sábado, 29 de agosto de 2020

Palavrões e desrazão

A contragosto, voltemos a isso. Voltemos porque o falastrão voltou a atacar. Nesta semana, como que regressando à ativa, o presidente da República restabeleceu sua velha forma prosódica e deu de insultar gente honesta com termos chulos. No domingo, a um repórter do jornal O Globo que lhe perguntou sobre os R$ 89 mil depositados na conta da primeira-dama, respondeu com um bodoque vocabular: “Vontade de encher sua boca de porrada”.

Tente imaginar, por alguns segundos, que tipo de ser humano se expressa nesse léxico. É chocante. Em mau português, essas palavras materializam o soco na cara do interlocutor. O simples enunciado já fere, já tira sangue da honra do outro. O ato violento é a própria fala, que nem precisa se traduzir em gesto físico para machucar. Sete palavras que ofendem e, acima disso, enxovalham um cargo público de alto a baixo. Mais uma vez. Voltemos a isso, então.



Na segunda-feira, mais barbaridades. Ao defender publicamente o emprego de substâncias exóticas para tratar a covid-19, a mesma autoridade voltou a se gabar do alegado “histórico de atleta” e se vangloriou de não ter desenvolvido sintomas graves da doença.

Aproveitou e disse que, quando o paciente é um jornalista, o quadro é pior. Mas ele não disse isso assim, com essa reles e preconceituosa falta de educação. Ele foi além. Abusou da vulgaridade. Ao se referir a um jornalista genérico – um jornalista qualquer que venha a ser acometido pelo vírus –, o autoproclamado atleta imune preferiu dizê-lo de modo mais torpe: “Quando pega num bundão de vocês a chance de sobreviver é bem menor”.

Diante de tal postulado podemos dizer que, segundo o presidencial juízo, aqui escreve um “bundão”. Todos os que exercem o ofício de jornalista acabam de ser tachados com esse qualificativo por ninguém menos que o governante do nosso país. Como reagir? Devolver o xingamento resolve? Falar na mesma frequência ajuda? Anula o dano? Difícil saber.

O que sabemos com segurança é que o palavrão foi alçado à condição de norma linguística da alta administração pública federal. A nova norma inculta alcançou o apogeu na reunião ministerial de 22 de abril – aquela que teve sua gravação em vídeo divulgada por força de decisão judicial –, quando presidente interpelou os seus subordinados aos berros, desfiando, um a um, todos os vocábulos de baixo calão disponíveis no dicionário.

O Brasil inteiro viu o ritual de baixezas exclamatórias na televisão e na internet. Uns ficaram aturdidos porque o chefe de governo declarou que queria armar a população (como vem armando, mas só a população que gosta de se armar). Outros se espantaram com o despudor de um ministro da Educação (parece que era isso) afirmando que os ministros do Supremo Tribunal Federal deveriam ser encarcerados. Mas o mais aterrador de tudo, o mais aviltante, não eram as atrocidades que aqueles seres pronunciavam, mas as palavras que eles usavam para pronunciá-las. O mais apocalíptico de tudo era a linguagem.

Que espírito de justiça, que sentimento de solidariedade, que elevação moral, que virtude humanitária, que cultura e que inteligência podem existir numa cúpula de Estado que se comunica nessa base? O que esperar de um suposto estadista que fala na língua das quadrilhas de traficantes com a desenvoltura dos capangas encapuzados em esquadrões da morte? O que ver de positivo num Ministério que se sujeita a ser tratado com o que pode haver de mais vil e de mais ultrajante no vernáculo?

O resultado é que estamos aí com essa persona investida de poder dedicada a nos xingar, e xingar de novo, todos os dias, com suas palavras e com seus silêncios. Fomos condenados a nos acostumarmos com isso aí, pois muita gente apoia isso aí. Entre outros setores, boa (má) parte da elite financeira do Brasil apoia. É inacreditável. Uns até fingem que é normal.

Tempos atrás, o endinheirado conformismo pátrio se resignava na base do “rouba, mas faz”. Agora, as mesmas forças (fracas) se rendem a coisa pior: “Xinga, mas diz que vai fazer as ‘reformas”. Essa turma deu de apoiar qualquer coisa em troca de umas promessas de “reformas” – promessas capengas, entremeadas de infâmias, não importa. Os dependentes químicos do substantivo “reformas” apoiam xingamentos, intimidações, apoiam latidos. Não cessam de incensar aquele que diz que vai fazer “as reformas” e não faz, aquele que cultiva e profere absurdos inomináveis.

Sim, absurdos inomináveis – absurdos às toneladas. Pense bem o improvável leitor: que tipo de batatada vai na cabeça de quem se jacta aos brados de não ter tido sintomas graves de uma doença que já matou 120 mil brasileiros? Na desordem mental da pessoa que diz tais coisas, a doença só derruba os mais fracos, os que não têm “histórico de atleta”, os pesos mortos. Logo, ela esnoba a enfermidade, que chama de “gripezinha” ou de “chuva”. A tal pessoa não se compadece da dor alheia, não conhece a empatia e, o que mais constrange, não alcança a razão. O palavrão estulto nos governa.

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