quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Pensamento do Dia

 


De onde vem e para onde vai o dinheiro do agronegócio brasileiro?

Para responder essa pergunta tão importante para todos os brasileiros, algumas preliminares precisam ser apresentadas. O conceito de Agronegócio ainda não é muito claro na sociedade em geral, pois o imaginário da agropecuária é muito arraigado em nossas mentes, seja pelo histórico da atividade econômica, seja pela literatura e arte visual. Para entender o moderno conceito de agronegócio temos que recorrer a John Davis e Ray Goldberg, que em 1957, no livro “Concept of Agribusiness”, iniciou uma mudança na forma de entender a produção agropecuária e as suas relações na economia dos países.


Com este novo entendimento, percebeu-se que a atividade é uma grande cadeia de relações (ou sistema), que inicia nas indústrias de insumos e máquinas, engloba o mercado de terras, legislação, sistema financeiro, educação e políticas públicas. Passa para fase de produção agropecuária, propriamente dita, e continua nas indústrias de processamento, logística, exportação, atacadistas, varejistas e chega no consumidor final. Enfim, agronegócio é um gigantesco sistema de múltiplas relações e que movimenta muito (mas, muito mesmo) dinheiro, pessoas e interesses. Outra característica importante do agronegócio é saber onde o dinheiro circula e é concentrado. Esta concentração irá definir quem controla este grande sistema. Quem tem mais dinheiro, manda.

Segundo um estudo de Goldberg, com dados do USDA (Departamento de Agricultura dos Estados Unidos), aproximadamente, 80% dos valores circulantes estão no setor antes da porteira e depois da porteira, ou seja, a agropecuária é essencial no processo, mas não coordena o sistema de produção. Munidos desta compreensão, é possível vislumbrar que o dinheiro do Agronegócio, ao final do processo, é concentrado na mão de quem detém as indústrias de insumos, processamento e distribuição. Outro aspecto importante, é que neste modelo, a produção agroindustrial não pode ser muito diversificada, pois somente com padronização dos produtos é viável aplicar o modelo industrial de produção em série na atividade agropecuária. Com pouca diversidade, as indústrias conseguem atuar em toda a produção com poucos produtos e, com isso, controlar praticamente todo o sistema.

'Há um temor em relação ao embarque de fertilizantes', diz presidente da FPA'Há um temor em relação ao embarque de fertilizantes', diz presidente da FPA

Líder da frente agropecuária prevê inflação dos alimentos e defende exploração mineralLíder da frente agropecuária prevê inflação dos alimentos e defende exploração mineral

Queda de 8% da agropecuária explica recuo do PIB no terceiro trimestreQueda de 8% da agropecuária explica recuo do PIB no terceiro trimestre

Esta concentração em poucos produtos agropecuários, também conduz a uma redução na diversidade de insumos para a produção. Com isso, haverá poucas empresas disputando o mercado e que para dificultar mais ainda a entrada de novos agentes, realizam fusões de proporções planetárias e controlam a maior parte do mercado de insumos e processamento. Segundo estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) de 2019, no ano de 2017, as dez maiores empresas de defensivos agrícolas no Brasil responderam por 80% do total comercializado e se ampliar para as 15 maiores, o total é de 96%. Portanto, boa parte dos gastos com insumos irão ser pagos a um grupo bem pequeno de empresas, sendo a maioria formada por capital estrangeiro. Quanto ao outro extremo da cadeia, o depois da porteira, também caminha a passos largos para a concentração.

Para ilustrar o fenômeno da concentração: o custo de produção do Soja RR, na região centro-sul de Mato Grosso do Sul, para a safra 2021/2022, segundo a Embrapa Dourados, consumirá com insumos, depreciação e custo de oportunidade com máquinas e implementos 59,8%. E o custo total de produção para o mesmo soja e região, poderá consumir de 43,92% a 81,56% da produção, a depender da pior ou melhor previsão dos preços do soja. Conclusão, com a produção e venda do soja, promove-se uma grande circulação de dinheiro, mas, ao final, este terminará nas contas de poucas multinacionais. Enfim, por unidade produzida, o agricultor brasileiro ficará com uma pequena parte deste dinheiro.

Evidente que, ao exportar o produto, o país terá a entrada de dólares que fortalecem as Reservas Externas do país e abastecem a economia de reais depois do câmbio. Este capital, advindo das exportações, será elemento essencial no financiamento da nova produção. Entretanto, estes recursos não vão chegar completamente nas mãos dos produtores, como explicado acima. É necessário considerar que a produção agropecuária é uma atividade de alto risco e o produtor somente consegue se manter na atividade por longos períodos se for abastecido de financiamento externo à propriedade ou se for um produtor de grandes proporções. Para manutenção de produtores médios e pequenos, é necessário prover a atividade de crédito de baixo custo, ou seja, com subsídios. E, atualmente, quem pode propiciar este crédito com juros baixos e alto risco de inadimplência, é o Estado.

Esses recursos disponibilizados à produção agropecuária, originam-se de uma política pública conhecida como Plano Safra, onde o Estado utiliza recursos da poupança rural (49%) e recursos obrigatórios (22%), estes oriundos do VSR (Valor Sujeito a Recolhimento dos recursos depositados à vista nos bancos). Enfim, há um esforço do Estado e, portanto, de toda a sociedade, para financiar a agropecuária, mas boa parte dos recursos não fica especificamente no bolso dos agropecuaristas. Com esse quadro a rentabilidade do agricultor brasileiro tem diminuído, o que conduz a necessidade de crescer em escala de produção para poder manter-se na atividade. Para este crescimento há duas vias: aumentar a produtividade e/ou aumentar a área de produção, que, nos dois casos, implica em grandes investimentos. Este aumento em produtividade implica em aprimorar o sistema industrial de produção, ou seja, investir mais recursos nos insumos das indústrias multinacionais e o crescimento de área implica em comprar novas áreas e avançar na fronteira agrícola. Com as regras ambientais brasileiras, novas fronteiras agrícolas estão se tornando escassas, o que resulta em uma elevação do preço das terras e a tendência natural é que as propriedades sejam cada vez maiores, mais caras e concentradas nas mãos de poucos produtores que consigam atender estas exigências do mercado.

Respondendo à pergunta título do artigo: o dinheiro do agronegócio origina-se em grande parte das exportações e do financiamento público, mas o seu destino final será, em boa parte, os cofres daqueles que coordenam as cadeias produtivas ou de alguns grandes produtores de grandes dimensões. O agronegócio é um dos grandes negócios no Brasil, mas precisa ser mais dos brasileiros.

Os enganados


É mais fácil enganar as pessoas do que convencê-las de que foram enganadas
Samuel Langhorne Clemens (Mark Twain)

Bolsonaro está se lixando para Eduardo. É Carlos que o preocupa

Derrotado por Lula, hoje faz 30 dias, Bolsonaro perdeu a voz, a vontade de governar e o ânimo pela vida. Arriscou-se a perder Michelle, com quem está casado há 15 anos completados ontem. E afrouxou o estribo que mantinha presos a ele os seus filhos Zero.

Aí deu no que repercutiu muito mal entre seus seguidores mais fanáticos e radicais: enquanto eles enfrentam chuvas torrenciais em acampamentos à porta de quartéis clamando pela anulação das eleições, Eduardo Bolsonaro diverte-se e esbanja felicidade.


E logo onde? No Catar, sede da Copa do Mundo, na companhia da mulher, de uma penca de amigos, e torcendo pela vitória da Seleção Brasileira. Bolsonarista raiz, por força do hábito, veste a camisa da Seleção, mas não torce por ela. É o que eles dizem.

Torcer pela Seleção a essa altura só beneficia o PT e Lula, que venceram uma “eleição roubada”. É justamente por ter sido roubada que eles estão em pé de guerra e cobram uma intervenção militar que a cancele. Pedem também a prisão de Lula.

Não querem só isso. Querem o fechamento do Supremo Tribunal Federal e a prisão de meia dúzia de ministros; entre eles, Alexandre de Moraes, a quem Bolsonaro chamou de canalha no dia 7 de setembro do ano passado. Bolsonaro prometeu desobedecer às ordens dele.

Como continuarão fiéis ao Mito, e aos filhos do Mito, e a uma visão de mundo que eles souberam tão bem vender para convencê-los, quando o mais ideológico dos Bolsonaros faz o que Eduardo fez em ocasião de tamanho sofrimento coletivo?

“Inacreditável que estão no Catar, aderindo ao pão e circo, e o povo aqui clamando em frente aos quartéis para que seja feito algo. Que mancada, hein. Péssimo exemplo. Parece que riem na cara do povo”, escreveu no Twitter um discípulo da família.

Outro escreveu: “No Catar? Enquanto os brasileiros estão debaixo de chuva se manifestando, enfrentando tudo e a todos? Não deveria estar no Congresso lutando pelo povo? Depois cai em descrédito e não sabe por quê!”. E outro, ainda mais revoltado:

“Lamentável a sua postura em meio ao caos, hein, Eduardo? O povo debaixo de sol e chuva na frente dos QGs lutando pelo país, teu pai acabado, chorando em discurso, e vocês aí no Catar, vendo a Copa do Mundo? Lamentável demais.”

Não é a primeira vez, e nem será a última, que Eduardo Bolsonaro (PL-SP), deputado federal reeleito, que se diz amigo do ex-presidente Donald Trump e que ambicionou ser embaixador do Brasil em Washington, decepciona o próprio pai.

Em 2 de fevereiro de 2017, candidato a presidente da Câmara dos Deputados, Bolsonaro deu-se conta da ausência de Eduardo. Bolsonaro sabia que não tinha a mínima chance de se eleger, mas lançou-se candidato só para ocupar espaço na imprensa.

Eduardo, o Zero 3, estava no exterior. O fotógrafo Lula Marques flagrou uma troca de mensagens entre os dois. Bolsonaro teve apenas quatro votos para presidente da Câmara.

Bolsonaro: “Papel de filho da puta que você faz comigo”.

Bolsonaro: “Tens moral para falar do Renan? Irresponsável”. (Referia-se a Jair Renan, o Zero 4)

Bolsonaro: “Mais ainda, compre merdas por aí. Não vou te visitar na Papuda”. (Papuda é a penitenciária de Brasília)

Bolsonaro: “Se a imprensa te descobrir aí, e o que está fazendo, vão comer seu fígado e o meu. Retorne imediatamente”.

Eduardo: “Quer me dar esporro, tudo bem. Vacilo foi meu. Achei que a eleição só fosse semana que vem. Me comparar com o merda do seu filho, calma lá”. (O merda era Jair Renan)

Bolsonaro nunca revelou onde Eduardo estava, o que fazia, e por que poderia ser preso se fosse descoberto. Flávio, senador, o Zero 1, não dá tantas preocupações ao pai, a não ser quando vai à compra de imóveis pagando com dinheiro vivo.

Carlos, vereador, o Zero 2 e o mais instável dos filhos, preocupa Bolsonaro. Ele responde a processos que poderão levá-lo a ser preso por decisão de qualquer juiz da primeira instância. Esse é o principal motivo do desespero em que vive Bolsonaro.

Gil

"O mundo só anda para frente." Gilberto Gil me disse isso há poucos meses quando perguntei se ele não temia um retrocesso maior, que nos levasse aos tempos em que foi preso e viveu exilado em Londres. Afirmou, convicto: "não, não tem isso, não, as pessoas querem viver em paz".

Ao ver a cena revoltante em que Gil e Flora foram acossados e agredidos, uma imagem ficou. Gil parece o tempo todo uns degraus acima da barbárie, como se flutuasse sobre o ódio e a ignorância, sentimentos tão mundanos para quem já alcançou outra dimensão. Naquele patamar em que vivem apenas os deuses da sabedoria, da sensibilidade, da escuta, da paz.

Não foram analistas e cientistas políticos, colegas de profissão, os que acalmaram meu coração diante de todas as ameaças que vivemos e que continuaremos a enfrentar, mas a frase dita num fim de tarde de junho: "o mundo só anda para frente".


Eu me lembrei de livros que ecoam esse otimismo, dos quais falei para Gil em nossa conversa sobre o futuro do país. "Utopia para Realistas", de Rutger Bregman, e "O Novo Iluminismo", de Steven Pinker, olham nessa mesma direção: para frente. O que não significa que o mundo seja cor-de-rosa, que os humanos sejam pura bondade e que a natureza não seja caótica, como pondera Pinker.

Mas em momentos em que vivemos agitações sociais e questionamentos sobre o trabalho, o dinheiro, a família e a felicidade temos a oportunidade de passar por grandes transformações. Bregman cita marcos da civilização que já foram ideias utópicas, tais como o fim da escravidão e o início da democracia, para mostrar que podemos construir uma sociedade melhor com ideias visionárias, mas viáveis.

Humanos subdesenvolvidos são maus, ressentidos, agressivos. Gilberto Gil sabe que o mundo anda para frente porque já chegou num grau de evolução que para a maioria está apenas nos livros, que ainda devo para ele.

domingo, 27 de novembro de 2022

A verdade muito além do fiscal

O ex-ministro Fernando Haddad foi falar com os banqueiros, em nome do presidente Lula, na sexta-feira e defendeu ideias civilizatórias, democracia, normalidade na relação entre poderes e respeito ao pacto federativo. A bolsa caiu e o dólar subiu. A explicação é que acharam que ele foi “vago”. Haddad não podia dar detalhes de coisa alguma, nem ministro é. Mas cabe pensar neste tipo de reação. Bolsonaro abriu guerra com o Judiciário, brigou com estados e municípios, não reconheceu a derrota nas urnas e até hoje conspira contra a democracia. O que gera mais incerteza? O golpismo de Bolsonaro ou a falta de definição sobre a âncora fiscal do novo governo?

Maldita é palavra feia e forte, mas a única possível para definir a herança deixada por Bolsonaro. Há uma devastação no país. Quem seleciona números para dizer que o país melhorou comete erros. Números nada dizem sem o contexto. O orçamento é inexequível. E é também uma arapuca que está tirando capital político e drenando as forças do governo eleito.

Na economia, a arrecadação subiu? Sim, mas em grande parte pela alta da inflação, o que é uma forma espúria de melhorar os dados fiscais. Algumas despesas cresceram em ritmo menor? Sim, mas porque não houve aumento real de salário mínimo em quatro anos e os salários dos servidores civis foram congelados, enquanto os dos militares subiam. A visão seletiva de alguns indicadores não permite uma análise do que está ocorrendo no país.


No mercado se ouve que o temor agora é o tamanho da expansão fiscal do novo governo. Como o ex-ministro Nelson Barbosa explicou, se o governo do presidente Lula gastar os mesmos 19% do PIB que foram gastos neste último ano do governo Bolsonaro, as despesas previstas no orçamento podem aumentar em mais de R$ 140 bi. É que Bolsonaro projetou um aperto fiscal para 2023 em relação à despesa que ele mesmo fez.

Se um liberal na economia quiser dizer que a herança do governo Bolsonaro foi boa terá que abstrair muita coisa. Bolsonaro desmoralizou a governança da Petrobras, subsidiou e manipulou preços dos combustíveis com interesses eleitorais, usou a Caixa Econômica como centro de propaganda, rompeu o teto de gastos várias vezes e em uma delas embutiu um calote, o não pagamento dos precatórios.

Quem for de fato liberal tem que honrar a palavra e repudiar os ataques à liberdade. Bolsonaro durante todo o seu governo ameaçou as liberdades democráticas. Derrotado, conspira para a manutenção do criminoso bloqueio das estradas, que revoga o direito de ir em vir da população. Conspira com a ajuda de “Valdemort” Costa Neto, que inventou mais uma mentira contra as urnas para tentar reverter o resultado legítimo da eleição. Isso eleva muito a incerteza econômica. Num país em que o contrato mais importante, a Constituição, está em risco, tudo está em risco.

Na saúde, o grupo de transição alertou que existem R$ 2 bilhões de vacinas e remédios vencidos ou por vencer. As crianças têm a menor cobertura vacinal em décadas e podem contrair doenças que já haviam sido erradicadas. Na educação, foram cortados 97,5% das verbas para a construção de creches, a merenda escolar está sem reajustes há cinco anos, quando a inflação de alimentos foi de 43%, o programa de combate à violência contra a mulher teve um corte de 90%, o fornecimento de remédios para os pobres tem no orçamento proposto um terço dos recursos que teve no último ano do governo Temer. É exequível esse orçamento? Qual é a previsibilidade que dá um orçamento assim?

A herança do governo Bolsonaro na área ambiental é a maior taxa de desmatamento em dez anos e quatro anos consecutivos de alta da destruição. O crime está mais forte na Amazônia. A conexão entre grileiros, traficantes, garimpeiros ilegais e invasores de terras indígenas provocou vítimas. Será muito difícil para o Estado restabelecer o primado da lei na floresta.

O fiscal não é um tema solto no ar, sem relação com o resto. Consertar toda essa bagunça implica em aumentar gastos. Não permitir a recomposição desses itens de despesas é condenar ao fracasso o governo que nem começou. Como jornalista de economia, tenho sempre defendido e continuarei defendendo a sustentabilidade da dívida pública e o rigor nos gastos do governo. Mas, sejamos sinceros, o país está em escombros.

Réquiem para nossos netos, ou filhos?

Sabemos que nada se cria, nada se perde, tudo se transforma! Não obstante, muitos querem que acreditemos que a gasolina queimada nos veículos desaparece. Confirmando Lavoisier mais uma vez, o acúmulo de gases de efeito estufa mostra que não: ela se transforma em aquecimento global e em quantidade crescente de desastres nada naturais, como enchentes, secas, incêndios e outros. E os subsídios à extração de mais combustíveis fósseis continuam, assim como continuou, por muitos anos, a leniência com o cigarro.

Muitos creem que o desenvolvimento tecnológico virá nos salvar. Foi ele que permitiu a queima de combustíveis, e também itens de conforto como roupas impermeáveis, tapetes e toalhas de mesa resistentes a manchas e ao calor, fio dental, panela antiaderente, etc.! Viva! Viva! Só que, para adquirir estas características esses produtos recebem a adição de PFAS, nome genérico para os per e polifluoroalquil, conjunto de cerca de 12.000 produtos químicos, tóxicos.


Esses PFAS penetram nos nossos corpos pela respiração, pele e alimentos. O governo dos EUA estima que 98% dos norte-americanos o têm no sangue, e que 200 milhões de seus habitantes bebem água com a presença desses também chamados “químicos eternos”, pois não se degradam.

Eles causam câncer, aumento do colesterol, problemas cognitivos e reprodutivos, aumento de peso, danos ao fígado e defeitos congênitos, entre outros.

Estudo recente, citado pelo The Guardian (22/09), revisou 40 outros, realizados nos últimos cinco anos; em conjunto, estes analisaram o sangue de 30.000 cordões umbilicais e encontraram a presença dos PFAS em nada menos que 100% deles. Como não se decompõem, acumulam-se no ambiente, em nos nossos corpos e, com mais intensidade, nos dos fetos. Nossos filhos e netos.’

Assim como as empresas produtoras de cigarro, automóveis e outros, além das extratoras de combustíveis fósseis ou empreiteiras de obras públicas subornaram e subornam autoridades, escamoteiam os riscos e superestimam os benefícios trazidos pelos produtos que lhes geram lucros, também firmas de outros setores fazem o mesmo.

A gigante francesa Saint Gobain poluiu a água que bebem muitos no estado norte-americano de New Hampshire, onde é particularmente elevada a incidência de câncer. Após negar, a empresa acabou por reconhecer que mentiu sobre a quantidade de PFAS usada, assim como a Volkswagen sobre o nível de poluição de seus veículos.

No Brasil, vivemos na ignorância, pois carecemos de estudos que nos informem sobre a quantidade desses produtos em nossas vidas. Por outro lado, muitas “otoridades”, economistas, empresários e jornalistas ficam felizes quando sabem do aumento da produção desses produtos aqui, pois isso eleva o PIB e os permite pensar que comemoram o “progresso”, quando na realidade celebram …. a degradação humana e ambiental!!!

Mantidas essas práticas hoje generalizadas, não celebraremos a vida dos netos, mas desde já podemos encomendar-lhes réquiens.

O barato do absurdo

"É mais fácil enganar as pessoas do que convencê-las de que foram enganadas". Assim, "nunca discuta com pessoas estúpidas, porque vão lhe arrastar para o nível delas e acabar vencendo por experiência". Estas duas boutades ferinas de Mark Twain podem servir de guia para os perplexos com o embotamento das faculdades mentais de extremistas.

De fato, é tarefa inglória argumentar sobre o grau de realidade de um fato, quando o interlocutor foi emocionalmente capturado por outra certeza, absurda. O fato: TSE, STF, militares, observadores internacionais, governantes à esquerda e à direita no mundo reconhecem a lisura das eleições brasileiras. Mas um empresário retruca: "Creio que é fraude. Mandei caminhões para protestar".


"Creio porque é absurdo" é frase derivada de Tertuliano, teólogo cristão do século três, que queria assim afirmar a fé como transcendental à razão. Só que extremismo nada tem a ver com teologia, e sim com basbaquice, imbecilidade ou estupidez legítima, que é uma forma deliberada de idiotia. Às vezes, o que se diz não coincide com o que se pensa, isso pode ser corriqueiro. Preocupante é o abismo entre um e outro, ocupado pelas ilusões de onipotência do estado de autoexaltação, em que o imbecil veste uma fantasia pretensamente capaz de resgatá-lo de sua miséria existencial. Por insólito que pareça, o absurdo banal é uma droga do extremismo.

Têm se multiplicado na mídia interpretações de natureza psi sobre o fenômeno. Em geral, numa bela língua, mas talvez seja um esforço excessivo. O estúpido, o imbecil, o cretino, o basbaque, o mané não comporta profundidade, é grosseiramente linear. Daí a dificuldade de apreendê-lo pela via da racionalidade culta: busca-se um sentido oculto na cabeça da ovelha, enquanto o comportamento é regido pela mecânica irreflexa do rebanho.

Por mais incômodo e ridículo que seja o despautério nas redes, em frente a quartéis ou sob um céu de ovnis, seria de bom aviso pautar a verve de Mark Twain, uma reflexão prática sobre os impasses do diálogo. Na verdade, isso pode estar ocorrendo, quando até mesmo militares começam a se preocupar mais com o lixo acumulado pelas "livres expressões democráticas" nas portas de suas unidades do que com aquele que enche cabeças "patrióticas" às voltas com picanha e linguiça, ao som de música sertaneja.

Mas estupidez não tem agenda, pode durar. Nesse meio tempo, recomenda-se aos sãos de espírito meditar sobre uma canção ("Le Roi des Cons") do genial Georges Brassens, em que ele diz ser possível rolar por terra a Coroa da Inglaterra, mas "não se destrona o rei dos imbecis". É empresa árdua, certo, porém factível: bem avisadas, as urnas democráticas dão conta do recado.

sábado, 26 de novembro de 2022

Brasil do povão também pergunta

 


O covarde em questão

Acontece na guerra: o exército vencido bate em retirada e tenta se vingar do vitorioso deixando um rastro de destruição e morte. Mas, como bem sabem os militares, quem faz isto está sendo só covarde. Primeiro, porque é uma vingança a distância, a salvo, pelas costas, típica dos covardes. E também porque, ao plantar minas ao fugir, tocar fogo em cidades e florestas e envenenar rios e plantações, matarão muito mais inocentes, como crianças e animais, do que os experientes inimigos que pretendem atingir.

Jair Bolsonaro é o covarde em questão. Ao encontrar o que merecia nas urnas e ter data marcada para ir embora, está aproveitando os últimos dias no cargo para completar seus quatro anos de meticulosa demolição do país. Vide seu apoio mudo e tácito aos atos terroristas e às barricadas nas estradas. O histérico baderneiro que, há dias, impediu um pai de vencer a barreira para levar o filho a uma cirurgia que lhe garantiria a visão pode ter nome e sobrenome. Mas este é só o pseudônimo do celerado. Seu verdadeiro nome é Jair Bolsonaro, e será a este que o pai deverá exigir satisfações se seu filho perder o olho.

Como ainda tem tinta na caneta, Bolsonaro tenta passar o resto da boiada, infiltrando os derradeiros pilantras de sua confiança em órgãos judiciais, cortando verbas essenciais e desmontando os já poucos serviços de proteção às florestas. Quem perde com isso é o Brasil, mas e daí? E seu silêncio fala alto quando, agora temendo processos de verdade, ele escala Walter Braga Netto e Valdemar Costa Neto para fazer o trabalho sujo.

Bolsonaro não tem a hombridade dos grandes generais que, ao perder a guerra, entregam sua espada ao vitorioso e saem de cabeça erguida —vencidos, mas não derrotados. Sua atitude é a de um moleque.

Moleque, segundo o Houaiss, pode ser tanto um sujeito brincalhão e gaiato quanto uma criança ou um canalha. Você escolhe.

Onde está o inferno?


A nossa questão não é saber se há; é tão-somente decidir onde está o inferno
Camilo Castelo Branco

À espera do Messias em frente ao quartel ou à PF em Curitiba

Nos anos 80, ocupavam a Cinelândia, no Centro do Rio. Resistiram algumas décadas — hoje não há mais vestígios do que um dia foi a aguerrida Brizolândia. Em 2018, começaram uma vigília em frente à Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba. Por 580 manhãs, renovavam sua fé gritando: “Bom dia, presidente Lula!”. Desde o segundo turno das eleições de 2022, estão acampados diante de quartéis ou bloqueando estradas.

Muda a cor das roupas e bandeiras — sai o vermelho, entram o verde e o amarelo. Mudam as palavras de ordem: “Lula livre!”, “Intervenção militar!” e... (o que é mesmo que queriam os brizolistas, além de lutar contra as “perdas internacionais”?). Em comum, a inabalável fé num messias. E a negação — do resultado de eleições, da condenação ou do ocaso do seu líder, do seu capitão, do seu salvador. Nunca chegam a formar multidões — talvez daí o empenho em fazer tanto barulho.


São pessoas que se desconectaram de si mesmas e embarcaram num delírio coletivo. Não necessariamente por desinformação ou déficit cognitivo, mas para se congregar no seio de uma ficção compartilhada. Para ter a sensação de pertencimento, de estar do lado do Bem. E suprir sua grande carência — e de todo ser humano: a de amparo. Funciona para qualquer seita, religiosa ou ideológica.

Em linguagem de autoajuda: deixam de ser gota para se sentir oceano. Mal sabem que, nessa mudança, passam de sujeito a objeto, tornando-se cada vez mais manipuláveis: a permanência no grupo implica investimento psíquico incessante. Paga-se um boi para entrar e uma boiada e meia para tentar sair do rebanho.

São gente como a gente — só que, no momento, impermeável a argumentos. Como os amigos que me entopem a caixa postal com notícias falsas, falsos alarmes, teorias conspiratórias. Aponto o erro, encaminho o desmentido — em vão. Daí a pouco recomeça tudo, numa amnésia voluntária. Foi assim na época do impítimã (“É golpe!”); é agora no pós-eleições (“É fraude!”). Pessoas até outro dia bastante sensatas, mas que marcam território com bandeiras na janela (de casa ou do carro), cantam o Hino Nacional no portão de algum quartel (felizmente, não em torno de pneus) e clamam pelo fim do Estado de Direito (pelo menos não com o celular na cabeça pedindo socorro a extraterrestres). Não refletem, agem reativamente. Ao domínio cultural tirânico das esquerdas e à patrulha vingativa das minorias, respondem com o orgulho da tosquice, a celebração anticiência.

Lula elegeu Bolsonaro, Bolsonaro reelegeu Lula. Sem uma terceira via à vista, é possível que esse “Dia da Marmota” ainda dure muitos anos.

Os brizolistas conseguiam, no máximo, atravancar a passagem de pedestres na Cinelândia. Os lulistas, que penaram no frio de Curitiba, perturbaram apenas o sossego do pacato bairro de Santa Cândida. Os “patriotas” infernizam a vida de quem precisa viajar ou transportar sua carga e podem causar estragos à economia, ao convívio civilizado, à democracia.

Vai ser um desafio trazê-los de volta ao diálogo. É longo e penoso o luto de um messias.

Os arrependidos

Os mais antigos vão se lembrar das multidões que tomaram as ruas das grandes cidades em 1964. Defendiam a família, a propriedade e atacavam o comunismo que, segundo as lideranças da época, estava às vésperas de dominar o Brasil. Essas marchas, apoiadas pela grande imprensa na época, abriram o caminho para que os militares colocassem seus tanques na rua e determinassem a falência dos governos civis. João Goulart deposto, conseguiu fugir do país. Dezenas de parlamentares foram cassados, buscaram asilo em embaixadas amigas ou encontraram meios para sair do território nacional.

Os líderes civis entendiam que os militares iriam permanecer por pouco tempo nas funções político-administrativas da Nação. A eleição de Castello Branco para a presidência da República foi realizada por intermédio de voto indireto, no Congresso Nacional. Juscelino Kubitschek votou a favor de Castello Branco, no maior erro de sua vida política. Passados alguns anos, com a adoção da tortura, censura e desrespeito aos direitos políticos dos cidadãos, os mesmos integrantes das marchas com Deus pela família contra o comunismo voltaram as ruas do país. Desta vez para gritar slogans em favor da liberdade, do fim do estado policial e da censura no teatro, na televisão, na música e nos jornais. E exigir que os militares voltassem para os quartéis. Os arrependidos perceberam a extensão de seu erro.


Militares são treinados para cumprir missões. Missão dada é missão cumprida. Não são sutis. O chamado Comando Supremo da Revolução passou a prender gente à vontade. Sem prestar atenção as conexões familiares, nem aos sobrenomes. As famílias de classe média começaram a ser afetadas pelo rigor militar. Uma tentativa de reforma do sistema educacional jogou os jovens contra o regime. E a coisa desandou. Mais passeatas, mais repressão, mais prisões, mais torturas, mais desaparecidos. Até que o governo chegou ao paroxismo do AI-5, o ato que instituiu a ditadura pura e simples no país. Pequeno grupo, incentivado pelo PC do B, radicalizou com a guerrilha do Araguaia. O Exército perseguiu e matou quem se jogou nesta aventura no centro-oeste do país.

Naquele momento os generais já não tinham o controle total do Exército, que era dividido em alas e correntes políticas. Uma delas, o pessoal de informações em conjunto com o da repressão, tinha efetiva influência no poder. Pessoas desapareciam num piscar de olhos. Chegaram a influir na imprensa. A reposta veio da forma de uma abertura política lenta, segura e parcelada de forma a controlar a esquerda e a direita. Foi o trabalho desenvolvido pelo governo Geisel e completado na administração Figueiredo. Aquele movimento de 64, com pessoas protestando na rua, foi desmontado em 1984 também com pessoas nas ruas pedindo eleições diretas para Presidências da República. Somente em 1985, um presidente civil chegou a presidência da República, 21 anos depois daquelas marchas com Deus, Pátria e Família pela liberdade.

Em tempos recentes, o pessoal que votou em Lula descobriu as ilicitudes cometidas durante os governos do Partido dos Trabalhadores e votou em massa no candidato Jair Bolsonaro. O presidente eleito em 2018 pegou carona, em 2013, nos primeiros movimentos de rua que pipocaram no Brasil sem controle da esquerda. Eles revelaram grupos violentos, os black blocs orientados pelas redes sociais, que conseguiram sensibilizar as igrejas neopentecostais e abrir espaço para o surgimento de uma extrema direita radical no Brasil. O governo Bolsonaro também foi radical na implantação das ideias reacionárias de seu guru Olavo de Carvalho. Promoveu farto desmatamento da Amazônia, cortou verbas das universidades, desmontou a proteção social e esqueceu da saúde do brasileiro. Transformou o país num pária internacional.

Os arrependidos descobriram o erro que haviam cometido e tornaram a eleger em 2022 o Lula que haviam repudiado em 2018. Agora, de novo, radicais movimentam as ruas das principais capitais brasileiras e se aglomeram na frente dos quartéis do Exército pedindo o golpe de estado. Os generais ficam envaidecidos por serem lembrados como pais da Pátria. A sucessão de erros e arrependimentos deve ensinar ao brasileiro que é muito difícil, trabalhoso e demorado recolocar o país nos trilhos constitucionais depois que arbitrariedades passam a ser cometidas em nome da defesa do país, da família, da Pátria, ou pior, em nome de Deus.

Os brasileiros conhecem os passos dessa estrada. A história torna evidente o tamanho do equívoco. Esse pessoal na porta dos quartéis é massa de manobra, exatamente como foram os que desfilaram em 1964. Quem não se lembra de seus erros está condenado a repeti-los.

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Comunicado

Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem que ninguém lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.

Miguel Torga, “Diário IX”

Pedido de anulação da eleição estimula o golpismo

Não foi à toa que o presidente Jair Bolsonaro (PL) voltou ao Palácio do Planalto, ontem, depois de um chá de sumiço, no qual estaria em depressão e com erisipela – um processo infeccioso da pele, que pode atingir a gordura do tecido celular, causado por uma bactéria que se propaga pelos vasos linfáticos. A doença é comum em diabéticos, obesos e portadores de deficiência da circulação das veias dos membros inferiores, mas também pode ser causada pela baixa imunidade de quem está em depressão.

Na terça-feira, o pedido de anulação das eleições apresentado pelo presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, animou Bolsonaro a liderar uma espécie de terceiro turno das eleições, embora essa seja uma causa impossível no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Bolsonaro acredita piamente na manipulação das urnas eletrônicas desde sua eleição em 2018, pois afirma que a teria ganho já no primeiro turno.

Pelo andar da carruagem, o presidente da Corte eleitoral, Alexandre de Moraes, nem tomaria conhecimento do pleito. Se o fizesse, alimentaria as especulações criadas por um relatório sem consistência técnica, que se alimenta de um falso argumento: a numeração de série não individualizada em 60% das urnas utilizadas no segundo turno, que são as mesmas do primeiro e das eleições anteriores. Na noite de ontem, como Costa Neto se recusou a pedir a anulação do segundo turno, não deu outra: além de negar o pedido, Moraes condenou a legenda a pagar uma multa de R$ 22,9 milhões. Hoje, veremos se o PL recorrerá da decisão ao Supremo.

A última agenda oficial do presidente no Palácio do Planalto fora no dia 31 de outubro, uma reunião com o ministro da Economia, Paulo Guedes, um dia após o segundo turno da eleição presidencial. Bolsonaro, até hoje, não reconheceu formalmente a derrota para o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). No dia 1º de novembro, no seu brevíssimo pronunciamento sobre as eleições, afirmou somente que continuará cumprindo a Constituição Federal e, desde então, mantinha uma postura ambígua em relação ao resultado das urnas. Agora, não, questiona a segurança das urnas e quer anular a eleição.


O fato é que o pedido do PL foi mais um degrau da escala golpista que está em curso no país, com protestos à porta dos quartéis e bloqueios sistemáticos de estradas por caminhoneiros, sem falar em ações mais violentas, como as que ocorreram em Santa Catarina, com a queima de veículos. Bolsonaro conta com apoio de militantes inconformados com a derrota, que acreditam em qualquer coisa para mantê-lo no poder e permaneceram nas ruas após 30 de outubro.

Bolsonaro também tem o apoio dos militares que o cercam no Palácio do Planalto e, em especial do general Braga Neto, vice de sua chapa, cuja atuação nos bastidores da campanha de Bolsonaro foi muito intensa, porém, discreta, na organização e mobilização de seus apoiadores. Ontem, o vice-presidente Hamilton Mourão, eleito senador pelo Rio Grande do Sul, pôs mais lenha na fogueira, ao questionar a legitimidade do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para garantir que as eleições transcorreram normalmente e não ocorreram fraudes, o que é muito grave.

“Não basta, pura e simplesmente, respostas lacônicas do nosso Tribunal Superior Eleitoral no sentido de contestar eventuais, vamos dizer assim, denúncias ou argumentações sobre o processo (de votação). Nós teremos que evoluir nisso aí”, afirmou o vice ao nosso correspondente em Lisboa, o jornalista Vicente Nunes. “Acredito que o Tribunal Eleitoral foi parcial nesse jogo”, disse Mourão. “Há, no Brasil, uma parcela da nossa sociedade que considera que o processo (eleitoral) tem problemas. E eu, de minha parte, vejo que precisamos ter que dar mais transparência nesse processo”, completou.

Mourão não questiona a legalidade da sua própria eleição ao Senado, realizada com as mesmas urnas. Sua declaração, em evento da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, porém, teve muita repercussão, inclusive internacional. Os olhos dos principais governantes do e da opinião pública do Ocidente estão voltados para o Brasil. Para o vice-presidente, as manifestações organizadas por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, que vêm causando transtornos à maioria da população brasileira, não podem ser consideradas como golpistas.

Entretanto, basta ver as palavras de ordem das manifestações para constatar que elas são de natureza golpista, pois pedem o fechamento do Supremo Tribunal Federal, a prisão do presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, e uma intervenção militar para manter Bolsonaro no poder, embora realizá-las de forma ordeira e pacífica seja um direito dos manifestantes.

Do outro lado do balcão, a equipe de transição começa a cair na real das dificuldades que enfrentará no Congresso. Não há o menor risco de aprovar a exclusão do Bolsa Família do teto de gastos por quatro anos. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), não precisa do governo para se reeleger e não tem interesse em resolver um problema no atacado que exigirá um esforço ainda maior de negociação de Lula com o novo Congresso, no varejo.

A PEC da Transição ou do Bolsa Família, que seria apresentada ontem, por causa do impasse, talvez só possa ser formalizada na próxima semana. Diante das pressões do Centrão, ganha força a tese de que Lula não precisa da PEC para resolver o problema do Bolsa Família, pois pode administrar com um duodécimo do que foi gasto em 2022, até que o novo Orçamento seja efetivamente aprovado.

Os Onodas nacionais

É como se fossem dois países. Em um, a vida parece seguir normalmente. O presidente eleito viaja pelo mundo e, por onde passa, é recebido com simpatia, enquanto aqui se prepara a transição de governo. No outro país, há crispação e raiva — muita raiva.

Partidários do perdedor fecham estradas, promovem motociatas, atacam pessoas, divulgam desatinos nas redes e se aglomeram diante dos quartéis clamando por intervenção militar. Fazem lembrar Hiroo Onoda, o patético tenente japonês que durante 30 anos ficou escondido na selva das Filipinas, sem saber que a Segunda Guerra Mundial já era história. O comportamento dos nossos Onodas decorre de dois fenômenos casados. O primeiro tem a ver com o modo como se informam; o segundo, com os laços que os unem a seu líder.

Em recente seminário, o cientista político Felipe Nunes, diretor da Quaest Pesquisa e Consultoria, argumentou, arrimado em dados de pesquisa, que os brasileiros vivem em ambientes estanques de informação: ecossistemas constituídos por diferentes órgãos da imprensa escrita, emissoras de rádio e TV e redes sociais que veiculam valores e imagens antagônicas dos problemas brasileiros.


Com os também cientistas políticos Frederico Batista Pereira e Nara Pavão, Nunes observou em artigo publicado há pouco que a capacidade de identificar notícias falsas variava dramaticamente conforme os meios de comunicação que as pessoas por eles entrevistadas seguiam. Telespectadores da TV Record, assinantes do Terça Livre — o blog do notório bolsonarista Allan dos Santos — e do site Brasil Paralelo penavam muito mais do que a média do público para distinguir verdade e mentira, quando expostos a uma e a outra.

Desde sempre, como até as vidraças dos palácios federais estão fartas de saber, Bolsonaro apostou na polarização política assentada em temas propícios à mobilização das emoções. De forma inédita na vida nacional, alojou no centro da disputa política valores familiares, educação dos filhos, liberdade para assumir riscos letais — como na recusa à vacinação — e, muito especialmente, a fé.

A adesão política nunca resulta de frio cálculo: envolve paixões às pencas. Mas o apelo direto e sistemático a sentimentos e valores que infundem sentido à vida privada de cada qual — e supostamente estão ameaçados por inimigos reais ou imaginários —, reforça a tendência humana a rejeitar informações que contrariam crenças arraigadas: eis o ingrediente primeiro da polarização afetiva. Por hostil ao convívio democrático, neutralizá-la é o desafio dos vitoriosos. Talvez mais difícil do que convencer Onoda de que a sua guerra acabara.

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Brasil do 'Cuecão'

 


Golpismo não pode ficar na conta da piada

A cada nova casa avançada pelos que intentam questionar o resultado das eleições, o lugar-comum ouvido entre políticos, juízes, advogados e analistas políticos é:

— Esquece, isso não vai dar em nada.

Mas já deu em muita coisa, e parece haver pouca consciência por parte de todos esses segmentos do grau de radicalização operado pelo bolsonarismo não mais nas franjas da extrema direita, mas em amplos espectros da sociedade.

Há quase um mês, centenas de pessoas estão nas ruas desempenhando um ritual entre bizarro e francamente criminoso, que vai de apelos pueris a extra-terrestres a atentados terroristas contra concessionárias de rodovias.

Com exceção do Judiciário, todos os demais responsáveis por preservar o Estado Democrático de Direito de acordo com a Constituição tocam a bola de lado, ora se omitindo, ora fingindo trabalhar. É o caso da Procuradoria-Geral da República, da aparelhada Polícia Rodoviária Federal e do Congresso, cujos líderes até aqui não deram uma única palavra sobre a escalada golpista em curso.


Além das manifestações antidemocráticas mantidas à custa de incentivos explícitos e velados de Jair Bolsonaro e aliados e de financiamentos escusos, há ações efetivas para tumultuar a transição e tentar instaurar um clima de anormalidade que justifique alguma medida extrema — aliás, a cantilena desfiada pelos pseudodemocratas.

A representação do PL, com argumentos capengas e francamente inventados para dar uma narrativa aos golpistas, é uma dessas iniciativas. Não pode ser tratada na base da piada, do meme ou do “esquece, não vai dar em nada”.

É de extrema gravidade que o partido do presidente da República tente melar as eleições em que obteve seu melhor desempenho, elegeu a maior bancada da Câmara e a maioria de cadeiras em disputa no Senado.

É preciso que Valdemar Costa Neto, os responsáveis pela “auditoria” sem parâmetros técnicos e os ideólogos dessa farsa sejam incluídos no inquérito das fake news, o único instrumento de que a democracia brasileira dispõe no momento para fazer frente a um avanço orquestrado, violento e que conta com entusiastas instalados em instituições de Estado, das Forças Armadas ao Executivo, passando pelos órgãos de controle.

Justamente porque se tornou a última trincheira diante das pretensões golpistas, Alexandre de Moraes está superexposto. Sua coragem de exercer o que diz a Constituição na proteção do Estado Democrático serve de escusa para os demais que deveriam reforçar a defesa dos portões da democracia contra a tentativa de invasão dos bárbaros.

A omissão pode ser personificada na figura de Augusto Aras, mas não só. Os presidentes da Câmara e do Senado, os presidentes dos demais partidos e todos os que foram eleitos pelas urnas, que se tentam sem provas colocar em xeque, têm o dever de se levantar contra a farsa encenada por Costa Neto.

As pessoas próximas a esse habitué dos episódios mais deletérios da política nacional tentam amenizar sua atitude dizendo que ele foi “muito pressionado” por Bolsonaro. Pouco importa. Tanto um quanto o outro têm de responder pela tentativa de melar as eleições.

Nos Estados Unidos, Donald Trump passou a ser investigado por conspiração e insurreição por um comitê do Congresso tanto por tramar o questionamento da lisura das eleições quanto por, ao não combater as manifestações violentas paulatinamente orquestradas, contribuir para os eventos que resultaram nas mortes na invasão do Capitólio. Atualmente, ele recorre à Suprema Corte para tentar evitar um depoimento para o qual foi convocado em outubro.

É preciso que o Judiciário, os congressistas, a imprensa e os juristas brasileiros se debrucem sobre as minúcias desse processo, porque o passo a passo golpista de Trump vem sendo diligentemente seguido por Bolsonaro e seus satélites.

A pergunta que os comandantes militares se negam a responder

E se ao invés de bolsonaristas, os acampados em portas de quartéis fossem militantes do PT, do MST e de movimentos sociais a pedirem um golpe sob a alegação de que houve fraude na reeleição de Jair Bolsonaro? Os militares os acolheriam dizendo que o direito ao protesto é assegurado pela Constituição?

Áreas em torno de quartéis são consideradas de segurança nacional. Em meio a centenas de pessoas sempre pode haver um terrorista prestes a atirar uma bomba ou atentar contra a vida de um soldado ou de um oficial de alta patente. Como prevenir-se de tal risco a não ser proibindo aglomerações nas proximidades?

A resposta à pergunta que os comandantes militares fingem ignorar: eles não permitiriam que militantes de esquerda acampassem em portas de quartéis para pedir um golpe ou simplesmente aplaudi-los. Permitem que os bolsonaristas o façam porque são coniventes com eles e com o candidato deles.


Na terça-feira (15), a juíza federal Jaiza Fraxe determinou que o governo do Amazonas e a União dispersassem o ato que ocorre em frente ao Comando Militar da Amazônia. Caso não o fizessem, haveria multa de R$ 1 milhão, e pelas horas seguintes de atraso, R$ 100 mil por cada hora. A ordem não foi obedecida.

A juíza atendeu a um pedido do Ministério Público Federal que classificou o ato de “antidemocrático” que causa barulho ensurdecedor “prejudicando a saúde de pessoas com deficiências, idosos e crianças que moram na região, e interrompe o direito de ir e vir”. Em outros Estados, pedidos semelhantes não foram feitos.

Os manifestantes, que estão em frente ao Comando Militar da Amazônia desde o dia 2 de novembro, declararam não aceitar o resultado das urnas e defendem um golpe por meio de intervenção militar — uma afronta à Constituição em vigor desde 1988 e à democracia. Crime, portanto, previsto em lei.

A Polícia Rodoviária Federal (PRF) informou que há 25 pontos de bloqueios e de interdições em quatro Estados: Minas Gerais, Mato Grosso, Paraná e Rondônia. O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, mandou no dia 10 que a Polícia Federal e a PRF desobstruam as vias públicas.

Segundo o coordenador geral de comunicação institucional da PRF, Cristiano Vasconcelos da Silva, os bloqueios e interdições atuais apresentam características mais violentas. Ele disse à CNN:

“Antes víamos manifestações, agora são atos criminosos, atos terroristas nas nossas rodovias federais, com queima de pneus, disparo de arma de fogo nos caminhões, tentativa de dinamite, explosão e queima de pontes para impedir o tráfego”.

“Tem caminhoneiros sendo agredidos, com suas cargas sendo jogadas na rodovia, estão jogando óleo nas rodovias federais. Não tem uma pauta específica, eles fazem os bloqueios e quem é contra aquilo sofre agressões”.

Quando a história se repete como um factoide irresponsável

As melhores reportagens políticas sobre momentos decisivos da história muitas vezes estão nos livros e não, necessariamente, nos jornais e revistas da época. É o caso, por exemplo, de Renúncia de Jânio — um depoimento, do jornalista Carlos Castello Branco, que foi referência do jornalismo político para minha geração por suas colunas durante o regime militar, no antigo Jornal do Brasil, apesar da censura prévia imposta pelo Ato Institucional nº 5. O livro mostra como uma intriga envolvendo o presidente da República e o governador carioca Carlos Lacerda, nos bastidores do Palácio do Planalto, deu início à crise política que levou Jânio Quadros à renúncia. Seus desdobramentos resultaram em 20 anos de ditadura.

Outra obra desse naipe é Cinco dias em Londres, de John Lukacs, que narra os bastidores do Gabinete de Guerra britânico, de 24 ao dia 28 de maio de 1940, quando Winston Churchill travou uma dura luta política com o Lorde Halifax para convencer seus integrantes a não fazerem um acordo de paz com Hitler. A resistência de Winston Churchill a um acordo da Inglaterra com a Alemanha evitou um desastre. O livro conta em detalhes a entrega do cargo a Churchill por Neville Chamberlain e revela a desconfiança do governo inglês, do presidente norte-americano Franklin Roosevelt e do próprio povo inglês, além da imprensa e dos aliados em relação a Churchill, homem confiável, íntegro e respeitado, porém alcoólatra e um pouco velho para o desafio da guerra.

Entretanto, a melhor reportagem política já escrita talvez seja o 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx. Publicado em 1852, o texto descreve um golpe de Estado recém-ocorrido na França. Carlos Luís Napoleão Bonaparte, eleito presidente do país em 1848, resolveu impor uma ditadura três anos depois. Essa repetição de Napoleões no poder levou Marx a cunhar uma frase famosa, muito repetida pelos políticos, às vezes sem saber quem é seu verdadeiro autor: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.

O título do livro é inspirado no golpe de estado de Napoleão Bonaparte, em 9 de novembro de 1799, com o qual se tornou cônsul da França, antes de se autoproclamar imperador. No calendário da Revolução Francesa de 1789, essa data correspondia ao dia 18 do mês de brumário. Marx mostra que o golpe dado por Napoleão III era apenas uma cópia daquele que fora dado antes por seu tio. A data escolhida para o golpe foi 2 de dezembro de 1851, aniversário de 47 anos da coroação de seu tio como imperador da França. Nessa obra, Marx conclui que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.


Ontem, o PL, partido do presidente Jair Bolsonaro, entrou no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com um pedido de verificação extraordinária do resultado do segundo turno das eleições. Pediu a invalidação dos votos de mais de 250 mil urnas, com base no relatório elaborado por uma consultoria privada, que alega que as urnas anteriores ao modelo 2020, cerca de 60% do total utilizado nas eleições, têm um número de série único, quando, na opinião da consultoria, deveriam apresentar um número individualizado, porque somente assim, afirma o relatório, seria possível fazer uma auditagem. O presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, de pronto pediu ao PL que aditasse ao requerimento o pedido de invalidação também dos votos do primeiro turno, que utilizaram as mesmas urnas, no prazo de 24 horas.

É óbvio que o pedido do PL faz parte de uma estratégia do presidente Jair Bolsonaro para impedir a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva que incentiva os protestos contra o resultado da eleição e a favor de intervenção militar para se manter no poder. O pedido não tem a menor chance de ser aceito pelo TSE e pelo Supremo Tribunal Federal, apenas cria um factoide político que serve para a agitação golpista de extrema-direita à porta dos quartéis. O relatório é uma farsa montada para tumultuar a transição. Além disso, serve de cortina de fumaça para o estelionato eleitoral praticado pelo atual governo, cujo rombo nas contas públicas está colocando em risco o funcionamento dos serviços básicos da administração federal, da vacinação à emissão de passaportes.

O relatório é uma farsa, como foi o Plano Cohen, um relatório de inteligência segundo o qual os comunistas pretenderiam tomar o poder, incendiar prédios públicos, promover fuzilamentos, greve geral, saques e desordem. O documento circulou pelos quarteis em 1937 e serviu de pretexto para Getúlio Vargas dar um golpe de estado e permanecer no poder. O Plano Cohen foi arquitetado pelo então capitão Olímpio Mourão Filho, organizador das milícias da Ação Integralista Brasileira e lotado no setor de inteligência do Estado-Maior do Exército. No dia 1º de outubro, a Câmara Federal aprovaria, por 138 votos a 52, a implantação do estado de guerra. No dia 10 de novembro, Getúlio anunciaria ao país e ao mundo a instituição do Estado Novo. Só em 1945 os brasileiros saberiam que o Plano Cohen não havia passado de uma grosseira falsificação. Mourão Filho, promovido 
a general, anos mais tarde, deflagraria o golpe militar de 1964.

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Afrontar mitos do mercado é custoso, pois a reação é vender e forçar a elevação de juros

O Brasil é mesmo curioso. O maior faniquito no mercado financeiro com a eleição presidencial de 2022 se deu vários dias após a proclamação do vencedor. Foi quando o presidente eleito questionou “a tal da estabilidade fiscal”, em discurso a parlamentares feito em 10 de novembro.

O abalo sísmico foi grande. E continua sendo com as notícias da tramitação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, que diz muito pouco sobre para onde vamos transitar.

O mercado é assim mesmo. Tratá-lo como se fosse uma instância que emite opiniões políticas é grande equívoco. Ele não tem ideologia, mas cultiva um punhado de convicções, em geral corruptelas de conceitos mais complexos de algum “economista defunto”, como dizia John Maynard Keynes.

O mercado não julga nem pune, apenas faz preço. Tudo o que se discute no mercado deve ser filtrado, mastigado e resumido para uma decisão que é essencialmente binária: comprar ou vender. Não há espaço para nuances, qualificações ou raciocínios sofisticados. O ambiente é o de um jogo de espelhos.

Não se trata de saber o que vai acontecer, mas sim de adivinhar o que os outros pensam que acontecerá. Isso tudo favorece a reprodução de mantras e verdades absolutas, dentre as quais a austeridade fiscal é uma das que mais se destacam pelo seu poder hipnótico.


Cabe ao próximo governo entender as regras e jogar o jogo, para seu próprio benefício. É desnecessário e custoso afrontar os mitos do mercado, porque a reação, típica de manada, é vender títulos e forçar a elevação dos juros, o que atrapalha o crescimento, e vender reais e comprar dólares, o que faz a inflação subir.

Como o próximo governo quer, certamente, a economia em crescimento e preços sob controle, convém moderar a incontinência verbal. Mais que isso, é preciso anunciar algum tipo de regime fiscal cuja regra impeça que o mercado pense que não há limite para gastos. Não é tão difícil.

O mercado, na sua simplicidade dicotômica, é capaz de engolir lorotas, como vem ocorrendo durante toda a gestão do ministro da Economia, Paulo Guedes. Basta contar uma mentira verossímil.

O que não tem sentido é regredirmos décadas no debate econômico e considerarmos mutuamente excludentes a urgência de combater a miséria e a necessidade de uma gestão fiscal responsável. Todos perdemos se formos levados a escolher entre alternativas que são plenamente conciliáveis.

E no mercadinho Brasil...

 


O direito de sonhar

Que tal se delirarmos por um tempinho
Que tal fixarmos nossos olhos mais além da infâmia
Para imaginar outro mundo possível?

O ar estará mais limpo de todo o veneno que
Não provenha dos medos humanos e das humanas paixões.

Nas ruas, os carros serão esmagados pelos cães.
As pessoas não serão dirigidas pelos carros
Nem serão programadas pelo computador.
Nem serão compradas pelos supermercados
Nem serão assistidas pela TV,
A TV deixará de ser o membro mais importante da família,
Será tratada como um ferro de passar roupa
Ou uma máquina de lavar.

Será incorporado aos códigos penais
O crime da estupidez para aqueles que a cometem
Por viver só para ter o que ganhar
Ao invés de viver simplesmente
Como canta o pássaro em saber que canta
E como brinca a criança sem saber que brinca.

Em nenhum país serão presos os jovens
Que se recusem ao serviço militar
Senão aqueles que queiram servi-lo.
Ninguém viverá para trabalhar.
Mas todos trabalharemos para viver.

Os economistas não chamarão mais
De nível de vida o nível de consumo
E nem chamarão a qualidade de vida
A quantidade de coisas.

Os cozinheiros não mais acreditarão
que as lagostas gostam de ser fervidas vivas.
Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos.
Os políticos não acreditarão que os pobres
Se encantam em comer promessas.
A solenidade deixará de acreditar que é uma virtude,
E ninguém, ninguém levará a sério alguém que não seja capaz de rir de si mesmo.

A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes
E nem por falecimento e nem por fortuna
Se tornará o canalha em virtuoso cavalheiro.

A comida não será uma mercadoria
Nem a comunicação um negócio
Porque a comida e a comunicação são direitos humanos.
Ninguém morrerá de fome
Porque ninguém morrerá de indigestão.

As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo
Porque não existirão crianças de rua.
As crianças ricas não serão como se fossem dinheiro
Porque não haverá crianças ricas.

A educação não será privilégio daqueles que podem pagá-la
E a polícia não será a maldição daqueles que podem comprá-la.

A justiça e a liberdade, irmãs siamesas
Condenadas a viver separadas
Voltarão a juntar-se, bem agarradinhas,
Costas com costas.

Na Argentina, as loucas da Plaza de Mayo
Serão um exemplo de saúde mental
Porque elas se negaram a esquecer
Os tempos da amnésia obrigatória.

A Santa Madre Igreja corrigirá
Algumas erratas das Tábuas de Moisés,
E o sexto mandamento mandará festejar o corpo.
A Igreja ditará outro mandamento que Deus havia esquecido:
“Amarás a natureza, da qual fazes parte”.

Serão reflorestados os desertos do mundo
E os desertos da alma
Os desesperados serão esperados
E os perdidos serão encontrados
Porque eles são os que se desesperaram por muito esperar
E eles se perderam por tanto buscar.

Seremos compatriotas e contemporâneos
De todos o que tenham
A vontade de beleza e vontade de justiça
Tenham nascido quando tenham nascido
Tenham vivido onde tenham vivido
Sem importarem nem um pouquinho
As fronteiras do mapa e do tempo.

Seremos imperfeitos
Porque a perfeição continuará sendo o aborrecido privilégios dos deuses
Mas neste mundo, trapalhão e fodido,
Seremos capazes
De viver cada dia como se fosse o primeiro
E cada noite como se fosse a última.

Eduardo Galeano

Temos tudo?

O mundo com vários abcessos prestes a rebentar. Ainda há pouco exultávamos de esperança, e já ninguém tem paz na alma. É que não há mais tempo de duração. Todas as nossas horas são ofegantes, e cadentes as estrelas anunciadas e anunciadoras. Temos tudo, e falta-nos o essencial. É como se de repente a vida ficasse do avesso e a não soubéssemos vestir
Miguel Torga, "Diário XVI"

Os dias já foram piores, mas ainda estão assim. Até quando?

“O governo não pode ser só do Partido dos Trabalhadores, temos que ter governo com mais gente da sociedade, com mais gente de outros partidos, com mais gente que não tem nenhum partido”, disse Lula a uma plateia de apoiadores em auditório no Instituto Universitário de Lisboa, na semana passada.


“Pertence à história do nosso país. A bandeira é nossa, a bandeira é de todos”, disse Lula ao comemorar no sábado (19) o Dia da Bandeira. “Sabemos que temos que ter responsabilidade. Não gastar mais do que ganha. Mas eu também sei que temos que cuidar do povo mais pobre”, havia dito Lula em dias anteriores.

E em mais um aceno aos brasileiros que lhe negaram o voto para que se elegesse, afirmou: “Não queremos perseguição, violência, queremos um país em paz. Queremos muito pouco, apenas o que é essencial, o que está na Bíblia, na nossa Constituição, na declaração universal dos direitos humanos”.

Em meio às falas pacificadoras do presidente eleito, o general da reserva Braga Netto, candidato a vice na chapa derrotada de Bolsonaro, deixou em polvorosa os bolsonaristas mais fanáticos que não se conformam com o resultado das eleições. Na sexta-feira (18), à saída do Palácio do Alvorado, ele ouviu de uma mulher:

“A gente está na chuva, no sufoco”.

E respondeu:

“Eu sei, senhora. Tem que dar um tempo, está bom? Vocês não percam a fé, é só o que eu posso falar para vocês agora”.


Não percam a fé em quê? Por que é só isso o que ele pode dizer agora? Em mensagem de áudio enviada a amigos, o ministro Augusto Nardes, do Tribunal de Contas da União, peça importante no processo que culminou com a cassação do mandato da presidente Dilma, deu voz ao que corre nas franjas do meio militar:

“Está acontecendo um movimento muito forte nas casernas. É questão de horas, dias, uma semana. Vamos perder alguma coisa, mas o futuro da nação pode se desencadear de forma positiva, apesar deste conflito que deveremos ter nos próximos dias”.

Fato ou fake? Algo se trama para tentar impedir a posse de Lula ou tudo não passa de boatos devidamente espalhados para manter os bolsonaristas em pé de guerra, e o futuro governo sob pressão? A Polícia Rodoviária Federal informa num dia que os bloqueios às estradas diminuíram, e, no outro, que voltaram a aumentar.

Em vídeo, o general André Luiz Ribeiro Campos Allão, comandante da 10ª Região Militar do Exército, em Fortaleza, explicou à tropa as providências que tomou em favor dos manifestantes que se mantêm à frente do quartel com reivindicações golpistas:

“Toda manifestação ordeira e pacífica ela é justa, não interessa o que ela pede. Ela é justa”.

O general está rigorosamente em linha com o pronunciamento recente dos Comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, que com palavras parecidas disseram a mesma coisa. Campos Allão ainda acrescentou num rasgo de filosofia barata:

“O mal vai ser vencido com o bem, o mal não é vencido com o mal. Assim tenho atuado”.

Caso não se arrependa do que anunciou nas redes sociais, o ex-mensaleiro do PT, Valdemar Costa Neto, presidente do PL, partido que no momento abriga Bolsonaro, pedirá amanhã ao Tribunal Superior Eleitoral que votos depositados em urnas antigas no segundo turno das recentes eleições sejam desconsiderados.

Costa Neto, segundo ele mesmo, não defende a realização de uma nova eleição, nada disso. O que pretende é que com a anulação dos votos depositados em urnas antigas reverta-se a vitória de Lula. Apenas isso. Tem provas de irregularidades? Nenhuma. Mas, e daí? Não custa pedir para acirrar os ânimos dos baderneiros.

Os dias já foram piores, mas ainda estão assim. Até quando?