domingo, 21 de junho de 2020

Lições de uma tragédia

O Brasil ultrapassou a desoladora marca dos 50 mil mortos por covid-19. Em todas as regiões do País, choram dezenas de milhares de pais, mães, filhos, avôs, avós, netos e amigos que perderam gente amada e nem sequer puderam confortar uns aos outros com um simples abraço. A subtração repentina dos ritos funerários, fundamentais para a construção de um sentido para a morte, é uma faceta particularmente cruel dessa doença, tanto mais perversa porque a esmagadora maioria das vítimas passou suas últimas horas de vida sem o acalento de seus familiares. Por empatia ou compaixão, milhões de brasileiros que tiveram a sorte de não perder um ente querido para o novo coronavírus tampouco vivem dias de paz. A maior tragédia nacional em mais de um século fez do luto uma experiência coletiva e impessoal. Hoje, o Brasil é um país triste.


Mas, por mais severas que sejam, quase todas as perdas ocasionadas pela pandemia poderão ser superadas mais cedo ou mais tarde, com maior ou menor grau de dificuldade. As eventuais transformações da sociedade na direção do que se convencionou chamar de “novo normal”, que tanto tem ocupado filósofos, psicólogos, sociólogos e economistas no momento, serão assimiladas no tempo adequado para cada indivíduo. Empresas quebradas poderão, eventualmente, ser reerguidas. Outras tantas serão criadas pelas necessidades impostas por um evento dessa magnitude. Em breve, aviões voltarão a riscar os céus no mundo inteiro. Empregos serão recuperados. Aulas serão retomadas. O comércio já está em franco processo de reabertura, em que pese a impertinência, para dizer o mínimo, de uma medida como essa no atual estágio da pandemia no País. Mas nada haverá de apagar da memória nacional o fato de que, em apenas três meses de 2020, mais de 50 mil brasileiros morreram em decorrência da covid-19, centenas deles profissionais da área de saúde que atuavam na linha de frente do combate a essa nova e perigosa ameaça sanitária com a bravura e dedicação que os distinguem. De uma hora para outra, mais de 50 mil histórias de vida se tornaram impossibilidades antes que fosse possível assimilar em toda a sua inteireza o que uma tragédia como essa representará para o País no futuro.

Para quem sofre a dor da perda de um familiar, não há diferença essencial entre uma morte e mais de 50 mil. No entanto, o triste marco haverá de nos servir, aumentando a coesão da Nação, caso tiremos as lições corretas dessa tragédia e as transformemos em ação política concreta. Do contrário, restarão apenas o assombro, a dor e a indignação.

A sociedade deve aumentar significativamente o grau de exigência na escolha de seus governantes. Há bons e maus exemplos de políticas públicas adotadas pelas três esferas de governo durante a pandemia, mas houve aqueles que se revelaram líderes indignos da designação, aquém da altura de suas responsabilidades na condução de seus governados nesta hora grave, a começar pelo presidente da República. Jair Bolsonaro entrará para a história como o presidente que desdenhou da gravidade da pandemia, fez pouco-caso das aflições dos brasileiros e apequenou o Ministério da Saúde no curso de uma emergência sanitária.

É certo que a pandemia atingiu todos os brasileiros, mas uns foram muito mais afetados do que outros. Passa da hora de a Nação olhar para seus milhões de desvalidos e lutar para reduzir a brutal concentração de renda que há séculos obsta o desenvolvimento humano no País.

Por fim, mas não menos importante, é preciso cuidar melhor do Sistema Único de Saúde (SUS). Não fosse o SUS, o País estaria pranteando não 50 mil, mas um número incalculável de mortos. O SUS é um avanço civilizatório que tirou a saúde da lógica de mercado ou do mero assistencialismo e a alçou à categoria de direito universal. A pandemia só evidenciou sua importância, como se isto fosse necessário, e a necessidade de mais investimentos.

A melhor forma de honrar a memória dos mais de 50 mil mortos em decorrência da covid-19 é transformar o Brasil em um país menos desigual e mais fraterno. Em suma, um lugar melhor para viver.

'Tamo junto', Brasil!


Pensando o impensável

Um momento histórico que eu gostaria de ter presenciado aconteceu no dia 1.º de novembro de 1944: um breve encontro entre o ministro da Justiça, Marcondes Filho, e o general Eurico Dutra. O relato está no ótimo livro de Paulo Brandi "Vargas: da Vida para a História" (Zahar, 1985, pág. 178).

Desde a entrada do Brasil na guerra contra o fascismo, Getúlio pressentia que não conseguiria manter sua ditadura. Em 1943, o Manifesto dos Mineiros desafiou a censura e escancarou o debate sobre a redemocratização. A presença da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália, com apoio dos Estados Unidos, apontava para um ponto sem retorno. Nos meses seguintes, a pressão contra Getúlio alastrou-se rapidamente nas Forças Armadas. No final de outubro os generais Góes Monteiro e Eurico Dutra procuraram-no para insistirem na convocação de eleições. Getúlio aquiescia sem aquiescer. Cogitava de transitar para um regime híbrido, cujo comando permanecesse em suas mãos. Foi nessa altura que se deu o encontro de Marcondes Filho com o general Eurico Dutra.

O ministro havia rascunhado um projeto de lei eleitoral de teor corporativista, ou seja, baseado na representação por categorias profissionais, formato característico da tradição fascista. Foi quando, respondendo a Marcondes Filho, Eurico Dutra disse-lhe, curto e grosso: “Não é isso, não, dr. Marcondes, é eleição mesmo”.


O referido momento parece-me assinalar com clareza a opção das Forças Armadas por uma identidade propriamente de Estado, impessoal, baseada na hierarquia e na disciplina, com a consequente rejeição do modelo de uma guarda pretoriana, ou seja, de uma milícia a serviço de um caudilho qualquer.

Mas tal modelo não era isento de problemas. Nos anos 30, sob a decisiva influência do general Góes Monteiro, ganhou corpo o modelo de uma organização tutelar, destinada não somente à defesa externa do País, mas legitimada para também atuar no plano interno.

Os apontamentos acima ajudam a compreender o artigo 142 da Constituição de 1988, que alguns juristas chegam a interpretar até mesmo como uma autorização para as Forças Armadas atuarem como um Poder Moderador, dirimindo impasses entre os três Poderes. Não chego a tanto, mas, de certa forma, vou além, pois, no trecho a seguir, tal artigo me parece virtualmente ininterpretável: “(as Forças Armadas) destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. O trecho grifado admite a esdrúxula hipótese de as Forças Armadas – no tocante à manutenção da lei e da ordem no plano interno – serem convocadas por dois ou até pelos três Poderes ao mesmo tempo. Considerando, entretanto, que o Supremo Tribunal Federal (STF) é o guardião da Constituição, instância última, portanto, da legitimidade política, cabe a ele esclarecer quando e em que termos as Forças podem ser convocadas – uma rima que em nada melhora o soneto.

A questão acima suscitada parece-me assumir contornos graves no presente momento, visto que agora não se trata de um imbróglio constitucional em abstrato, mas de uma conjuntura que muitos têm descrito como uma “tempestade perfeita”: em meio a uma terrível epidemia e a uma crise econômica sem precedentes, temos tido frequentes atritos entre os Poderes e um presidente da República pouco propenso a observar os limites e a liturgia do cargo que ocupa. Como se não bastasse, as Forças Armadas assumiram uma presença excessiva no Executivo, emprestando-lhe, por conseguinte, uma legitimidade que cedo ou tarde reduzirá a estima em que são tidas pela sociedade brasileira.

Acrescente-se que o protagonismo apaziguador do Legislativo esbarra em severos limites no presente momento, uma vez que a composição do Congresso Nacional ainda deixa a desejar, não obstante as reformas que se tem tentado fazer.

Por último, mas não menos importante, é preciso levar em conta o clima de radicalização, acentuado a partir das eleições de 2018, e os frequentes apelos que certos setores têm feito no sentido não só de tumultuar, mas efetivamente de solapar o regime democrático, exigindo alguma forma de intervenção militar. Um ponto fundamental que tais setores não parecem compreender é que o Brasil de 2020 é muito diferente do de 1964. Naquele ano, bastou às Forças Armadas prender umas poucas centenas de pessoas para assumirem o controle do País. Hoje a população brasileira é muito maior, está concentrada em grandes cidades e é muito mais diversificada, politizada e atenta. Mercê dos meios eletrônicos de comunicação, consegue se mobilizar com extrema facilidade. Tais mudanças não necessariamente conferem vantagem a algum dos grupos que se digladiem num hipotético confronto, até porque o resultado mais provável de qualquer ruptura da ordem parece-me ser um prolongado período de anarquia, ao fim da qual tudo estará mais ou menos na mesma, só que muito pior.

Avôs, filhos e netos

Perguntei a meu neto de 24 anos o que ele contará ao neto dele sobre o que foi viver, e sobreviver à pandemia. Por pior que seja, é antes de tudo uma história extraordinária, maior e mais surpreendente do que qualquer ficção, cheia de emoção, heroísmo, mortes em massa, bandidos que roubam respiradores de moribundos, guerra do Executivo contra o Legislativo e o Judiciário, milícias digitais manipulando notícias e um presidente da Republica ensandecido, irresponsável e incontrolável. Certamente meu tataraneto vai achar que o avô dele está exagerando, aumentando, ou até mentindo só para diverti-lo, como muitas vezes fiz com meus netos.


Depois conversamos sobre golpes, porque vi vários, e ele, futuro advogado, está preocupado com as ameaças do Bozo, e pediu que eu escrevesse sobre o que falamos: o Brasil, irônica e tragicamente, está começando a viver um “chavismo de direita”, unindo a pior parte da direita e a pior do chavismo. Por que arriscar a aventura de um autogolpe, que a maioria do Exército não apoia, e 70% da população são contra? O melhor é o “golpe gradual” inventado por Chávez, tudo na lei, usando a democracia para corroê-la por dentro, militarizando o governo, e dominando o Congresso porque a oposição burra não quis concorrer.

Chávez odiava a imprensa, e com a ajuda da Suprema Corte e dos tribunais, já cheios de juízes terrivelmente chavistas, foi fechando jornais e redes de televisão independentes, até a maior delas, a RCTV, e só restaram emissoras chavistas, cevadas por verbas públicas. É como se Bolsonaro fechasse a TV Globo.

Coronel do Exército, Chávez adorava armas e acreditava nelas como o melhor argumento, criou e armou milícias populares “para defender a pátria do Império”, aparelhou toda a administração e os serviços de inteligência, ninguém ousava contestá-lo. Qualquer opinião contrária virou traição.

É o sonho em progresso de Bolsonaro, só que Chávez, embora meio amalucado, era muito inteligente. E não tinha filhos. Nem era amigo do Queiroz.

Dizer Não

Diz NÃO à liberdade que te oferecem, se ela é só a liberdade dos que ta querem oferecer. Porque a liberdade que é tua não passa pelo decreto arbitrário dos outros.

Diz NÃO à ordem das ruas, se ela é só a ordem do terror. Porque ela tem de nascer de ti, da paz da tua consciência, e não há ordem mais perfeita do que a ordem dos cemitérios.

Diz NÃO à cultura com que queiram promover-te, se a cultura for apenas um prolongamento da polícia. Porque a cultura não tem que ver com a ordem policial mas com a inteira liberdade de ti, não é um modo de se descer mas de se subir, não é um luxo de «elitismo», mas um modo de seres humano em toda a tua plenitude.

Diz NÃO até ao pão com que pretendem alimentar-te, se tiveres de pagá-lo com a renúncia de ti mesmo. Porque não há uma só forma de to negarem negando-to, mas infligindo-te como preço a tua humilhação.

Diz NÃO à justiça com que queiram redimir-te, se ela é apenas um modo de se redimir o redentor. Porque ela não passa nunca por um código, antes de passar pela certeza do que tu sabes ser justo.

Diz NÃO à verdade que te pregam, se ela é a mentira com que te ilude o pregador. Porque a verdade tem a face do Sol e não há noite nenhuma que prevaleça enfim contra ela.

Diz NÃO à unidade que te impõem, se ela é apenas essa imposição. Porque a unidade é apenas a necessidade irreprimível de nos reconhecermos irmãos.

Diz NÃO a todo o partido que te queiram pregar, se ele é apenas a promoção de uma ordem de rebanho. Porque sermos todos irmãos não é ordenanmo-nos em gado sob o comando de um pastor.

Diz NÃO ao ódio e à violência com que te queiram legitimar uma luta fratricida. Porque a justiça há-de nascer de uma consciência iluminada para a verdade e o amor, e o que se semeia no ódio é ódio até ao fim e só dá frutos de sangue.

Diz NÃO mesmo à igualdade, se ela é apenas um modo de te nivelarem pelo mais baixo e não pelo mais alto que existe também em ti. Porque ser igual na miséria e em toda a espécie de degradação não é ser promovido a homem mas despromovido a animal.

E é do NÃO ao que te limita e degrada que tu hás-de construir o SIM da tua dignidade.

Vergílio Ferreira, "Conta-Corrente"

Amanhã há de ser outro dia

Por quanto tempo teremos que lidar com o acaso em nossas vidas? Infelizmente, o Brasil se colocou acima do bem e do mal enquanto o mundo se mobilizava para controlar a pandemia. Era evidente que esse maldito vírus não tardaria a se espalhar entre nós. E o nosso presidente tem muita responsabilidade sobre isso.

Hoje ocupamos o segundo lugar — depois dos EUA — entre os países com o maior número de óbitos. Apesar de a contaminação ter se dado em todas as classes sociais, foram as camadas mais pobres da população que o vírus mais afetou. Principalmente, nas aglomerações urbanas informais com moradias precárias e sem infraestrutura.

As incertezas continuam aumentando a cada dia. Que futuro nos espera depois dessa pandemia? Se nada for feito teremos uma recessão jamais vista. Os Estados Unidos destinaram cerca de quatro trilhões de dólares para ativar sua economia e mais dois trilhões para as necessidades da área de saúde e da população desassistida. O Brasil disponibilizou apenas 40% dos 400 bilhões de reais destinados para esse fim.


Infelizmente, boa parte desses recursos foi surrupiada em negociações fraudulentas com a conivência de políticos e empresários. Houve, também, desperdício de dinheiro público. Um exemplo é o que está sendo gasto na produção em larga escala de cloroquina pelo Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército, por determinação do presidente.

Por essas e outras notícias precisamos defender e valorizar o papel desempenhado pela mídia tradicional nas democracias. Não dá para confiar — como muitos confiam — nas redes sociais que manipulam a opinião pública com falsas verdades para atacar os adversários do governo.

Ao invés de dar armas ao povo para defendê-lo, o presidente deveria estar mais preocupado em armar a população com educação, saúde e ciência, como disse o ministro do STF Luís Roberto Barroso. A ignorância e a truculência não podem ser balizadoras do futuro desta nação.

Quanto mais a crise na saúde se agrava, mais o modelo econômico atual mostra a sua fragilidade. Muitos conceitos dogmáticos da economia neoliberal se mostraram ineficientes ou superados. O momento é oportuno para o Estado retomar o discurso social, descartando os populismos de ocasião. Aspectos relevantes da política do bem-estar social precisam ser recuperados em nome da justiça social.

Por outro lado, as cidades não podem continuar atreladas ao paradigma da urbanização predatória. Seja no contexto urbano formal ou na informalidade. O tão incensado pragmatismo de resultados imediatos já mostrou sua ineficácia em várias operações urbanas malogradas.

Além da necessidade de políticas sociais abrangentes, o planejamento urbano como política de Estado se mostra capaz de reverter a situação caótica em que se encontram as nossas cidades. Conhecer, avaliar e propor soluções de curto, médio e longo prazo continua sendo o caminho mais consistente para enfrentar os complexos desafios urbanos.

Ambiências urbanas renovadas são indispensáveis para valorizar o espaço público e elevar a autoestima da população. A proximidade entre o poder público e as representações de moradores facilitará a formulação de projetos para atender às necessidades de cada localidade e às expectativas do conjunto da sociedade.

Com as eleições municipais se aproximando, seria de bom tom deixar de lado as idiossincrasias ideológicas que estimularam o voto útil nas eleições passadas, e escolher candidatos que tenham um compromisso irrefutável com a democracia. Não dá pra conviver com o obscurantismo de governos com perfil teocrático ou autocrático.

Precisamos de governantes que saibam, de fato, conduzir a gestão da cidade. Quem vive no Rio percebe o quanto um governo omisso pode ser desastroso. Cidades mais justas e com melhor qualidade de vida é o que a sociedade espera dos governantes.

Temos que ser propositivos para romper com o estigma da exclusão social. Não há tempo a perder diante da perspectiva de amanhã vir a ser outro dia.