente. Coisa de uma nação desbotada, em que as cores de uma identidade possível foram substituídas pela maçaneta incolor da bajulação.

Todos já vivemos algum dia, mesmo não as reconhecendo como o que são, experiências do poder da maçaneta. Tive várias experiências de objeto desse estranho poder invisível de criação de dependências artificiais, mas eficazes.

Designado, pro bono, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso para representá-lo na coordenação da comissão que no Ministério da Justiça prepararia a versão atualizada do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil e Escravo, comecei a receber em casa telefonemas de funcionários federais, que eu não conhecia e se ofereciam para mandar alguém buscar-me no aeroporto e para qualquer outra coisa de que precisasse em Brasília.

Quando o plano ficou pronto no fim do governo e Lula tomou posse, fui chamado uma última vez para entregar-lhe o documento. Não houve cafezinho nem táxi para me levar de volta ao aeroporto. Fui informado de que teria que caminhar um bom trecho até achar um táxi. Eu fora excluído do poder da maçaneta.

Aliados de Netanyahu querem lucrar com limpeza étnica em Gaza

Muhammad Zakariya Ayyoub al-Matouq tem um ano e meio e pesa apenas seis quilos. É uma das centenas de milhares de crianças que sofrem de desnutrição em Gaza. Em pele e osso, o menino foi fotografado no colo da mãe num campo de refugiados. O retrato correu o mundo como novo símbolo da fome no enclave controlado por Israel.

Na quarta-feira, 115 organizações de ajuda humanitária divulgaram um apelo por socorro. O texto descreve um cenário de “caos, fome e morte” e pede o fim dos bloqueios militares que restringem a entrada de águia, comida e medicamentos. “Enquanto o cerco do governo israelense mata de fome a população de Gaza, os trabalhadores humanitários agora se juntam às mesmas filas de alimentos”, afirma.

Questionado sobre o documento, o gabinete de Benjamin Netanyahu voltou a se eximir de responsabilidade. “Hoje não existe fome causada por Israel em Gaza”, declarou o porta-voz David Mencer.


A ofensiva militar começou como represália aos ataques terroristas do Hamas que mataram 1.200 israelenses em 2023. Em um ano e nove meses, as tropas de Netanyahu mataram quase 60.000 palestinos — 50 para cada vítima dos atentados de 7 de outubro — e não cumpriram a promessa de libertar todos os reféns. Agora aliados do premiê fazem planos para varrer a população de Gaza e lucrar com a terra arrasada.

Na terça, representantes do governo israelense foram ao Parlamento discutir um projeto para anexar a região, expulsar os palestinos e erguer novas cidades dedicadas ao turismo e ao consumo de luxo. O encontro “A Riviera em Gaza: da ideia à realidade” reuniu autoridades como o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich. O jornal britânico The Guardian revelou trechos do plano, que trata a ocupação como “direito histórico” e promete turbinar a economia de Israel.

A limpeza étnica nunca pareceu um negócio tão lucrativo. Empolgada, a ministra da Ciência e Tecnologia, Gila Gamliel, divulgou um vídeo feito com inteligência artificial em que os escombros de Gaza dão lugar a arranha-céus espelhados, ao estilo Balneário Camboriú. Na simulação, uma torre à beira-mar exibe o nome de Trump em letras douradas. Faltou explicar se o presidente dos EUA seria só homenageado ou também levaria a sua parte.

Dignidade não se negocia

“Vamos recuperar nosso quintal.”
Pete Hegseth, secretário de Defesa dos EUA, em discurso no US Army War College

A agressão dos EUA ao Brasil, interrompendo uma negociação que apenas se iniciava — por iniciativa nossa, aliás —, vem sendo recebida pelo que ela é: intempestiva e isenta de qualquer sorte de causalidade. Em síntese, essencialmente ilegítima, como toda intervenção estrangeira na ordem política de um país independente. Seu caráter é ostensivamente político (a aparência econômica do tarifaço é apenas um disfarce) e se apresenta como insólita punição a um país soberano.

O Brasil é acusado de, nos rigorosos termos de sua Constituição, estar, por intermédio do poder competente, julgando os crimes de uma quadrilha de delinquentes (civis e militares) que, valendo-se inclusive do aparelho público, intentou um golpe de Estado contra o sistema representativo. Vitorioso, o assalto da extrema-direita frustraria a manifestação eleitoral da soberania popular, feriria de morte a democracia há tanto custo humano posta de pé e embarcaria o país no desvão de uma ditadura neofascista. A partir daí... o inferno seria o limite.
O que o Judiciário brasileiro fez foi simplesmente o que a Justiça americana, fugindo ao seu dever, se esquivou de fazer quando Donald Trump, em 2021, tentou impedir a posse de seu sucessor.


Toda essa vilania, quase uma declaração de guerra, caracterizada pelo virtual bloqueio de nossas exportações, decorre do fato de o cabeça da intentona frustrada, Jair Messias Bolsonaro, ser, por artes e manobras ainda a serem desvendadas, um apadrinhado do atual locatário da Casa Branca. Sobre a agressão, Trump — o candidato a coiteiro — acrescenta chantagem aviltante: se o Brasil deixar em paz seu protegido, o império poderá rever a insídia da majoração unilateral das tarifas, imposta ao arrepio de todos os procedimentos do multilateralismo assassinado, das regras do livre comércio, das normas da OMC e, enfim, do que se conhece como direito internacional.

Em suma, no contrapelo de tudo o que deveriam ser as normas e práticas diplomáticas de duas nações que mantêm relações há mais de duzentos anos.

É evidente que os anunciados prejuízos à economia brasileira, com a imposição unilateral dessas tarifas, abalarão nosso balanço de pagamentos, com a queda inevitável da receita de exportações; atingirão o lucro e a acumulação de capital de ponderáveis setores da economia (atingindo tanto a indústria quanto o agronegócio), apenando de forma evidentemente distinta grandes, médios e pequenos empresários — mas atingindo, acima de todos, os trabalhadores, que pagarão a conta com o desemprego, que já alcança 8,5 milhões de brasileiros, ao lado de 38 milhões de desgarrados do sistema, que tentam sobreviver na informalidade.

Os custos econômicos — como o impacto sobre o real, a pressão inflacionária, a falência de pequenas e médias empresas — são efeitos previsíveis e, em alguns casos e nalguma medida, minimizáveis (a eles o ministro da Fazenda já disse estar atento). E conhecidos são os largos recursos do capital. Insanável é o custo social.

Mas isto ainda não é tudo, nada obstante sua gravidade, pois a grande agressão, a ofensa inominável, é a que mira nossa dignidade, impondo uma “negociação” de índole mafiosa, cujo preço cobra a renúncia da dignidade nacional. E esta não tem meio-termo.

Este aspecto, fulcral, foi reconhecido pelo povo brasileiro — e mesmo pela imprensa mainstream —, retirando o governo das cordas e ensejando à esquerda, hoje sem palavra de ordem, a retomada da bandeira do nacionalismo — tão viva, um pouco lá atrás, na campanha pelo monopólio estatal do petróleo. A defesa da soberania nacional, que o envilecido Estadão reduz a “populismo” lulista, fala às grandes massas, hoje arredias das ruas.

O bom senso, porém, não é unanimidade, pois muitos intelectuais e observadores do cenário internacional se revelam assustados, surpresos, tanto com o grau de violência do ataque quanto com o fato de essa violência atingir relações de mais de dois séculos entre “duas sociedades irmãs”.

A dificuldade de ultrapassar a aparência para conhecer a essência das coisas, porém, não para aí, pois quase toda a gente distingue o Estado norte-americano de seu atual presidente, sagrando aquele para dedicar toda a justa desaprovação a Trump — como no passado recente, quando, ao reduzir os crimes do nazismo a Hitler, se procurava ignorar o papel do povo alemão nos crimes de guerra que não podia desconhecer; como agora, quando a manipulação dos meios de comunicação reduz o horror do genocídio dos palestinos à obsessão sionista de Benjamin Netanyahu.

Ora, Trump é tão americano quanto a torta de maçã, o Mickey, o Pato Donald, o macarthismo a segregação racial e os linchamentos. E é preciso lembrar que o magnata, como seu pastiche brasileiro, não enganou ninguém — muito menos a sociedade estadunidense. Tudo o que faz e desfaz foi anunciado na campanha eleitoral que o consagrou, de forma inquestionável. Com este respaldo, pode governar em nome dos menos de 1% que controlam o país; está a serviço de seus próprios interesses empresariais e de seus sócios, dos interesses do capital financeiro e das big techs. E conta com a cumplicidade do Congresso, a parcialidade da Suprema Corte, a boa vontade de quase toda a imprensa e, até, a passividade do mundo acadêmico. Não é pouco.

Sua aparente loucura está permeada de lógica. Trump choca, mas não inova. Como afetar surpresa olhando para a história de seu país?
Não é científico desprezar o papel do indivíduo na história: ele está sempre presente, condicionado, porém, pelas suas circunstâncias. A presença do rico coletivo de forças econômicas e políticas atuantes no processo social supera em muito o poder do voluntarismo.

Ao longo dos séculos XX e XXI, os EUA, governados por democratas ou republicanos, se envolveram em um número incontável de intervenções externas, diretas e indiretas, em mais de 80 países. Do criminoso e persistente bloqueio a Cuba ao apoio a todas as ditaduras, a política externa dos EUA para a América Latina se construiu sob a lógica da doutrina do big stick (“Fale com suavidade e carregue um porrete — e irá longe”), cunhada por Theodore Roosevelt (1901–1909).

Esta é a natureza do imperialismo, assim exposta por ele mesmo numa saga didática de que seremos devedores. Ou já nos esquecemos da rapina de que foram vítimas os Estados Unidos Mexicanos? Ou que, no século passado, numa guerra já perdida pelo Japão, os EUA, presididos pelo democrata Harry Truman, lançaram duas bombas atômicas sobre as populações civis de Hiroshima e Nagasaki, matando cerca de 300 mil pessoas? O rol, só a partir daí, é extenso e não cabe neste espaço sua resenha: basta lembrar que, na Guerra da Coreia, contam-se entre mortos e desaparecidos três milhões de civis (10% da população da península); e, na invasão do Vietnã, algo entre 1,5 e 2 milhões. E são incontáveis as intervenções dos marines e de agentes da CIA desmontando projetos de democracia na América Latina e no mundo, ou sustentando ditaduras, ou assassinando adversários mundo afora, como o congolês Patrice Lumumba.

Nada diferente tem sido o relacionamento com nosso país, facetado pela subserviência das chamadas elites do mundo econômico e do mundo político, de que é exemplo icônico a frase cunhada pelo general Juraci Magalhães, na condição de embaixador do Brasil em Washington: “O que é bom para os EUA é bom para o Brasil.” Vira-latismo que apenas consagrava a política de alinhamento automático, acentuada com a ditadura militar de 1º de abril, mas que vinha marcando a República desde seu início, com variações apenas de nuances.

Desde, principalmente, a Segunda Guerra Mundial, os EUA orientam doutrinariamente as Forças Armadas residentes no Brasil e decidem sobre seu armamento. Não invadiram o território nacional por desnecessário, mas participaram de todos os golpes de Estado desde 1945 (inclusive da conspiração que levou ao suicídio de Getúlio Vargas, em 1954) e, por último, na implantação da ditadura militar (1964–1985), inclusive emprestando especialistas em tortura, como o capitão Charles Rodney Chandler, adido militar no consulado norte-americano em São Paulo. Em 1968, foi morto pela guerrilha de esquerda.

Nada obstante a preeminência dos interesses dos EUA, as relações dos dois países já conheceram rusgas diplomáticas, principalmente naquelas poucas oportunidades em que ousamos a defesa de nossa soberania — desde a exploração nativa do petróleo (contra as pressões da Standard Oil) aos projetos mais recentes de autonomia da produção de energia nuclear e ao programa espacial. A lista é extensa.

O Departamento de Estado e o Pentágono jamais aceitaram de bom grado a liderança que o Brasil exerce na América do Sul. Para o imperialismo, são intoleráveis nossos ensaios de política externa independente, esboçados sobretudo a partir do governo Jânio Quadros, para se acentuarem no mandato de João Goulart. Frustrados no impedimento do vice-presidente, determinaram sua deposição — e o que a ela se seguiu. Findos os tempos de festa ensejados pelo neoliberalismo (Collor–FHC), foram outra vez surpreendidos com a política “ativa e altiva” dos governos de Lula e Dilma, que ressurge agora, após os tristes anos de Temer–Bolsonaro.

No episódio atual, a carta-provocação ataca o Brasil e suas instituições para defender os interesses das big techs (incomodadas com os limites que o STF pretende impor a seus desmandos no Brasil) e das grandes operadoras de crédito, que veem seus lucros diminuírem com a rápida disseminação do pix. Isto tudo num contexto de reordenamento do poder mundial — marcado pela ascensão da China, com quem o Brasil mais e mais estreita relações —, em que o império declinante não se dispõe a fazer concessões. Ora, para Biden ou para Obama é intolerável nosso papel no BRICS, como para Kennedy e Lyndon Johson era intolerável nosso discurso em defesa da autodeterminação dos povos.

Os EUA são um império declinante, é certo, mas ainda muito poderoso, e com forças para infligir estragos incalculáveis. Um tigre ferido é perigoso.

Os desdobramentos do quadro ainda não podem ser desenhados, mas já é possível ver que as nuvens de hoje não prometem bonança no curto ou médio prazos. Estamos diante da alimentação de uma crise que a tudo pode levar, e dela não seremos apenas atores menores, pois dificilmente deixaremos de compartilhar suas consequências — fragilizados que estamos pelo abandono, por décadas, da ideia de soberania.

No caso imediato — o contencioso político com viés tarifário — o primeiro caminho é a negociação que, nada obstante nossas limitações, haverá de ser altiva, porque não se concilia com a dignidade. O governo está correto ao requerer sua retomada, sem, todavia, alienar a alternativa da reciprocidade seletiva. Mas aí, à pusilanimidade do Congresso e de sua maioria sem coluna vertebral, soma-se a sabujice do grande empresariado ao pleitear, de alto e bom som, desde logo, antes mesmo que as partes se sentem à mesa, que o Brasil descarte a única arma de que dispõe: a alternativa da reciprocidade na guerrilha tarifária.

Soberania não é uma abstração cívico-poética. Reclama o direito concreto de escolher nossas alianças, proteger nossa economia, empregar nosso povo, cultivar nossas terras e exportar nossos produtos. É o direito de decidir, sem medo de retaliação. Nem é muito, nem é pouco.

O sistema governante — aquele que controla o poder, independentemente de quem esteja hospedado no Palácio da Alvorada ou ocupando as cadeiras do Congresso — dá sinais de que já rastreou o terreno e pretende jogar ao mar a carga hoje inconveniente, construindo uma nova maioria política, afastando-se do neofascismo (o bolsonarismo indigesto e suas adjacências), fator de turbulência e, portanto, de incerteza para os negócios. Essa manobra pode implicar composição com o centro, na perspectiva de estabilidade política, à qual não será indiferente o governo. Lula pode mesmo ser seu fiador, pode mesmo cumprir o papel de elo aglutinador — aquele que mais fala à sua alma.

A sinuca de bico será o desafio que as circunstâncias imporão às esquerdas. Se não podem se opor a um arranjo que desloca a extrema-direita, hoje em ascensão no mundo e no Brasil, terão de, mais uma vez, adiar a expectativa de avanço político.
Roberto Amaral

Instituições sanguessugas e o Brasil

Por mais que os autodenominados sapiens queiram se diferenciar dos demais animais, as semelhanças entre eles são muitas. Por exemplo, as sanguessugas, cujo nome inicialmente gera certo pavor, têm, em comum com muitas das nossas instituições, alguma capacidade de fazer o bem.

Os animais sanguessugas têm sido utilizadas na medicina há 3.500 anos! Na monetizada medicina ocidental caiu em desuso no século XX, embora não plenamente: como eles injetam nas vítimas das quais se alimentam uma substância anticoagulante e, ao chupar seu sangue, forçam a circulação em pontos exangues, ajudam a manter vivas as células e a restaurar o fluxo sanguíneo após, por exemplo, cirurgias reconstrutivas.


A palavra sanguessuga descreve também o fato de tal animal sugar o sangue, a seiva da vida, dos animais dos quais se alimentam. Também este sentido se aplica a instituições brasileiras: aos clássicos três poderes e às demais forças que partilham o comando da Nação! Economista ganhador do Nobel identificou esse tipo de instituição – que chamou instituições extratoras – como causa da pobreza da maior parte da população mundial. Nos casos do Legislativo, Judiciário e Executivo brasileiros, além dos demais poderes, essa natureza perversa está presente há séculos e impede que se diga que o Legislativo represente os eleitores, o Judiciário garanta justiça, ou o executivo e as demais se pautem pelo bem comum.

No Legislativo, as evidências da dissociação entre eleitos e eleitores são muitas. Citemos apenas três: primeiro, a renda de cada um dos seus membros, inclusive vereadores, é dezenas de vezes superior à da grande maioria dos ditos “representados”; segundo o patrimônio dos parlamentares é vezes maior que o dos eleitores; terceiro, os membros dos vários níveis do parlamento são réus em processos criminais em proporção bem maior que o restante da população.

O “sanguissuguismo” das nossas instituições ficou claro com a crescente apropriação, pelos seus membros, do orçamento nacional, e pelo comportamento desavergonhado de seus membros ao se concederem vantagens exorbitantes: penduricalhos salariais e emendas cash-back, entre outras!

Fará bem o presidente Lula se vetar o aumento do número de deputados federais e estaduais, como clama a população; fará ainda melhor se colocar o guizo no pescoço do gato e mostrar que temos não um problema de parlamentares em excesso, mas sim dois problemas: parlamentares com remuneração pornográfica, e parlamentares que, pelas razões citadas, não representam o conjunto dos brasileiros.

Faria ainda melhor se, apesar dos riscos políticos decorrentes, defendesse que devemos restringir a remuneração dos parlamentares à média da população, e ampliar muitíssimo seu número, de forma a torná-los parecidos com e acessíveis aos eleitores.

Seria um divisor de águas na história deste país, com potencial de renovar as instituições e retirar delas o caráter extrativo que impede rápidas melhorias na qualidade de vida da população!