quinta-feira, 29 de maio de 2025
Tempo, tempo, tempo
No nosso tempo, ainda vemos muita discórdia, muitas feridas causadas pelo ódio, pela violência, pelo preconceito, pelo medo da diferença e por um paradigma econômico que explora os recursos da Terra e marginaliza os mais pobres.
Papa Leão XIV
Gaza: 600 dias de horror que o mundo não quis ver
Robert Fisk desabafava várias vezes, em entrevista, sobre a resistência das televisões e da imprensa internacional em mostrar as mais horríveis imagens que os jornalistas de guerra testemunhavam no terreno. Uma espécie de saneamento da desgraça, que poupa o leitor ou telespectador do choque, mas sacrifica a verdade sobre a tragédia que está a ser noticiada. Os editores das maiores agências de notícias internacionais lamentavam-se sobre a “pornografia do horror” para justificar o bloqueio dessas imagens e exigiam aos jornalistas que as tentavam publicar mais “respeito pelos mortos”. Fisk indignava-se contra a hipocrisia destas pessoas, que exigiam maior respeito pelas vítimas agora em pedaços do que quando ainda estavam vivas. Um dos maiores repórteres de guerra do pós-Segunda Guerra Mundial, que foi testemunha direta dos cenários mais sombrios do Médio Oriente, defendia, com os dentes trancados de indignação, que estas provas visuais violentas não se tratam de um fetiche pelo choque, mas de um dever de máxima exigência ética. Certas consciências adormecidas só acordam com um banho gelado de realidade.
Em Gaza, os 600 dias de massacre prolongado da população civil palestiniana não se fizeram apenas com bombas, doença e fome, mas também com ausência. Ausência de imagens. A tentação confortável de filtrar este horror diário, de poupar o espectador à visão de pesadelo de corpos mutilados espalhados pelas ruas, de hospitais em colapso onde as amputações se fazem sem anestesia, do choro das mães que já não têm leite para os filhos, do desespero e raiva de um pai que carrega ao colo um pequeno pedaço de carne, resto humano do que sobrou de uma filha que já não pode ser tudo.
Há quase dois anos que Israel bloqueia, quase sem exceção, a entrada da imprensa internacional independente no terreno. O mundo empurra assim a responsabilidade de contar o que se passa em Gaza para os próprios palestinianos e os seus telemóveis. Por lá, jornalistas, médicos, youtubers, cidadãos anónimos insistem em mostrar tudo, em partilhar tudo. Não querem que o mundo respeite os seus mortos desviando o olhar, mas que encare, sem filtro, a dimensão inimaginável do seu sacrifício. Um grande amigo, estudioso apaixonado por toda a história da Segunda Guerra Mundial, lembrava-me da advertência de Eisenhower ao visitar os campos de concentração nazis: “Registem tudo — filmem, recolham testemunhos — porque, algures no caminho da História, algum canalha vai levantar-se para dizer que isto nunca aconteceu.”
De acordo com dados do Committee to Protect Journalists (CPJ), desde o início do conflito até 21 de maio deste ano, morreram pelo menos 180 jornalistas e trabalhadores ligados à comunicação social em Gaza, dos quais 172 eram palestinianos. Em redes sociais de cerco menos apertado, como o X e o TikTok, os seus vídeos aparecem-nos na timeline como socos que vão direitos ao estômago. São imagens que desafiam qualquer pudor ou racionalidade, que não procuram neutralidade, que manifestam o desespero absoluto por empatia deste lado do ecrã. Agarram-nos o queixo à força com as mãos e fitam-nos nos olhos com uma verdade tão inimaginável e cruel que ninguém se atreve a esquecer.
Desde outubro de 2023 que vejo diariamente esses vídeos. Estes velhos e novos repórteres palestinianos gravam com a urgência de quem sabe que a sua única arma eficaz contra um dos mais poderosos exércitos do mundo é o testemunho sem cortes da sua realidade. E gravam a mão de criança que já não mexe por entre os escombros, registam os pedaços de corpos pendurados, que enfeitam com horror a fachada do prédio despejado à força pela fúria acéfala de mais uma bomba. Devo-lhes, pelo menos, a partilha, e faço-o até que o aviso da máquina a bloqueie. Prefiro tentar dormir com o terror dessas imagens na cabeça do que carregar, para o resto da vida, o peso na consciência de não as ter mostrado. Este horror visual pode ser insuportável, mas pelo menos não é cúmplice na indiferença. A um povo a quem já foi tirado quase tudo, que não se lhes roube a mensagem que nos querem passar. O suplício aflito para que os vejam.
Se quase sempre são criticadas pelo seu lado pernicioso para os nossos filhos, a verdade é que, neste contexto, as redes sociais tiveram um papel decisivo. Foi através delas que jovens de todo o mundo puderam testemunhar, muitas vezes em direto, o que muitos canais tradicionais e entidades de responsabilidade acrescida hesitavam em querer ver, quanto mais mostrar. Foi por ali que rebentou a comporta que insistia, teimosa, em travar a indignação das pessoas. O primeiro grito ouviu-se nas ruas, depois nas universidades e agora, por fim, em alguns corredores do poder. O silêncio tornou-se indesculpável e, aqueles que negaram as evidências durante demasiado tempo, forçam agora sorrisos enrascados para ficar bem na fotografia deste momento de maior vergonha da nossa história recente.
Por muito que os mais velhos, os que ainda mandam, não quisessem ver, juristas internacionais, a Amnistia Internacional, a Human Rights Watch, multiplos relatores das Nações Unidas, grandes académicos do Holocausto, entre outros, já não se coíbem de afirmar que o que se passa em Gaza é a destruição sistemática de um povo, é limpeza étnica, é genocídio. Um dos mais prestigiados jornais neerlandeses, o NRC, publicou, a 14 de maio, uma reportagem onde analisava vários artigos académicos recentes do Journal of Genocide Research — a principal revista científica da área — concluindo que todos os oito académicos internacionais especializados em genocídio, que participaram nesses artigos, incluindo o editor-chefe da publicação, reconhecem em Gaza um genocídio, ou pelo menos, violência genocida. Também nessa reportagem, a presidente da International Association of Genocide Scholars, Melanie O’Brien, afirmou que o bloqueio deliberado de comida, água, abrigo e saneamento por parte de Israel constitui genocídio. O Tribunal Internacional de Justiça, há mais de um ano, alertou para a possibilidade plausível do que hoje já não se diz apenas entredentes, obrigando Israel a tomar medidas para o evitar e permitir o acesso de ajuda humanitária. Mais recentemente, o Tribunal Penal Internacional emitiu pedidos de mandados de captura para líderes de ambos os lados do conflito, por suspeita de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Em ambos os casos, Israel ignorou as decisões, por não reconhecer autoridade a nenhum destes tribunais. E hoje, na Europa, ainda que com cautela, começamos finalmente a ouvir líderes europeus prometer consequências para o atual governo israelita.
Neste ponto, importa ser ainda mais rigoroso. A condenação pelos crimes de guerra sistemáticos cometidos não é um ataque ao povo de Israel, nem pode ser uma generalização xenófoba e abusiva. O que se aponta, e deve ser apontado, são as ações concretas de um governo e de uma máquina militar, sobejamente documentadas até pelos próprios soldados no terreno, que, como disse anteriormente, já são objeto de processos judiciais em tribunais internacionais. Da mesma forma que todos os palestinianos não são terroristas do Hamas, o sofrimento em Gaza não pode continuar a ser abafado pela confusão deliberada entre a crítica justa e urgente a um Estado e o preconceito contra um povo. A dignidade de todas as vítimas, de ambos os lados, exige essa clareza.
Os números já não nos cabem na compreensão. Depois de 7 de outubro de 2023, em que cerca de 1200 pessoas foram mortas pelo Hamas, o horror ganhou uma nova dimensão impensável do outro lado do muro, com mais de 53 mil palestinianos assassinados, dos quais 17 mil são crianças, dezenas de milhares de feridos, milhares de novos amputados, cerca de meio milhão de pessoas à beira da fome extrema, a quase totalidade de hospitais e escolas destruídos (94% dos hospitais foram danificados ou destruídos, de acordo com a Organização Mundial da Saúde), a ajuda humanitária bloqueada, saqueada, outras vezes bombardeada. Quase 300 funcionários da ONU mortos e dezenas de outros detidos ou impedidos de entrar na Faixa de Gaza, de acordo com os mais recentes UNRWA Situation Reports, em consequência da aprovação, pela Knesset, de leis que bloqueiam o acesso de novos elementos da equipa internacional desta agência das Nações Unidas. Sem estas imagens, a devastação seria apenas uma abstração estatística. Com elas, a realidade ganha osso, ganha carne, ganha rosto.
Fisk, que faleceu em 2020, dizia com aquele peso nas palavras de quem já testemunhou mais do que se deveria poder aguentar, que, se as pessoas vissem o que ele viu, nunca mais apoiariam uma guerra na vida. Nunca sentiremos verdadeiramente a dor dos outros, mas temos a obrigação humanista de partilhar, pelo menos, o seu pedido de ajuda. A imprensa tem o dever de mostrar tudo, por mais violento e difícil que seja. Não servirá para alimentar o horror, mas para que este nunca mais se torne invisível.
Em Gaza, os 600 dias de massacre prolongado da população civil palestiniana não se fizeram apenas com bombas, doença e fome, mas também com ausência. Ausência de imagens. A tentação confortável de filtrar este horror diário, de poupar o espectador à visão de pesadelo de corpos mutilados espalhados pelas ruas, de hospitais em colapso onde as amputações se fazem sem anestesia, do choro das mães que já não têm leite para os filhos, do desespero e raiva de um pai que carrega ao colo um pequeno pedaço de carne, resto humano do que sobrou de uma filha que já não pode ser tudo.
Há quase dois anos que Israel bloqueia, quase sem exceção, a entrada da imprensa internacional independente no terreno. O mundo empurra assim a responsabilidade de contar o que se passa em Gaza para os próprios palestinianos e os seus telemóveis. Por lá, jornalistas, médicos, youtubers, cidadãos anónimos insistem em mostrar tudo, em partilhar tudo. Não querem que o mundo respeite os seus mortos desviando o olhar, mas que encare, sem filtro, a dimensão inimaginável do seu sacrifício. Um grande amigo, estudioso apaixonado por toda a história da Segunda Guerra Mundial, lembrava-me da advertência de Eisenhower ao visitar os campos de concentração nazis: “Registem tudo — filmem, recolham testemunhos — porque, algures no caminho da História, algum canalha vai levantar-se para dizer que isto nunca aconteceu.”
De acordo com dados do Committee to Protect Journalists (CPJ), desde o início do conflito até 21 de maio deste ano, morreram pelo menos 180 jornalistas e trabalhadores ligados à comunicação social em Gaza, dos quais 172 eram palestinianos. Em redes sociais de cerco menos apertado, como o X e o TikTok, os seus vídeos aparecem-nos na timeline como socos que vão direitos ao estômago. São imagens que desafiam qualquer pudor ou racionalidade, que não procuram neutralidade, que manifestam o desespero absoluto por empatia deste lado do ecrã. Agarram-nos o queixo à força com as mãos e fitam-nos nos olhos com uma verdade tão inimaginável e cruel que ninguém se atreve a esquecer.
Desde outubro de 2023 que vejo diariamente esses vídeos. Estes velhos e novos repórteres palestinianos gravam com a urgência de quem sabe que a sua única arma eficaz contra um dos mais poderosos exércitos do mundo é o testemunho sem cortes da sua realidade. E gravam a mão de criança que já não mexe por entre os escombros, registam os pedaços de corpos pendurados, que enfeitam com horror a fachada do prédio despejado à força pela fúria acéfala de mais uma bomba. Devo-lhes, pelo menos, a partilha, e faço-o até que o aviso da máquina a bloqueie. Prefiro tentar dormir com o terror dessas imagens na cabeça do que carregar, para o resto da vida, o peso na consciência de não as ter mostrado. Este horror visual pode ser insuportável, mas pelo menos não é cúmplice na indiferença. A um povo a quem já foi tirado quase tudo, que não se lhes roube a mensagem que nos querem passar. O suplício aflito para que os vejam.
Se quase sempre são criticadas pelo seu lado pernicioso para os nossos filhos, a verdade é que, neste contexto, as redes sociais tiveram um papel decisivo. Foi através delas que jovens de todo o mundo puderam testemunhar, muitas vezes em direto, o que muitos canais tradicionais e entidades de responsabilidade acrescida hesitavam em querer ver, quanto mais mostrar. Foi por ali que rebentou a comporta que insistia, teimosa, em travar a indignação das pessoas. O primeiro grito ouviu-se nas ruas, depois nas universidades e agora, por fim, em alguns corredores do poder. O silêncio tornou-se indesculpável e, aqueles que negaram as evidências durante demasiado tempo, forçam agora sorrisos enrascados para ficar bem na fotografia deste momento de maior vergonha da nossa história recente.
Por muito que os mais velhos, os que ainda mandam, não quisessem ver, juristas internacionais, a Amnistia Internacional, a Human Rights Watch, multiplos relatores das Nações Unidas, grandes académicos do Holocausto, entre outros, já não se coíbem de afirmar que o que se passa em Gaza é a destruição sistemática de um povo, é limpeza étnica, é genocídio. Um dos mais prestigiados jornais neerlandeses, o NRC, publicou, a 14 de maio, uma reportagem onde analisava vários artigos académicos recentes do Journal of Genocide Research — a principal revista científica da área — concluindo que todos os oito académicos internacionais especializados em genocídio, que participaram nesses artigos, incluindo o editor-chefe da publicação, reconhecem em Gaza um genocídio, ou pelo menos, violência genocida. Também nessa reportagem, a presidente da International Association of Genocide Scholars, Melanie O’Brien, afirmou que o bloqueio deliberado de comida, água, abrigo e saneamento por parte de Israel constitui genocídio. O Tribunal Internacional de Justiça, há mais de um ano, alertou para a possibilidade plausível do que hoje já não se diz apenas entredentes, obrigando Israel a tomar medidas para o evitar e permitir o acesso de ajuda humanitária. Mais recentemente, o Tribunal Penal Internacional emitiu pedidos de mandados de captura para líderes de ambos os lados do conflito, por suspeita de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Em ambos os casos, Israel ignorou as decisões, por não reconhecer autoridade a nenhum destes tribunais. E hoje, na Europa, ainda que com cautela, começamos finalmente a ouvir líderes europeus prometer consequências para o atual governo israelita.
Neste ponto, importa ser ainda mais rigoroso. A condenação pelos crimes de guerra sistemáticos cometidos não é um ataque ao povo de Israel, nem pode ser uma generalização xenófoba e abusiva. O que se aponta, e deve ser apontado, são as ações concretas de um governo e de uma máquina militar, sobejamente documentadas até pelos próprios soldados no terreno, que, como disse anteriormente, já são objeto de processos judiciais em tribunais internacionais. Da mesma forma que todos os palestinianos não são terroristas do Hamas, o sofrimento em Gaza não pode continuar a ser abafado pela confusão deliberada entre a crítica justa e urgente a um Estado e o preconceito contra um povo. A dignidade de todas as vítimas, de ambos os lados, exige essa clareza.
Os números já não nos cabem na compreensão. Depois de 7 de outubro de 2023, em que cerca de 1200 pessoas foram mortas pelo Hamas, o horror ganhou uma nova dimensão impensável do outro lado do muro, com mais de 53 mil palestinianos assassinados, dos quais 17 mil são crianças, dezenas de milhares de feridos, milhares de novos amputados, cerca de meio milhão de pessoas à beira da fome extrema, a quase totalidade de hospitais e escolas destruídos (94% dos hospitais foram danificados ou destruídos, de acordo com a Organização Mundial da Saúde), a ajuda humanitária bloqueada, saqueada, outras vezes bombardeada. Quase 300 funcionários da ONU mortos e dezenas de outros detidos ou impedidos de entrar na Faixa de Gaza, de acordo com os mais recentes UNRWA Situation Reports, em consequência da aprovação, pela Knesset, de leis que bloqueiam o acesso de novos elementos da equipa internacional desta agência das Nações Unidas. Sem estas imagens, a devastação seria apenas uma abstração estatística. Com elas, a realidade ganha osso, ganha carne, ganha rosto.
Fisk, que faleceu em 2020, dizia com aquele peso nas palavras de quem já testemunhou mais do que se deveria poder aguentar, que, se as pessoas vissem o que ele viu, nunca mais apoiariam uma guerra na vida. Nunca sentiremos verdadeiramente a dor dos outros, mas temos a obrigação humanista de partilhar, pelo menos, o seu pedido de ajuda. A imprensa tem o dever de mostrar tudo, por mais violento e difícil que seja. Não servirá para alimentar o horror, mas para que este nunca mais se torne invisível.
Hoje e então; como era e como é
Carmen Veronica, fabulosa vedete do teatro rebolado dos anos 1960, disse tudo: "Naquele tempo se enfiava a bunda dentro do biquíni. Hoje se enfia o biquíni dentro da bunda". A atriz Camila Amado resumiu a nova e difícil situação em sua profissão: "Quando jovem, eu fazia teatro para ganhar dinheiro. Hoje, preciso ganhar dinheiro para fazer teatro". E Tom Jobim assim definiu a diferença entre o Brasil e o Japão: "O Japão é um país paupérrimo com vocação para a riqueza. O Brasil é um país riquíssimo com vocação para a pobreza".
Em Portugal, quando nos pedem alguma coisa, nosso gentil e obsequioso "Pois não" significa um peremptório "Não". Já, ao ouvir algo de que duvidamos, nosso irônico "Pois sim..." significa um afirmativo "Sim". Lá, as calcinhas femininas são cuecas. As cuecas masculinas também. Por essas e outras se acredita que somos dois países separados pela mesma língua. E o dramaturgo Oscar Wilde dizia de seu colega George Bernard Shaw: "Shaw não tem um inimigo no mundo. Em compensação, nenhum de seus amigos gosta dele".
Ficou famosa a frase de Jean-Luc Godard: "A fotografia é a verdade, e o cinema é a verdade 24 vezes por segundo". Mas Godard não contava com a inteligência artificial, que tornou o cinema a mentira 24 vezes por segundo. E alguém falou outro dia do problema da segurança em São Paulo: "Latrocínio era roubo seguido de morte. Agora é morte seguida de roubo".
Um ecologista perguntou: "Pode-se acreditar que, um dia, o ar já foi limpo e o sexo, sujo?". Claudio Manoel, cardeal do ex-grupo Casseta&Planeta, definiu a nossa nova situação institucional: "Antes, os políticos eram eleitos por votos. Hoje, por devotos".
E quem não se lembra da cantilena de Bolsonaro, "Brasil acima de tudo e Deus acima de todos"? Conversa para trouxas. Com sua campanha para reduzir o Brasil a um puxadinho dos EUA com Donald Trump como síndico, Bolsonaro não demora a arrancar sua máscara de religioso e, no desespero, acusar Deus de conluio com Alexandre de Moraes.
Em Portugal, quando nos pedem alguma coisa, nosso gentil e obsequioso "Pois não" significa um peremptório "Não". Já, ao ouvir algo de que duvidamos, nosso irônico "Pois sim..." significa um afirmativo "Sim". Lá, as calcinhas femininas são cuecas. As cuecas masculinas também. Por essas e outras se acredita que somos dois países separados pela mesma língua. E o dramaturgo Oscar Wilde dizia de seu colega George Bernard Shaw: "Shaw não tem um inimigo no mundo. Em compensação, nenhum de seus amigos gosta dele".
Ficou famosa a frase de Jean-Luc Godard: "A fotografia é a verdade, e o cinema é a verdade 24 vezes por segundo". Mas Godard não contava com a inteligência artificial, que tornou o cinema a mentira 24 vezes por segundo. E alguém falou outro dia do problema da segurança em São Paulo: "Latrocínio era roubo seguido de morte. Agora é morte seguida de roubo".
Um ecologista perguntou: "Pode-se acreditar que, um dia, o ar já foi limpo e o sexo, sujo?". Claudio Manoel, cardeal do ex-grupo Casseta&Planeta, definiu a nossa nova situação institucional: "Antes, os políticos eram eleitos por votos. Hoje, por devotos".
E quem não se lembra da cantilena de Bolsonaro, "Brasil acima de tudo e Deus acima de todos"? Conversa para trouxas. Com sua campanha para reduzir o Brasil a um puxadinho dos EUA com Donald Trump como síndico, Bolsonaro não demora a arrancar sua máscara de religioso e, no desespero, acusar Deus de conluio com Alexandre de Moraes.
O aparente regresso da fé a Silicon Valley
A piada favorita na região era que a fé cristã era ilegal. Ou quase. Embora continuasse a haver cristãos na zona, eles optavam por esconder a sua fé e fingir que não tinham convicções religiosas. Hoje tudo mudou, e muito embora já não se reaja abertamente contra a fé, ainda se sente nalguns meios intelectuais que as convicções cristãs constituem uma espécie de desvio.
Note-se que esta deformação de pensamento ainda é mais forte na Europa. Há uns anos, no final duma sessão dum congresso académico numa universidade em Lisboa, onde proferi uma conferência, uma senhora veio ter comigo para manifestar a sua surpresa deste modo: “Como é que uma pessoa inteligente (referia-se a mim…) pode ser crente em Deus?” A minha resposta foi que, justamente por ser inteligente é que era cristão. Talvez não tenha sido a melhor resposta, mas pelo menos procurei desmontar o vício de pensamento que se posiciona na base de tal pergunta, pois bem sabemos que entre os maiores cientistas do mundo sempre se contaram religiosos e não-religiosos, o que demonstra que fé e ciência de modo algum são incompatíveis.
Durante muito tempo, em Silicon Valley a cultura dominante privilegiava um determinado modelo de “pessoa inteligente”, caracterizada por apoiar os direitos das minorias, ser anti-racista ou adepto das filosofias orientais. Podia até simpatizar com o Islão porque caso contrário poderia parecer xenófobo, ou com o judaísmo porque o antissemitismo ainda não era moda.
Entretanto, quando muitos pensavam que a humanidade estava em marcha acelerada na senda do progresso, começou a perceber-se que na realidade se estava em regressão. Mesmo os mais progressistas começaram a aperceber-se de que muito provavelmente era necessário regressar a uma estrutura ética sólida e de milénios, como a judaico-cristã.
Neste momento, os cristãos de Silicon Valley sentem-se encorajados devido ao facto de contarem com numerosos milionários e cientistas entre eles. Até mesmo Elon Musk se assumiu como um “cristão cultural”: “Eu acredito que os ensinamentos de Jesus são bons e sábios”. Embora se duvide que tal afirmação seja realmente uma coisa boa, vinda de quem vem, o facto é que se indivíduos como Musk afirmam admirar os ensinos bíblicos, então isso ajuda a retirar à fé cristã o labéu norte-americano de ser considerada anticapitalista ou anti-intelectual.
Neste momento, se alguém chega junto de potenciais investidores e diz que ama os pais, cresceu na igreja, serviu no exército, e que isso o influenciou no sentido de uma postura de ética profissional, existe uma imediata disposição para apoiar os seus projectos com financiamento.
Naquela região subsiste a ideia de que criar bons produtos e trazê-los ao mercado faz com que Deus se torne mais real na vida dos consumidores, alimentando-se assim a ideia duma espécie de “deus do consumo”. No entanto, parece que a indústria tecnológica já não confia em si mesma e no mercado para fazer do mundo um lugar melhor, como sucedia no passado. Agora sente-se a necessidade de um pano de fundo ético, o que abre espaço à religião e à espiritualidade, partindo do pressuposto de que os valores espirituais são realmente diferentes dos interesses tecnológicos seculares pós-modernos.
Acresce a isso o receio de que as máquinas venham a competir com a inteligência humana, ou mesmo a substituí-la, através duma IA superlativa, uma espécie de superinteligência artificial, e daí poderá mesmo resultar que alguns a considerem como um deus.
Embora muitos dos cristãos “tecnológicos” de Silicon Valley creiam que a dialética entre produtos inovadores, mercado e ética não poderá ser resolvida através do pensamento religioso, a verdade é que o regresso à fé que atualmente se verifica parece estar a oferecer-lhes uma alternativa de vida e crença. Resta saber se, afinal, não estaremos perante uma coisa diferente da fé cristã, isto é, uma espécie de nova religião.
Note-se que esta deformação de pensamento ainda é mais forte na Europa. Há uns anos, no final duma sessão dum congresso académico numa universidade em Lisboa, onde proferi uma conferência, uma senhora veio ter comigo para manifestar a sua surpresa deste modo: “Como é que uma pessoa inteligente (referia-se a mim…) pode ser crente em Deus?” A minha resposta foi que, justamente por ser inteligente é que era cristão. Talvez não tenha sido a melhor resposta, mas pelo menos procurei desmontar o vício de pensamento que se posiciona na base de tal pergunta, pois bem sabemos que entre os maiores cientistas do mundo sempre se contaram religiosos e não-religiosos, o que demonstra que fé e ciência de modo algum são incompatíveis.
Durante muito tempo, em Silicon Valley a cultura dominante privilegiava um determinado modelo de “pessoa inteligente”, caracterizada por apoiar os direitos das minorias, ser anti-racista ou adepto das filosofias orientais. Podia até simpatizar com o Islão porque caso contrário poderia parecer xenófobo, ou com o judaísmo porque o antissemitismo ainda não era moda.
Entretanto, quando muitos pensavam que a humanidade estava em marcha acelerada na senda do progresso, começou a perceber-se que na realidade se estava em regressão. Mesmo os mais progressistas começaram a aperceber-se de que muito provavelmente era necessário regressar a uma estrutura ética sólida e de milénios, como a judaico-cristã.
Neste momento, os cristãos de Silicon Valley sentem-se encorajados devido ao facto de contarem com numerosos milionários e cientistas entre eles. Até mesmo Elon Musk se assumiu como um “cristão cultural”: “Eu acredito que os ensinamentos de Jesus são bons e sábios”. Embora se duvide que tal afirmação seja realmente uma coisa boa, vinda de quem vem, o facto é que se indivíduos como Musk afirmam admirar os ensinos bíblicos, então isso ajuda a retirar à fé cristã o labéu norte-americano de ser considerada anticapitalista ou anti-intelectual.
Neste momento, se alguém chega junto de potenciais investidores e diz que ama os pais, cresceu na igreja, serviu no exército, e que isso o influenciou no sentido de uma postura de ética profissional, existe uma imediata disposição para apoiar os seus projectos com financiamento.
Naquela região subsiste a ideia de que criar bons produtos e trazê-los ao mercado faz com que Deus se torne mais real na vida dos consumidores, alimentando-se assim a ideia duma espécie de “deus do consumo”. No entanto, parece que a indústria tecnológica já não confia em si mesma e no mercado para fazer do mundo um lugar melhor, como sucedia no passado. Agora sente-se a necessidade de um pano de fundo ético, o que abre espaço à religião e à espiritualidade, partindo do pressuposto de que os valores espirituais são realmente diferentes dos interesses tecnológicos seculares pós-modernos.
Acresce a isso o receio de que as máquinas venham a competir com a inteligência humana, ou mesmo a substituí-la, através duma IA superlativa, uma espécie de superinteligência artificial, e daí poderá mesmo resultar que alguns a considerem como um deus.
Embora muitos dos cristãos “tecnológicos” de Silicon Valley creiam que a dialética entre produtos inovadores, mercado e ética não poderá ser resolvida através do pensamento religioso, a verdade é que o regresso à fé que atualmente se verifica parece estar a oferecer-lhes uma alternativa de vida e crença. Resta saber se, afinal, não estaremos perante uma coisa diferente da fé cristã, isto é, uma espécie de nova religião.
O mundo se cala sobre o genocídio de Gaza e, às vezes, é pior quando fala
Em seu primeiro discurso dominical , em 11 de maio, o Papa Leão XIV pediu um cessar-fogo imediato em Gaza e expressou preocupação com a escalada da guerra global. Ao reiterar o apoio de seu antecessor a Gaza, o Papa não cometeu atos de comissão (transgressão ativa) nem perpetrou os atos mais comuns de omissão (omissão quando se é moralmente responsável por fazê-lo).
O mesmo não pode ser dito de grande parte da população mundial. Lá, o sentimento varia de "indivíduos não podem mudar o mundo, então por que se preocupar?" a "Israel tem o direito de se defender contra outro ataque terrorista".
Quanto aos primeiros, indivíduos como jornalistas, escritores e comentaristas públicos certamente podem fazer a diferença, enquanto os demais podem se juntar a uma organização que trabalha coletivamente para trazer paz global com justiça.
Em relação a este último, que é possivelmente mais pernicioso, Israel, por ser o colonizador, não tem o direito legal de cometer genocídio contra os colonizados. A disseminação dessa desinformação permitiu que a entidade cometesse assassinatos em massa impunemente.
Enquanto Israel continua a cometer uma atrocidade após a outra, cada uma mais horrível que a anterior, parece haver muito pouca ação para impedi-la.
Como observa Ramzy Baroud , esses atos de omissão são realizados com “vários graus de raiva, desamparo ou total desrespeito”.
Mesmo quando alguns ativistas não se calam, seja individualmente ou como política de grupo, muitas vezes há muita coisa que é propositalmente omitida de suas declarações. Como observa Amanda Gelender, é "profundamente decepcionante e francamente inconcebível" que muitos de seus companheiros judeus antissionistas "ainda se recusem a apoiar aberta e inequivocamente a resistência armada palestina".
"Não é seu direito como 'antissionistas' judeus higienizar e enfraquecer a luta", ela continua . "jogando a resistência debaixo do ônibus para apaziguar as sensibilidades liberais de seus membros, doadores, famílias e seguidores de uma forma que se adapte aos seus debates filosóficos, egos frágeis, culpa e conforto, bem como à escuridão vazia de suas próprias presunções."
Sua declaração se aplica a todos os funcionários públicos, comentaristas e indivíduos, antisionistas ou não, que afirmam se opor à campanha de limpeza étnica de Israel, mas não chegam a chamá-la de um genocídio que remonta à Nakba original.
Por exemplo, o senador Bernie Sanders (Vermont) é conhecido como um político progressista devido ao seu apoio ao sistema nacional de saúde, ao aumento do salário mínimo, juntamente com outras políticas sociais.
Apesar de ser aclamado por criticar a “destruição do povo palestino” pela entidade , seus comentários são frequentemente extraídos do manual sionista liberal.
Em 8 de maio de 2025, Sanders fez um discurso repreendendo o Congresso por seu silêncio sobre o "pesadelo provocado pelo homem" que acontece em Gaza.
Depois de listar todos os problemas de Gaza, até mesmo criticando o gabinete de Netanyahu por seus crimes de guerra, Sanders passa a dizer que Israel tinha o direito de se defender depois que "o Hamas, uma organização terrorista, começou esta guerra terrível com seu bárbaro ataque contra Israel em 7 de outubro de 2023, que matou 1.200 pessoas inocentes e fez 250 reféns".
Essas observações desfazem todas as boas intenções de Sanders porque a maior parte dessa declaração foi usada primeiro por Israel para justificar o genocídio que agora está em seu 591º dia , além disso, suas palavras são uma distorção dos fatos.
Embora o direito internacional conceda aos ocupados o direito de resistir à ocupação, não concede o mesmo direito ao ocupante. Além disso, grande parte da matança foi perpetrada pelo próprio Israel, enquanto seus soldados atiravam descontroladamente na confusão do momento.
"Houve uma histeria insana, e decisões começaram a ser tomadas sem informações verificadas", escreve Yaniv Kubovich. Além disso, documentos e depoimentos reunidos pelo Haaretz mostram que soldados israelenses empregaram a ordem operacional de Hannibal, que permite que os militares usem a força para impedir que soldados sejam levados como prisioneiros pelo inimigo.
Por fim, Sanders tira o dia 7 de outubro do contexto, como muitas pessoas fazem. Especificamente, ele não menciona a Nakba (catástrofe), que ocorreu em 1948, mas continua desde então.
“Uma das tácticas utilizadas pelo Ocidente e por Israel foi quase conseguir descontextualizar o 7 de Outubro, fazendo com que parecesse ter surgido do nada”, explica o especialista jurídico Richard Falk em uma entrevista ao Palestine Chronicle.
Dessa forma, Sanders demoniza a resistência, que ele rotula como uma organização terrorista responsável por essa “guerra terrível”, não apenas tirando o dia 7 de outubro do contexto, mas também removendo-o da história da luta anticolonial que continua até hoje.
Políticos "progressistas" como Sanders parecem mais confortáveis compartilhando fotos de crianças famintas do que permitindo aos palestinos sua plena humanidade, o que exigiria ver sua luta como uma resposta legítima a décadas de ocupação. Em vez disso, eles veem os ocupados como meras vítimas, o que é claro que são, mas também são corajosos lutadores pela liberdade que resistem como a única opção moral.
“A descolonização está atualmente sendo travada pela resistência no campo de batalha”, escreve Gelender, “não nas urnas dos EUA”.
“O que está em jogo é a soberania da própria narrativa”, escreve Mohamed L. Mokhtar, “quem define a justiça, quem controla o significado, quem decide o que é visível e o que permanece oculto”.
Em uma análise do livro de Peter Beinart sobre “Genocídio, Trauma e Identidade Judaica”, como o artigo é intitulado, Paul Von Blum concorda com o apelo de Beinart por uma nova narrativa judaica, “uma que seja baseada na igualdade e não na supremacia”.
No entanto, Von Blum e, por padrão, Peter Beinart, não têm clareza sobre como passar de um genocídio para uma vida de coexistência.
A partir daqui, Beinart e seu crítico retornam ao tropo padrão de confundir resistência com atos terroristas, uma "análise de ambos os lados" que apaga o apelo por uma nova narrativa que inclua o que veio antes.
“Beinart entende perfeitamente o trauma que o ataque do Hamas em 7 de outubro causou aos judeus em Israel e em outros lugares”, escreve Von Blum, fornecendo assim cobertura para a resposta desproporcional de Israel.
Para seu crédito, Beinart destaca a opressão histórica dos palestinos, observa Von Blum , mas o crítico continua escrevendo que isso "de forma alguma absolve o Hamas por sua carnificina".
Dessa forma, ambos os escritores oferecem um relato a-histórico da resistência palestina. Assim como Sanders, eles deixam de mencionar que o dia 7 de outubro é mais um capítulo na longa história das lutas pela liberdade — a revolta de Nat Turner, Wounded Knee, o Vietnã, a Revolta do Gueto de Varsóvia e o movimento "Terra de Volta", para citar alguns.
De fato, quando um grupo de pessoas é mantido em cativeiro por um período significativo, seus algozes convivem com o medo de que a qualquer momento possa ocorrer uma revolta dos próprios vitimizados. Isso certamente era verdade nas plantações de escravos no sul dos Estados Unidos, onde os donos dos escravizados sabiam que sua "propriedade" queria ser libertada.
Como judeu, não sinto esse tipo de medo, pelo menos não por parte dos palestinos. O que me preocupa são os grupos sionistas que estão cada vez mais se manifestando em seus esforços para, no mínimo, intimidar organizações antisionistas, especialmente seus companheiros judeus.
Em vez de focar no trauma judaico, como Beinart parece fazer, talvez seja melhor discutir esforços como o Projeto Esther, que visam rotular grupos pró-palestinos como organizações terroristas para que os membros possam ser mais facilmente "deportados, desfinanciados, processados, demitidos, expulsos, condenados ao ostracismo e excluídos de outras formas do que é considerado uma 'sociedade aberta'".
Tendo sido eu próprio alvo dessas políticas, parece, por vezes, surreal que judeus, que vivenciaram o seu próprio Holocausto, às vezes apenas na segunda ou terceira geração, estejam agora a ser ameaçados por protestarem contra outro genocídio. Desta vez, não é sangue judeu, mas sim palestino, que está a ser derramado.
“Em meio à depravação implacável deste holocausto”, conclui Gelender, “a resistência é o único antídoto para o desespero. Nunca capitular, nunca se ajoelhar, lutar contra todas as adversidades, até a vitória.”
O mesmo não pode ser dito de grande parte da população mundial. Lá, o sentimento varia de "indivíduos não podem mudar o mundo, então por que se preocupar?" a "Israel tem o direito de se defender contra outro ataque terrorista".
Quanto aos primeiros, indivíduos como jornalistas, escritores e comentaristas públicos certamente podem fazer a diferença, enquanto os demais podem se juntar a uma organização que trabalha coletivamente para trazer paz global com justiça.
Em relação a este último, que é possivelmente mais pernicioso, Israel, por ser o colonizador, não tem o direito legal de cometer genocídio contra os colonizados. A disseminação dessa desinformação permitiu que a entidade cometesse assassinatos em massa impunemente.
Enquanto Israel continua a cometer uma atrocidade após a outra, cada uma mais horrível que a anterior, parece haver muito pouca ação para impedi-la.
Como observa Ramzy Baroud , esses atos de omissão são realizados com “vários graus de raiva, desamparo ou total desrespeito”.
Mesmo quando alguns ativistas não se calam, seja individualmente ou como política de grupo, muitas vezes há muita coisa que é propositalmente omitida de suas declarações. Como observa Amanda Gelender, é "profundamente decepcionante e francamente inconcebível" que muitos de seus companheiros judeus antissionistas "ainda se recusem a apoiar aberta e inequivocamente a resistência armada palestina".
"Não é seu direito como 'antissionistas' judeus higienizar e enfraquecer a luta", ela continua . "jogando a resistência debaixo do ônibus para apaziguar as sensibilidades liberais de seus membros, doadores, famílias e seguidores de uma forma que se adapte aos seus debates filosóficos, egos frágeis, culpa e conforto, bem como à escuridão vazia de suas próprias presunções."
Sua declaração se aplica a todos os funcionários públicos, comentaristas e indivíduos, antisionistas ou não, que afirmam se opor à campanha de limpeza étnica de Israel, mas não chegam a chamá-la de um genocídio que remonta à Nakba original.
Por exemplo, o senador Bernie Sanders (Vermont) é conhecido como um político progressista devido ao seu apoio ao sistema nacional de saúde, ao aumento do salário mínimo, juntamente com outras políticas sociais.
Apesar de ser aclamado por criticar a “destruição do povo palestino” pela entidade , seus comentários são frequentemente extraídos do manual sionista liberal.
Em 8 de maio de 2025, Sanders fez um discurso repreendendo o Congresso por seu silêncio sobre o "pesadelo provocado pelo homem" que acontece em Gaza.
Depois de listar todos os problemas de Gaza, até mesmo criticando o gabinete de Netanyahu por seus crimes de guerra, Sanders passa a dizer que Israel tinha o direito de se defender depois que "o Hamas, uma organização terrorista, começou esta guerra terrível com seu bárbaro ataque contra Israel em 7 de outubro de 2023, que matou 1.200 pessoas inocentes e fez 250 reféns".
Essas observações desfazem todas as boas intenções de Sanders porque a maior parte dessa declaração foi usada primeiro por Israel para justificar o genocídio que agora está em seu 591º dia , além disso, suas palavras são uma distorção dos fatos.
Embora o direito internacional conceda aos ocupados o direito de resistir à ocupação, não concede o mesmo direito ao ocupante. Além disso, grande parte da matança foi perpetrada pelo próprio Israel, enquanto seus soldados atiravam descontroladamente na confusão do momento.
"Houve uma histeria insana, e decisões começaram a ser tomadas sem informações verificadas", escreve Yaniv Kubovich. Além disso, documentos e depoimentos reunidos pelo Haaretz mostram que soldados israelenses empregaram a ordem operacional de Hannibal, que permite que os militares usem a força para impedir que soldados sejam levados como prisioneiros pelo inimigo.
Por fim, Sanders tira o dia 7 de outubro do contexto, como muitas pessoas fazem. Especificamente, ele não menciona a Nakba (catástrofe), que ocorreu em 1948, mas continua desde então.
“Uma das tácticas utilizadas pelo Ocidente e por Israel foi quase conseguir descontextualizar o 7 de Outubro, fazendo com que parecesse ter surgido do nada”, explica o especialista jurídico Richard Falk em uma entrevista ao Palestine Chronicle.
Dessa forma, Sanders demoniza a resistência, que ele rotula como uma organização terrorista responsável por essa “guerra terrível”, não apenas tirando o dia 7 de outubro do contexto, mas também removendo-o da história da luta anticolonial que continua até hoje.
Políticos "progressistas" como Sanders parecem mais confortáveis compartilhando fotos de crianças famintas do que permitindo aos palestinos sua plena humanidade, o que exigiria ver sua luta como uma resposta legítima a décadas de ocupação. Em vez disso, eles veem os ocupados como meras vítimas, o que é claro que são, mas também são corajosos lutadores pela liberdade que resistem como a única opção moral.
“A descolonização está atualmente sendo travada pela resistência no campo de batalha”, escreve Gelender, “não nas urnas dos EUA”.
“O que está em jogo é a soberania da própria narrativa”, escreve Mohamed L. Mokhtar, “quem define a justiça, quem controla o significado, quem decide o que é visível e o que permanece oculto”.
Em uma análise do livro de Peter Beinart sobre “Genocídio, Trauma e Identidade Judaica”, como o artigo é intitulado, Paul Von Blum concorda com o apelo de Beinart por uma nova narrativa judaica, “uma que seja baseada na igualdade e não na supremacia”.
No entanto, Von Blum e, por padrão, Peter Beinart, não têm clareza sobre como passar de um genocídio para uma vida de coexistência.
A partir daqui, Beinart e seu crítico retornam ao tropo padrão de confundir resistência com atos terroristas, uma "análise de ambos os lados" que apaga o apelo por uma nova narrativa que inclua o que veio antes.
“Beinart entende perfeitamente o trauma que o ataque do Hamas em 7 de outubro causou aos judeus em Israel e em outros lugares”, escreve Von Blum, fornecendo assim cobertura para a resposta desproporcional de Israel.
Para seu crédito, Beinart destaca a opressão histórica dos palestinos, observa Von Blum , mas o crítico continua escrevendo que isso "de forma alguma absolve o Hamas por sua carnificina".
Dessa forma, ambos os escritores oferecem um relato a-histórico da resistência palestina. Assim como Sanders, eles deixam de mencionar que o dia 7 de outubro é mais um capítulo na longa história das lutas pela liberdade — a revolta de Nat Turner, Wounded Knee, o Vietnã, a Revolta do Gueto de Varsóvia e o movimento "Terra de Volta", para citar alguns.
De fato, quando um grupo de pessoas é mantido em cativeiro por um período significativo, seus algozes convivem com o medo de que a qualquer momento possa ocorrer uma revolta dos próprios vitimizados. Isso certamente era verdade nas plantações de escravos no sul dos Estados Unidos, onde os donos dos escravizados sabiam que sua "propriedade" queria ser libertada.
Como judeu, não sinto esse tipo de medo, pelo menos não por parte dos palestinos. O que me preocupa são os grupos sionistas que estão cada vez mais se manifestando em seus esforços para, no mínimo, intimidar organizações antisionistas, especialmente seus companheiros judeus.
Em vez de focar no trauma judaico, como Beinart parece fazer, talvez seja melhor discutir esforços como o Projeto Esther, que visam rotular grupos pró-palestinos como organizações terroristas para que os membros possam ser mais facilmente "deportados, desfinanciados, processados, demitidos, expulsos, condenados ao ostracismo e excluídos de outras formas do que é considerado uma 'sociedade aberta'".
Tendo sido eu próprio alvo dessas políticas, parece, por vezes, surreal que judeus, que vivenciaram o seu próprio Holocausto, às vezes apenas na segunda ou terceira geração, estejam agora a ser ameaçados por protestarem contra outro genocídio. Desta vez, não é sangue judeu, mas sim palestino, que está a ser derramado.
“Em meio à depravação implacável deste holocausto”, conclui Gelender, “a resistência é o único antídoto para o desespero. Nunca capitular, nunca se ajoelhar, lutar contra todas as adversidades, até a vitória.”
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