sábado, 29 de agosto de 2020

Na pandemia, Jair age como um tecelão de oxímoros

No dia em que o Brasil contabilizava 115 mil mortes por Covid-19 —o que representa uma taxa de óbitos por 100 mil habitantes 47 vezes maior que a do vizinho Uruguai—, Jair Bolsonaro promoveu um evento em que arrebanhou ministros e alguns médicos para juntos enaltecerem a cloroquina. O nome escolhido para a cerimônia foi "Brasil vencendo a Covid-19".

É genial. Com essa, Bolsonaro conquistou um lugar no panteão dos oximoristas, as pessoas que criam nomes ou expressões que aglutinam conceitos contraditórios ou absurdos. Meu exemplo favorito é o Sacro Império Romano Germânico (a designação dada ao mosaico de Estados alemães que conviveram entre 963 e 1806), que, como observou Voltaire, não era sacro, nem era um império e também não era romano. Ao menos era germânico. Uma lista mais tradicional de oxímoros inclui: silêncio eloquente, instante eterno, crescimento negativo e inteligência militar.


Contradições à parte, não surpreende que Bolsonaro aja como Bolsonaro. O que me preocupa mais é que existam médicos que aceitam participar de uma pantomima eleitoreira que nega o método científico pelo qual a medicina deveria se pautar.

De fevereiro até abril, fazia sentido depositar esperanças na cloroquina. Havia uma hipótese teórica a justificar sua ação contra a Covid-19 e alguns trabalhos indicando efetividade. Mas a ciência fez o que tinha de fazer e procedeu a testes mais rigorosos. Nunca uma droga foi alvo de tanta pesquisa.

E a conclusão a que se chegou é a de que nem a cloroquina nem a hidroxicloroquina são fármacos muito úteis contra a doença (ainda não dá para descartar que produzam efeitos muito modestos) e ainda trazem o risco de danos colaterais, que se tornam uma certeza se distribuídos a grandes populações.

O médico que não aceita os resultados de ensaios clínicos controlados não entendeu como a medicina se relaciona com o método científico.

Imagem do Dia

 

 A pequena Julia*, 7 anos, se desdobra para vender os últimos cinco panos de prato que carrega em seus braços numa rua movimentada da capital paulista:— Compra os últimos panos de prato, tia, por favor, para eu poder voltar para casa. A menina vive com a família em um prédio abandonado na esquina das ruas Oscar Freire e Peixoto Gomide, na badalada região dos Jardins, bairro nobre de São Paulo

Os pobres de Bolsonaro

O súbito interesse do presidente Jair Bolsonaro pelos pobres do País, jamais demonstrado em seu passado como parlamentar e ausente na campanha que o elegeu em 2018, deveria ser motivo de aplausos. Afinal, quando um presidente da República usa a força de seu cargo para colocar a pobreza entre suas principais preocupações, tende a transformar a superação da desigualdade em prioridade na agenda política.

No entanto, é notável o contraste entre o empenho de Bolsonaro em criar um generoso programa de transferência de renda e seu desinteresse patente em promover reformas que criem condições para o desenvolvimento e a geração de empregos. Ao agir assim, o presidente não demonstra real interesse na superação da pobreza, que só será possível com mudanças estruturais que deem ao Estado capacidade efetiva de prover, de maneira sustentável, o mínimo necessário para que milhões de brasileiros deixem efetivamente de ser pobres.


Se estivesse realmente interessado em transformar a vida dos pobres, o presidente Bolsonaro estaria, desde seu primeiro dia no governo, engajado na promoção dessas reformas estruturais. Contudo, malgrado as retumbantes promessas eleitorais de uma revolução no Estado, Bolsonaro nada fez ou faz, de fato, para liderar os debates sobre essas reformas. Ao contrário, sempre que instado a se posicionar, ou cria dificuldades como na reforma da Previdência, em que agiu como sindicalista em favor de algumas categorias de servidores ou simplesmente engaveta projetos, caso da urgente reforma administrativa.

A superação da pobreza não se dará apenas pela suposta vontade do presidente. Num passado não muito distante, os governos petistas alardearam ter acabado com a pobreza a partir de programas de transferência de renda, em especial o Bolsa Família. De fato, durante algum tempo, o complemento de renda para famílias muito pobres foi essencial para lhes dar um pouco de dignidade em meio à miséria, mas o Estado "inchado, ineficiente e perdulário" não conseguiu lhes proporcionar nada além disso. Como resultado, esses vulneráveis voltaram à miséria assim que começou o recente processo de degradação econômica do País, fruto das lambanças lulopetistas.

Ao que consta, Bolsonaro não foi eleito para repetir os erros daquela desastrosa gestão, e no entanto a cada dia que passa se parece mais com os demagogos que as urnas puniram na eleição passada. O roteiro é muito parecido: recusa-se a tocar nos privilégios dos servidores públicos; não se engaja em privatizações nem em redução da máquina do Estado; quer gastar um dinheiro que não existe, flertando com a irresponsabilidade fiscal; e agora inventa um programa de transferência de renda com o óbvio objetivo de sustentar sua popularidade em patamares suficientes para manter suas chances de reeleição.

O caminho para vencer a pobreza crônica no Brasil não tem atalhos. É longo e demanda do presidente da República uma imensa capacidade de articulação política. Junto com os programas de transferência de renda, devem vir medidas concretas para que seus beneficiários deixem de depender do auxílio no prazo mais curto possível. Para isso, é preciso que haja uma educação pública de qualidade, capaz de dar horizontes reais de crescimento para os filhos dessas famílias pobres. É preciso também lhes proporcionar uma boa saúde pública e, de uma vez por todas, cobertura universal de saneamento básico. Para sustentar tudo isso, é preciso que o Estado deixe de dragar recursos públicos escassos para satisfazer os privilegiados de sempre, a título de “direitos”, e facilite a vida de quem empreende e gera empregos.

Com um presidente que transformou o Ministério da Educação em piada de mau gosto, que trocou ministros da Saúde em plena pandemia por capricho pessoal, que não quer nem ouvir falar em reforma administrativa, que sabota os esforços do Ministério da Economia para respeitar o teto de gastos e cuja única preocupação é com sua reeleição, tudo indica infelizmente que os pobres continuarão pobres, e com eles o Brasil.

Resistência do absurdo

Ando furioso por tudo ser provisório na vida exceto a tirania...
José Gomes Ferreira, "Dias Comuns - A idade do malogro"

 


Palavrões e desrazão

A contragosto, voltemos a isso. Voltemos porque o falastrão voltou a atacar. Nesta semana, como que regressando à ativa, o presidente da República restabeleceu sua velha forma prosódica e deu de insultar gente honesta com termos chulos. No domingo, a um repórter do jornal O Globo que lhe perguntou sobre os R$ 89 mil depositados na conta da primeira-dama, respondeu com um bodoque vocabular: “Vontade de encher sua boca de porrada”.

Tente imaginar, por alguns segundos, que tipo de ser humano se expressa nesse léxico. É chocante. Em mau português, essas palavras materializam o soco na cara do interlocutor. O simples enunciado já fere, já tira sangue da honra do outro. O ato violento é a própria fala, que nem precisa se traduzir em gesto físico para machucar. Sete palavras que ofendem e, acima disso, enxovalham um cargo público de alto a baixo. Mais uma vez. Voltemos a isso, então.



Na segunda-feira, mais barbaridades. Ao defender publicamente o emprego de substâncias exóticas para tratar a covid-19, a mesma autoridade voltou a se gabar do alegado “histórico de atleta” e se vangloriou de não ter desenvolvido sintomas graves da doença.

Aproveitou e disse que, quando o paciente é um jornalista, o quadro é pior. Mas ele não disse isso assim, com essa reles e preconceituosa falta de educação. Ele foi além. Abusou da vulgaridade. Ao se referir a um jornalista genérico – um jornalista qualquer que venha a ser acometido pelo vírus –, o autoproclamado atleta imune preferiu dizê-lo de modo mais torpe: “Quando pega num bundão de vocês a chance de sobreviver é bem menor”.

Diante de tal postulado podemos dizer que, segundo o presidencial juízo, aqui escreve um “bundão”. Todos os que exercem o ofício de jornalista acabam de ser tachados com esse qualificativo por ninguém menos que o governante do nosso país. Como reagir? Devolver o xingamento resolve? Falar na mesma frequência ajuda? Anula o dano? Difícil saber.

O que sabemos com segurança é que o palavrão foi alçado à condição de norma linguística da alta administração pública federal. A nova norma inculta alcançou o apogeu na reunião ministerial de 22 de abril – aquela que teve sua gravação em vídeo divulgada por força de decisão judicial –, quando presidente interpelou os seus subordinados aos berros, desfiando, um a um, todos os vocábulos de baixo calão disponíveis no dicionário.

O Brasil inteiro viu o ritual de baixezas exclamatórias na televisão e na internet. Uns ficaram aturdidos porque o chefe de governo declarou que queria armar a população (como vem armando, mas só a população que gosta de se armar). Outros se espantaram com o despudor de um ministro da Educação (parece que era isso) afirmando que os ministros do Supremo Tribunal Federal deveriam ser encarcerados. Mas o mais aterrador de tudo, o mais aviltante, não eram as atrocidades que aqueles seres pronunciavam, mas as palavras que eles usavam para pronunciá-las. O mais apocalíptico de tudo era a linguagem.

Que espírito de justiça, que sentimento de solidariedade, que elevação moral, que virtude humanitária, que cultura e que inteligência podem existir numa cúpula de Estado que se comunica nessa base? O que esperar de um suposto estadista que fala na língua das quadrilhas de traficantes com a desenvoltura dos capangas encapuzados em esquadrões da morte? O que ver de positivo num Ministério que se sujeita a ser tratado com o que pode haver de mais vil e de mais ultrajante no vernáculo?

O resultado é que estamos aí com essa persona investida de poder dedicada a nos xingar, e xingar de novo, todos os dias, com suas palavras e com seus silêncios. Fomos condenados a nos acostumarmos com isso aí, pois muita gente apoia isso aí. Entre outros setores, boa (má) parte da elite financeira do Brasil apoia. É inacreditável. Uns até fingem que é normal.

Tempos atrás, o endinheirado conformismo pátrio se resignava na base do “rouba, mas faz”. Agora, as mesmas forças (fracas) se rendem a coisa pior: “Xinga, mas diz que vai fazer as ‘reformas”. Essa turma deu de apoiar qualquer coisa em troca de umas promessas de “reformas” – promessas capengas, entremeadas de infâmias, não importa. Os dependentes químicos do substantivo “reformas” apoiam xingamentos, intimidações, apoiam latidos. Não cessam de incensar aquele que diz que vai fazer “as reformas” e não faz, aquele que cultiva e profere absurdos inomináveis.

Sim, absurdos inomináveis – absurdos às toneladas. Pense bem o improvável leitor: que tipo de batatada vai na cabeça de quem se jacta aos brados de não ter tido sintomas graves de uma doença que já matou 120 mil brasileiros? Na desordem mental da pessoa que diz tais coisas, a doença só derruba os mais fracos, os que não têm “histórico de atleta”, os pesos mortos. Logo, ela esnoba a enfermidade, que chama de “gripezinha” ou de “chuva”. A tal pessoa não se compadece da dor alheia, não conhece a empatia e, o que mais constrange, não alcança a razão. O palavrão estulto nos governa.

O bundão (‘Asinus magnum’)

Hoje vamos estudar o espécime Asinus magnum, conhecido popularmente como “bundão”, que vem tendo crescimento expressivo nos últimos anos no Brasil. 

Os bundões andam em bandos e se alimentam de mentiras, fake news e dinheiro público. São mamíferos roedores, e seu habitat natural é o Brasil, de norte a sul. Não são de natureza pacífica e, ao contrário de outras espécies, não precisam ser ameaçados para atacar e arriscam a vida para proteger seus filhotes. Seu alimento favorito é grana.

Quando em posição de poder, o bundão se mostra prepotente e irritadiço, se sentindo superior aos outros, que ele chama de bundões. Mas, quando acovardado por alguma ameaça real ou paranoica, o bundão amolece e se mistura com a variedade do bunda-mole (Asinus mollis), no caso, um bundão-mole. Outra variedade é a dos bundões-bundinhas, que se caracterizam pela roupa de grife, mocassins e o indispensável cashmere sobre os ombros. Muito encontrado em São Paulo. 


O bundão raiz se vangloria de sua macheza, como se a violência, a estupidez e a boçalidade fossem atributos masculinos, ofende e despreza as mulheres, achando que as usa e abusa, mas, sendo usado por elas, que saem com a bolsa recheada de seus acasalamentos com bundões, às vezes até com empregos públicos.

Contra todas as evidências, o bundão se acha engraçado. Todos conhecem alguém assim. Não há bundão que não se considere engraçado, mas todos os comediantes e humoristas realmente engraçados vivem de debochar dos bundões.

Sim, todo mundo mente, mas o bundão mente mais — e mente mal. Seu estilo é esfarrapado, não convence ninguém, mas ele não liga. Sempre sabe tudo, ouviu falar, tem certeza, mas nunca prova nada, só espera que esqueçam.

O Asinus magnum confunde autoridade com autoritarismo, o público com o privado, o familiar com o estadual, municipal e federal. E acha que somos todos, além de bundões, burros.

O bundão é do seu jeitão, espontâneo, autêntico, indomável, não se adapta à educação e à civilização, mas sobrevive bem em cativeiro.

Covardia

Quando o ex-capitão diz a um jornalista que está com vontade de lhe dar umas porradas na boca, ele está sendo, sem sombra de dúvida, um grande covarde pois ele sabe que o profissional da Imprensa não vai poder reagir contra o presidente da República.

Da mesma forma quando ele chama o profissional de otário.

Otário não é o repórter que está ali a serviço. Otários são os eleitores que puseram no Planalto um indivíduo inteiramente despreparado para o cargo. Otários são os abobados que se reúnem em torno do cercadinho no Alvorado para ver e ouvir Bolsonaro dizer as mil e uma tolices que diz.


Otários somos nós que acreditamos que Bolsonaro deixara de ser grosseiro e passara a ser um presidente civilizado. Pois sim! Isso durou menos de uma semana e logo ele voltou a agir como agia desde que era soldado, a ponto de ter sido expulso do Exército.

Esse homem conseguiu o impensável. Envergonhou o país diante da comunidade das nações. Somos tidos como um país sem categoria, sem classe, grosso e ignorante. Nossa fama de país amável, alegre, bem humorado, simpático, foi para o espaço!

Bolsonaro insiste em dizer e fazer asneiras. Por exemplo, deu-se ao luxo de dizer que o coronavírus com ele não teria chance pois seu currículo de atleta assustaria o vírus. Para ser desmentido quase que em seguida por um verdadeiro atleta, Usain Bolt, que não escapou da Covid 19.

Andou dizendo, em privado, aos seguidores, que usar máscara era coisa de viado. Isso não teve influência nos brasileiros que respeitam o uso da máscara por temer essa doença maligna. Mas influenciou seus Zeros, pobres filhos cuja educação deixou muito a desejar. Flávio, o homem que dos chocolates fez uma mina de dinheiro, viajou de avião sem máscara, apesar do pedido das aeromoças. Melhor pegar o coronavírus do que ser tido como viado, não é não? Assim pensam os Zeros que como todo zero à esquerda, são apenas um zero à esquerda!
Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa

Construindo o 'Novo Brasil'


 

Guedes e Bolsonaro são reacionários desiguais e combinados

Paulo Guedes salta na frigideira porque seu modo de ser reacionário não combina com o de seu chefe, Jair Bolsonaro. O tal "Big Bang" do ministro da Economia —o dito "plano econômico-social"— promove uma redistribuição da pobreza entre os pobres. Seu chefe achou a coisa explícita demais, com potencial eleitoral danoso.

No universo recriado por Guedes, o Brasil continuará a ser o país em que, segundo o Relatório da Desigualdade Global, da Escola de Economia de Paris, os 10% mais ricos ficam com 55% da renda. O problema não está aí. Ocorre que o 1% dos ricos de verdade —coisa de 1,4 milhão de adultos— ficam com mais da metade: 28,3%.

Não fiz a conta. Talvez seja o caso de saber quanto detêm do tal bolo aqueles que formam o 0,1%, a "crème de la crème" da concentração de renda. Os liberais de fancaria que andam por aí a vomitar obscenidades logo vociferam: "Ninguém é pobre porque o outro é rico. É preciso esforço!".

Fruto da indolência, quem sabe?, os 50% mais pobres têm de se contentar com 13,9% do conjunto de todos os rendimentos. A seu modo, Guedes até quer fazer alguma correção. Pretende acabar com a dedução no Imposto de Renda dos gastos com saúde e educação. Topa mexer naqueles 10% que concentram 55% da renda, mas nunca no 1% que abocanha 28,3%. Quanto ao 0,1%, bem...


O ministro é um reacionário antipopulista. E é aí que seu modo de fazer o Brasil andar para trás se choca com o do chefe. O "Mito" descobriu o potencial eleitoral do assistencialismo agressivo e precisa do voto de milhões. Ao comandante da Economia, basta o apoio da Faria Lima, com a concordância, é certo!, do presidente.

A questão, por enquanto sem resposta, é como "tirar dos pobres para dar aos paupérrimos" sem que os primeiros reajam nas urnas. Será Bolsonaro, no confronto com Guedes, um pouco mais, digamos, "progressista"? Respondo com um fato. Na terça (25), ao falar na abertura do congresso nacional da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), o presidente lembrou que começou a trabalhar aos dez anos, num boteco, por decisão de seu pai, e fez a defesa aberta do trabalho infantil.

Com gramática sempre peculiar, mandou brasa: "Meu primeiro emprego, sem carteira assinada obviamente, eu tinha dez anos de idade. Foi no bar do seu Ricardo, em Sete Barras, no Vale do Ribeira. (...) E bons tempos, né?, onde (sic) menor podia trabalhar. Hoje ele pode fazer tudo, menos trabalhar, inclusive cheirar um paralelepípedo de crack, sem problema nenhum". Aplausos.

Antes ainda da posse, em dezembro de 2018, Guedes afirmou que os 30 anos de ineficiência da social-democracia seriam interrompidos por ao menos quatro anos de liberalismo associado ao conservadorismo. É mesmo?

Numa democracia, conservadores aceitam o progresso social e buscam conservar o molde institucional. Já os reacionários pretendem fazer o país marchar para trás, conservando não instituições, mas iniquidades —e, se possível, ressuscitando fantasmas. A depender do caso, podem ser disruptivos, golpistas.

No idílio passadista bolsonariano, filho de pobre trabalha e o do rico estuda, reproduzindo, assim, um e outro, o ciclo de desigualdade. Nessa perspectiva, dispensa-se um Estado que possa já nem se diga corrigir as injustiças, mas, ao menos, capacitar um pouco mais a criança pobre para uma disputa de... desiguais.

Ainda que aos trancos e barrancos e, às vezes, recuos, o mundo caminha tendo como norte a justiça social. Logo, toda ação reacionária será sempre contra os desvalidos, os que podem menos, os injustiçados. Existe, sim, o bom conservador. Mas inexiste o reacionário virtuoso.

Bolsonaro cobra de Guedes que coloque uns tostões a mais no bolso dos pobres para que as urnas sustentem seu propósito de resgatar aquele passado idílico, em que filho de pobre trabalha feliz para honrar a sujeição histórica de seu pai. Vivemos o momento glorioso de uma tensão entre reacionarismos distintos e combinados.

Grande queima

Não podemos adicionar penas ao livro. O livro precisa ser libertário. É preciso que o livro chegue ao povo
Nélida Piñon 

Universo em desencanto

Um amigo da família, publicitário da Kibon, era responsável por batizar os novos produtos da marca. Estava com especial dificuldade para o nome de um sorvete de frutas. Inquieto, taciturno, trancado em seu escritório, não queria ouvir um pio das crianças brincando. E nós, amedrontadas, obedecíamos. Até que um dia ele sai eufórico pela casa gritando: “Jajá de coco”, enquanto socava o ar como Pelé.

Essa lembrança me veio à cabeça logo que soube do nome do novo plano do governo, a ser lançado em um Big Bang Day. Imagino um grupo de técnicos reunidos em uma mesa na Esplanada a socar o ar, eufóricos com o grande achado.



O suposto plano é apenas um apanhado de iniciativas dispersas. Mistura assuntos emergenciais com questões estruturais. Não traz respostas de curto prazo para a saída da pandemia, nem projeto de longo prazo de crescimento. Nada de abertura comercial, redução drástica nos gastos tributários, revisão de regime especial do IR, abertura comercial, privatização ampla e reforma administrativa. E um choque educacional, nem pensar. Ainda tem a CPMF, é claro.

Mantém a aparência de um discurso de responsabilidade fiscal, ao mesmo tempo que acena com obras públicas e ampliação de programas como 0 Minha Casa, Minha Vida. Tudo com foco no Nordeste, mesmo sendo o déficit habitacional maior no Sudeste. Populismo é tudo igual. A exploração da tragédia social segue como a principal política econômica do País.

O teto se mantém como ficção. O pacote não estabelece claramente os mecanismos e gatilhos que o preservariam. Mesmo porque o presidente não está preocupado com o assunto. O teto vai morrendo por falência múltipla dos órgãos, em decorrência da doença crônica do clientelismo brasileiro.

Os saudosos do nacional desenvolvimentismo têm a romântica ideia de que gasto não importa, desde que se faça direito. Gastar bem no Brasil, isso sim, seria um novo Big Bang. O vice Mourão acaba de anunciar a compra de um satélite desnecessário. A desculpa é sempre a tal da soberania nacional, que também justifica a permanência de tantas estatais nas mãos do governo. A Valec deve atender a algum critério de soberania que me escapa.

Na reciclagem de ideias, até a capitalização da Eletrobrás, que perambula desde 2017, entrou na lista. Deverá ser modificada no Senado. E aposto que sai piorada. O Tesouro vai acabar pagando por ela em vez de receber. Nem sua privatização, nem a venda antecipada dos contratos da PPSA, vão transformar o modus operandi do Estado brasileiro.

Muda o governo e só muda o cliente. Empresas que interessam aos militares se mantêm intocadas e ainda recebem reforços financeiros. O expediente de capitalização de estatais é outra peneira oficial no teto. No apagar de 2019, foram R$ 10 bilhões em uma tacada. Agora, governo pede mais R$ 500 milhões ao Congresso. Mais uma vez, entre as contempladas, está a Emgepron. Corvetas e fragatas é a pauta prioritária.

O esforço de marketing não resolve. O plano está mais para a teoria do estado estacionário. De todo jeito, o dia do Big Bang foi adiado para a semana que vem ou por 13,7 bilhões de anos. Tendo o ministro da Economia como átomo primordial, talvez melhor não arriscar mesmo. Vai quê.

Bolsonaro parece que não gostou das propostas. Claro, só pensa na reeleição. O que importa é a continuidade do auxílio, o resto é perfumaria. Quer um programa assistencialista de fácil entendimento para oferecer. A diferença de R$ 30 no valor do auxílio, combinado com o fim do abono salarial, inviabilizou o anúncio do plano. Não foi o ambiente pesado no Senado, por conta de mais uma declaração desastrosa de Guedes, nem mesmo o crime de ameaça física do presidente da República a um repórter que fez a pergunta que não vai calar: “Por que sua esposa recebeu R$ 89 mil de Queiroz?”.

Quanto mais confusão na economia, melhor. Muda o foco. STF, trapalhadas dos filhos e a ameaça Queiroz o calaram, mas ele não mudou. Segue firme na agenda: militares, assistencialismo e obscurantismo. Contando com a fidelidade de todos seus ministros, inclusive Guedes, que não está sendo fritado. Apoia o projeto ideológico clientelista e só sai quando não for mais útil para o chefe. Vai taxando livros, coisa de elite, enquanto isenta a linha branca e mantém a Zona Franca.

Bolsonaro reclama da imprensa. Mas não foi cobrado pela passividade da Damares diante dos ataques de fanáticos religiosos a uma criança; pelo envio do quadro de Djanira, “Orixás”, para os porões do Palácio do Planalto nem mesmo pelo uso do avião da FAB por garimpeiros ilegais. A invasão da Cinemateca passou batida. Lá, além dos filmes nacionais, estão as imagens que carregam a memória do nosso País. Correm o risco de se perderem.

A vontade de apagar a História, o desprezo pela cultura, pela liberdade de expressão e pelos direitos humanos andam juntos em governos autoritários como este. Um cidadão que pensa, imagina, cria e desenvolve senso crítico, incomoda muito. Deve dar mesmo vontade de encher a boca de cada um de porrada.

Constantino

Lá pelos séculos IV e V aconteceram mudanças na história cultural e intelectual do Ocidente que podem ser descritas, simplificando um pouco, como substituições no futebol: saem paganismo e racionalismo gregos, entram empiricismo romano e cristianismo. O apóstolo Paulo já fizera pouco nas suas pregações da “sapiência dos sábios” gregos e da “lógica vazia dos seus filósofos”, em contraste com a sabedoria do Cristo, iniciando a conquista do pensamento ocidental pelo cristianismo, que avançaria no começo do século IV com o imperador Constantino abrindo caminho para a cristã ser a única religião do império.



Para garantir o apoio dos teólogos e praticantes da nova e triunfante religião, Constantino iniciou outra tradição da Igreja, além do anti-intelectualismo de Paulo e dos conflitos reincidentes entre doutrina cristã e ciência: estabeleceu que nem o clero nem as autoridades mais altas da Igreja precisavam pagar impostos. Assim, além do prestígio e do poder na Terra e da certeza de um lugar no Céu pela eternidade, os bispos tinham acesso a prazeres mundanos e riquezas não tributáveis. Bispos disputavam entre si os favores de patronos ricos e do próprio imperador do momento.

Pelo que se sabe dele, Constantino foi um bom imperador, bom na guerra, bom e generoso na vitória e competente como administrador do seu império, que manteve unido por mais tempo do que qualquer outro “césar” depois de Augusto. Não se sabe se foi um cristão convicto ou se usou a Igreja para fins políticos e práticos, mas o fato é que a grande migração da história, do racionalismo grego para o irracionalismo romano, para o que um estudioso da época chamou de “mistério, mágica e autoridade” da Igreja de Roma, não teria acontecido sem ele. E olha aí, Paulo Guedes: taxar igrejas em vez de livros. Não é uma boa ideia?

Meu amigo Waldemar

Estou em Inhambane. Sento-me num estreito banco de pedra para assistir ao espetáculo das baleias brincando no mar. Faz agosto, um vento frio arrepia a luminosa pele do Índico. Waldemar Bastos morreu há poucos dias e ainda não consegui assimilar a má notícia. Coloco os fones e, enquanto o ouço cantar Sofrimento, vejo a vida fluir, como um rio sonâmbulo: os dias felizes e os dias ferozes, a luz e as sombras de um país chamado Angola, desde a independência até ao estranho presente em que continuamos confinados.

Lembro-me com precisa clareza da primeira vez que escutei a música de Waldemar Bastos, no álbum Estamos Juntos. Foi em 1983. Eu estudava Agronomia em Lisboa. Aquele disco foi uma revelação e um bálsamo, ao abrir imprevistas janelas de luz sobre uma Angola sufocada por uma guerra interminável. Waldemar traduzia em sons uma fina rede de afetos, que começava em Liceu Vieira Dias e os seus maravilhosos Ngola Ritmos, fundadores da música popular urbana de Angola, e terminava, do outro lado do oceano, em Chico Buarque.

Susa Monteiro

A partir dos anos 1990, passei a encontrar Waldemar, com certa frequência, em eventos culturais, reuniões e manifestações de angolanos, ou no restaurante que manteve por alguns anos no Bairro Alto, o Água do Bengo, onde Laureana, a sua companheira de sempre, servia o melhor funge de Lisboa.

Waldemar não escondia a revolta e o desgosto de ver o país dividido, saqueado e desgovernado. Durante décadas, enfrentou pressões do regime de José Eduardo dos Santos, que incluíam desde a interdição das suas canções nas emissoras públicas a violentas campanhas de insultos e calúnias, a par com inúmeras tentativas de aliciamento. Nunca se calou. Nunca se deixou comprar, nem pelo regime, nem pela principal força da oposição. Ao mesmo tempo, foi apoiando sempre todas as iniciativas visando a pacificação e a democratização do país. Marchei ao lado dele, em manifestações que não reuniam mais de quinze almas inconformadas, e noutras, muito mais raras, entre centenas de pessoas, como em Lisboa, em 2015, nos protestos contra a prisão de Luaty Beirão e dos seus companheiros.

(...) mostra o desconforto com que uma parte da sociedade angolana continua a encarar um artista cujas opiniões diretas e fortes, não só em relação à política mas também à cultura, chocavam com o discurso oficial ou dominante

Em 2018, Waldemar Bastos recebeu o Prémio Nacional de Cultura, que é, em Angola, o mais importante reconhecimento público da obra de um artista. Há muitos anos que a qualidade do seu trabalho vinha sendo admirada no exterior. O seu melhor álbum, Pretaluz (1997), foi produzido por Arto Lindsay e publicado pela Luaka Bop, a editora de David Byrne especializada em música do mundo. Classics of my soul (2017), que junta alguns temas clássicos do cancioneiro angolano, como Muxima, Mbiri! Mbiri! e Humbi-Humbi, com outros da autoria do próprio Waldemar, como Velha Chica ou Teresa Ana, foi gravado com a colaboração da Orquestra Sinfónica de Londres. Richard Bona, o famoso baixista camaronês, considerava-o o melhor cantor e compositor angolano.

O Jornal de Angola deu grande destaque à morte do cantor, com um título que soa quase como um pedido de desculpa: “Morreu o músico que fazia arte para melhorar a política”. Um dia mais tarde, contudo, a bancada do MPLA na Assembleia Nacional inviabilizou um voto de pesar pela morte de Waldemar, apresentado pelo maior partido da oposição, a UNITA. O gesto, em bizarra contradição com a política de pacificação e reconciliação de João Lourenço, expõe as divisões no partido governamental e mostra o desconforto com que uma parte da sociedade angolana continua a encarar um artista cujas opiniões diretas e fortes, não só em relação à política mas também à cultura, chocavam com o discurso oficial ou dominante.

Dói-me a morte de Waldemar, porque sei que partiu cedo demais, quando ainda tinha para nos dar tantas canções. Vou sentir a falta dele, da sua paixão, das suas opiniões tantas vezes excessivas e contraditórias, da sua ironia, da sua alegria, do seu carinho pelo povo mais humilde de Angola.

Esta tarde, as baleias não vieram. Tiro os fones, levanto-me e afasto-me a assobiar a melodia de Sofrimento. Um homem cruza o meu caminho. É alto, com um chapéu preto tombado sobre o rosto. A última luz do dia atira a sua sombra para longe, de encontro aos coqueiros, que se inclinam numa vénia, voltados para o mar. Suspendo o assobio e logo o homem recomeça onde eu parei. Senha e contrassenha.

Corpos decaem e morrem — a música não. Música é ar em movimento, luz em movimento. Waldemar deixou-nos toda essa luz, que caminha agora à nossa frente.

Obrigado, Waldemar. Meu amigo Waldemar.